Ordem e desordem

Georges Braque (1882–1963), Garrafa, Vidro e Cachimbo, 1914.
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Por GUILHERME PREGER*

Notas sobre o dilema das Forças Armadas diante do bolsonarismo.

Sabemos que o lema “Ordem e Progresso” em nossa bandeira foi proposto pelos positivistas do século XIX, principalmente por Raimundo Teixeira Mendes, a partir da obra do francês Auguste Comte. O lema, no entanto, foi uma redução do ideal positivista, pois escondeu um terceiro termo, Amor, que também estava no dito de origem de Comte: “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. O deputado Chico Alencar, em 2003, lançou um Projeto de Lei para incluir o termo faltante na bandeira, mas o PL não foi adiante.

As Forças Armadas, responsáveis pela Proclamação da República, montaram o primeiro governo republicano e aceitaram desde sempre a ideologia positivista de nossa bandeira. Mas, ao mesmo tempo, se sentiram herdeiras da ideia de Poder Moderador, que foi extinto pela primeira Constituição Republicana. A ideia de um Poder Moderador não oficial, na verdade, deveria ser a de um Poder que fizesse a mediação entre a Ordem e o Progresso. Mas não foi isso que aconteceu.

Qualquer marxista sabe que o lema positivista, em seu caráter ideológico, torna opaca a percepção de que, sob um regime de ordem capitalista, ordem e progresso se antagonizam. Afinal, o capitalismo é o sistema em que “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Não é necessário, no entanto, ser leitor do Manifesto Comunista, ou mesmo concordar com Marx, para entender, que o sistema capitalista é fundamentalmente desordenador da sociedade. Como escreveu o liberal Joseph Schumpeter, o capitalismo é o sistema da “destruição criativa”.  Assim, o lema correto seria antes “Ordem OU Progresso”, pois ou temos ordem ou temos progresso capitalista.

É claro que as Forças Armadas se veem acima de tudo como forças ordenadoras e, portanto, que ao longo da história republicana se alinharam com forças não progressistas, regressivas ou retrógradas. As forças progressistas, por outro lado, