Por LUIZ FERNANDO DE PAULA, CAMILA VAZ & PEDRO LANGE NETTO*
Enquanto as desigualdades se acentuam, e a economia segue em perspectiva de baixa recuperação, a agenda econômica parece ser construída como se, em 2021, o país já estivesse recuperado e imune à pandemia
A economia brasileira, tal como a maioria das economias no mundo, foi fortemente afetada pela crise associada à pandemia da Covid-19. Esta encontrava-se estagnada antes da crise sanitária, com uma taxa de desemprego elevada e um contingente de mais de 40% da população economicamente ativa em trabalho informal ou “uberizado”, além de ter tido uma piora na desigualdade social no período 2015/2019: o Índice de Gini aumentou de 0,525 em 2015 para 0,543 em 2019 (Barbosa et al, 2020). O governo brasileiro teve uma resposta vacilante – frequentemente empurrado pelo desenrolar dos acontecimentos e/ou iniciativas do congresso nacional – perante uma crise que se revelou rápida e aguda. Diante disso, houve a necessidade de enfrentar problemas relacionados à queda da renda do setor informal, ao aumento de desemprego, à solvência das empresas, à queda das receitas dos estados e municípios (responsáveis por operar os serviços de saúde), à restrição de liquidez no setor bancário, além das consequências sociais e sanitárias da pandemia.
De fato, o efeito da crise do coronavírus sobre a economia foi imediato, com forte saída de capitais de portfólio, que gerou uma desvalorização cambial de 27,3% entre 11 de março e 14 de maio; um racionamento de crédito que atingiu pequenas e médias empresas; uma forte redução na taxa de crescimento do PIB, atingindo a economia em particular no 2º trimestre, puxado pelo setor de serviços e setor industrial; e um forte aumento da taxa de desocupação (de 11,0% em dezembro de 2019 para 14,4% em agosto de 2020) .
A resposta inicial do governo brasileiro à crise econômica/social que resultou da pandemia foi bastante ambígua. Inicialmente, a primeira reação do ministro da Economia, Paulo Guedes, foi que “as reformas são a melhor resposta à crise do coronavírus”. Ainda em março de 2020, o governo federal adotou um conjunto de medidas contracíclicas sem impacto fiscal, que incluiu: a postergação do pagamento de impostos das empresas, como FGTS e Simples; a antecipação do 13º salário aos aposentados; o remanejamento de recursos para o SUS; a adoção de medidas para reduzir a fila do programa “bolsa família”; e a provisão de uma ajuda financeira a estados e municípios no valor total de R$ 16 bilhões. Tais medidas se mostraram insuficientes para enfrentamento da crise econômica e social. Isto obrigou o governo federal, após forte campanha da sociedade civil e por iniciativa do Congresso Nacional, a implementar um programa de auxílio emergencial de renda para a população mais vulnerável, dada a existência de uma imensa parcela da população composta de trabalhadores informais.
Um passo fundamental no combate à crise econômica que resultou da crise sanitária foi a aprovação pelo Congresso Nacional do estado de calamidade pública no país, com vigência até 31/12/2020, o que permitiu ao governo brasileiro descumprir, no ano de 2020, as metas de resultados fiscais regidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei das Diretrizes Orçamentárias, viabilizando assim que pudesse aumentar os seus gastos para enfrentar os efeitos da crise em um contexto de forte queda na arrecadação tributária. Num segundo passo, o Congresso aprovou o assim denominado “Orçamento de Guerra”, em 07/05/2020, destinado exclusivamente às medidas de combate à crise associada à Covid-19, não estando restrito à chamada “regra de ouro”, que proíbe a emissão de dívida pública para cobrir as despesas com gastos correntes.
Houve uma forte pressão social e política pela implementação de um programa emergencial de transferência de renda a trabalhadores informais e desempregados. Inicialmente o governo federal relutou em implementar um programa de transferência de renda e acabou por propor um voucher de R$ 200,00 por três meses, enquanto o Congresso Nacional pressionava para aprovação de um valor no mínimo de R$ 500,00. Esta pressão levou à aprovação de um programa de auxílio emergencial, em 02/04/2020, instituindo um auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 inicialmente por 3 meses, e depois prorrogado por mais de 2 meses (atingindo cerca de 67,9 milhões de beneficiários, cerca de 1/3 da população brasileira), voltado para trabalhadores desempregados, trabalhadores informais e aqueles registrados em programas sociais. Concluído o pagamento das 5 parcelas, passou-se a debater a continuidade do Auxílio Emergencial, que levou o governo federal a instituir a Medida Provisória no. 1000, que estabelecendo um auxílio com 4 parcelas de R$ 300,00 (até dezembro).
Em relação à preservação do emprego formal, mais uma vez as ambiguidades das medidas adotadas pelo governo federal ficaram claras. O Presidente Bolsonaro propôs inicialmente a suspensão do contrato de trabalho e redução da jornada de trabalho sem qualquer pagamento de salário; no entanto, em função da forte pressão política do Congresso Nacional, propôs na sequência alguma compensação de renda para redução de horas de trabalho e salários. Deste modo, em 01/04/2020, instituiu-se o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que autorizou os empregadores, temporariamente, a reduzir salários e jornadas ou suspender contratos de trabalho (até 60 dias), com direito a estabilidade temporária do empregado e recebimento de benefício emergencial pago pelo governo brasileiro. A redução de jornada e salário poderia ser de 25%, 50% ou 75% por acordo individual ou coletivo com prazo máximo de 90 dias, ou qualquer percentual, inclusive 100%, apenas por acordo coletivo. Em função da permanência da pandemia ao longo do ano de 2020, o programa foi prorrogado três vezes, sendo concluído em dezembro.
O programa de auxílio emergencial (AE) a indivíduos vulneráveis contribuiu para uma rápida melhora na distribuição de renda, na medida em que evitou a redução de renda das famílias de baixa renda, em comparação com outros segmentos da população, em particular o segmento que ganha menos de meio salário mínimo. Quando se inclui o AE à renda total, o primeiro e o segundo decil têm um ganho médio de 76% e 32%, respectivamente, evidenciando o forte impacto distributivo da AE para segmentos de baixa renda. Nos demais décimos, o ganho é declinante com o aumento da renda. Gonçalves et al. (2021) calculam ainda o Índice de Gini sem AE (0,5429) e com AE (0,4972), mostrando uma variação significativa de 8,4% em curto período de tempo. Além da redução na desigualdade social, verificou-se uma forte redução na pobreza e extrema pobreza devido ao AE: a percentagem da população abaixo da pobreza reduziu de 23,7% em maio para 18,4% em agosto de 2020, enquanto a percentagem da extrema pobreza caiu ainda mais: de 4,18% para 2,29%, uma redução de quase metade.
O desempenho da economia brasileira em 2020 (-5,3% no ano) em comparação às maiores economias da América Latina, observa-se um desempenho bem melhor que a média da América Latina (-7,7%) e das maiores economias da região, como Argentina (-10,5%) e México (-9,0%) (CEPAL, 2021). Já no 1º trimestre de 2021, há uma nova queda na atividade econômica brasileira em função da segunda (e forte) onda da pandemia, que resultou em paralisações parciais em vários estados brasileiros e dos efeitos negativos da renda em função do aumento na taxa de inflação causada por choques de oferta (elevação nos preços de commodities e desvalorização cambial).
O problema da economia brasileira para o ano de 2021 e adiante está relacionado a duas questões: (i) a estratégia negacionista do Presidente Bolsonaro em relação ao combate da pandemia, que favorece o crescimento no número de casos e mortes relacionadas a COVID-19, tal como ocorreu no período de janeiro a abril de 2021, e o atraso no programa de vacinação no país, fazendo com que a economia brasileira tenha, na primeira metade de 2021, uma recuperação bem abaixo da maioria das demais economias (OECD, 2021); (ii) o retorno por parte do governo brasileiro das políticas econômicas ortodoxas em 2021, com base no “teto dos gastos”, que, ao congelar os gastos públicos em termos reais, o impede de implementar políticas fiscais contracíclicas.
Disso decorre nossa avaliação de que não há estratégia do governo federal para implementar uma agenda crível de crescimento sustentável; por exemplo, não existe um programa governamental voltado para investimentos em infraestrutura. Há apenas um retorno ao “velho normal”: uma agenda de reformas liberais, na contramão do que vem sendo implementado em outros países; e em linha com o “Plano Mais Brasil”, defendido pelo governo Bolsonaro, em 2019, e composto por três Propostas de Emenda à Constituição (PECs): PEC Emergencial, PEC do Pacto Federativo e PEC dos Fundos Públicos. Dentre as medidas já aprovadas pelo governo, em 2021, estão a Autonomia do Banco Central e a PEC Emergencial; esta última sofreu um conjunto de alterações desde sua proposta inicial.
A retomada da agenda de reformas liberais e de austeridade fiscal pretendida pelo governo Bolsonaro está de acordo, como visto, com a estratégia econômica que vinha sendo implementada antes da pandemia, denominada por Oreiro e Paula (2021) como “Tatcherismo Tupiniquim”. Entretanto, o choque causado pela crise da COVID-19 acelerou tendências no debate econômico internacional que apontam para uma outra direção, que contradiz preceitos fundamentais da agenda defendida por Paulo Guedes. Neste artigo, usamos como proxy desse debate documentos do Fiscal Monitor, publicação semestral do FMI, divulgados em 2020 e 2021. Como se verá visto a seguir, é patente o descompasso entre a política econômica do governo e o que vem sendo considerado como necessário, mundo afora, para a recuperação da crise.
Com efeito, essas agendas divergem já em seus respectivos pontos de partida. Isso porque o FMI – assim como demais organismos multilaterais – pressupõe a ocorrência de lockdowns nos momentos mais agudos da pandemia, de modo a estruturar suas recomendações sobre fases de maiores ou menores restrições às atividades econômicas nos países (FMI, 2020, p. 2). Como o governo Bolsonaro adota uma postura anticientífica em relação aos efeitos positivos do lockdown no controle da pandemia, essa etapa fundamental é de antemão sabotada. Ademais, tendo em vista o atraso no programa de vacinação que ocorreu no país, importa mencionar que o FMI (2021) ressalta a importância da vacinação em escala global, o que, em suas palavras poderia ser o projeto público “com o maior retorno já identificado”.
Em todo caso, vejamos o que propõe o FMI para a gestão das economias nacionais nesse contexto. No Fiscal Monitor: Policies for recovery, lançado em outubro de 2020, um ponto central em suas recomendações é a necessidade da expansão fiscal e do investimento público nesse processo, tanto para economias avançadas quanto emergentes. Para viabilizá-lo, governos devem, de acordo com o estudo, recorrer a uma maior emissão de dívida e à tributação dos estratos mais ricos da sociedade – a depender de suas respectivas condições fiscais e tributárias. Em um primeiro momento, o foco deve ser a transferência de renda aos setores mais vulneráveis da sociedade, garantindo a sobrevivência tanto de pessoas quanto de empresas.
Como já sugerido, o auxílio emergencial, entre abril e dezembro de 2020, foi eficiente neste propósito, garantindo renda aos trabalhadores informais e, ao mesmo tempo, uma menor queda do PIB. De acordo com Sanches, Cardomingo e Carvalho (2021), caso não houvesse sido implementado, a queda do PIB brasileiro poderia ter sido de 8,4% a 14,8%. Mas o FMI (2020) é também enfático ao dizer que essa ajuda não deveria ser retirada de forma abrupta, o que contrasta com o ocorrido entre janeiro e março de 2021, período no qual o auxílio foi cancelado no Brasil, para depois ser retomado com valor reduzido. Além disso, um sistema tributário mais progressivo nunca esteve no horizonte do governo, a despeito da notória regressividade do sistema tributário brasileiro (Morgan, 2018).
O segundo momento em que o papel do Estado é imprescindível é o da recuperação econômica. Neste propósito, o investimento público é visto como um importante canal de estímulo da economia, com seus impactos substantivos sobre a geração de crescimento e emprego, sobretudo em momentos de incerteza, já tendo sido documentados pela literatura acadêmica. Nesse sentido, o FMI (2020) considera que as prioridades do Estado devem ser a melhoria da rede de saúde, a expansão da infraestrutura digital – dadas as demandas e tendências do setor de serviços – e a transição para um modelo de desenvolvimento mais sustentável, em linha com os desafios do aquecimento global e da proteção ambiental. Segundo o estudo, o aumento dos investimentos públicos nessas áreas teria rápidos efeitos positivos também sobre a dinâmica de investimentos privados, fazendo com que a economia ingresse em um ciclo virtuoso de crescimento.
O Fiscal Monitor de abril de 2021 segue essa mesma linha. Em primeiro lugar, importa notar a ênfase que o estudo atribui à importância das ações fiscais adotadas durante a pandemia da Covid-19, para a mitigação de seus efeitos sociais, sanitários e econômicos. Além disso, ressalta-se que a pandemia ainda não está sob controle, o que reforçaria a importância de manutenção do suporte fiscal, ainda que podendo haver reformulações do mesmo, por exemplo, por meio de melhoria na segmentação dos apoios. Ainda que, de fato, o documento dê importância aos riscos associados ao aumento da dívida pública, a instituição ressalta que seria preciso balanceá-los com os riscos provenientes da extinção dos apoios vigentes.
Além disso, o estudo dá especial ênfase às desigualdades sociais, tanto aquelas anteriores à pandemia da Covid-19 que, de acordo com a instituição, fizeram com que os efeitos da pandemia afetassem desproporcionalmente determinados grupos sociais, como também à ampliação das desigualdades pré-existentes, ocasionada pela pandemia (FMI, 2021). Desse modo, sugere a necessidade de medidas que garantam o acesso aos serviços básicos, como os de saúde e educação, e o fortalecimento de políticas que reduzam as desigualdades, bem como o fortalecimento da capacidade de tributação por parte do Estado.
As recomendações do FMI se inserem em uma tendência do debate internacional em torno da gestão de economias nacionais, que vem conferindo maior proeminência ao papel do Estado (Cherif, Engher e Hasanov, 2020). Martin Sandbu (2021), com base nos recentes posicionamentos do FMI e do Banco Mundial, sugere que haveria um “novo Consenso de Washington” que, por seu turno, seria menos fiscalista, uma vez que o foco dessas instituições estaria, agora, em realizar de forma eficiente o gasto público e não em reduzi-lo.
Em conclusão, ainda é cedo para afirmar se há uma virada mais profunda e permanente nos posicionamentos do FMI ou se esta alteração na postura da instituição só permanecerá enquanto durarem os efeitos mais perversos associados à pandemia da Covid-19. No entanto, importa ressaltar que enquanto o FMI – instituição que historicamente pressionou países em suas políticas de ajustamento visando a garantir medidas de ajuste fiscal quando há aumento do endividamento público – tem ressaltado a importância de uma política fiscal expansiva durante o período da pandemia; o governo brasileiro tem se preocupado com o oposto, como se a perseguição de um ajuste fiscal e a redução do papel do Estado na economia garantisse a retomada do crescimento do país, algo que não tem acontecido.
Assim, apesar do início de 2021 ter sido marcado pela segunda onda da Covid-19, o centro da agenda do governo foi encaminhar novas propostas de ajuste fiscal. Enquanto as desigualdades se acentuam, e a economia segue em perspectiva de baixa recuperação, a agenda econômica parece ser construída como se, em 2021, o país já estivesse recuperado e imune à pandemia. Desse modo, enquanto o teto de gastos permanecer sendo a principal preocupação econômica e não houver uma estratégia de crescimento de longo prazo clara para a economia brasileira, não nos parece possível que o país seja capaz de enfrentar devidamente os efeitos da pandemia, nem alcançar uma trajetória de longo prazo de desenvolvimento.
*Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ). Autor de Sistema financeiro, bancos e financiamento da economia (Campus).
*Camila Vaz é doutoranda em sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
*Pedro Lange Netto Machado é doutorando em Ciência Política no IESP/UERJ.
Referências
CEPAL (2021). Statistical Yearbook for Latin America and the Caribbean 2020. Santiago: CEPAL.
Cherif, R.; Engher, M. e Hasanov, F. (2020). Crouching Beliefs, Hidden Biases: The Rise and Fall of Growth Narratives. IMF Working Paper, WP/20/228.
FMI (2020). Fiscal Monitor: Policies for the Recovery. Acessado em 14 de março de 2021 e disponível em <https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2020/09/30/october-2020-fiscal-monitor>.
FMI (2021) Fiscal Monitor: A Fair Shot. Washington, April.
Gonçalves, R., Nascimento, J.C., Oliveira, A.A., Michelman, C., Guidolin e P., Melo, G. (2021). Impactos do auxílio emergencial na renda e no índice de Gini. Nota do Cecon n.16, abril.
Morgan, M. (2018). Income inequality, growth and elite taxation in Brazil: new evidence combining survey and fiscal data, 2001–2015. IPC-IG Working Paper no. 165, fevereiro.
OECD (2021), https://www.oecd.org/economy/weekly-tracker-of-gdp-growth, accesso em 05/04/2021.
Oreiro, J.L. e Paula, L.F. (2021). Macroeconomia da Estagnação Brasileira. Rio de Janeiro: Alta Books.
Sanches, M.; Cardomingo, M.; Carvalho, L. (2021). Quão mais fundo poderia ter sido esse poço? Analisando o efeito estabilizador do Auxílio Emergencial em 2020. Nota de Política Econômica n.007, MADE/USP, fevereiro.
Vilella, C., Vaz, C., e Bustamante, J. (2020). Levantamento e análise de medidas econômicas adotadas durante a pandemia da COVID-19. Nota de Política Econômica GESP IE/UFRJ, junho.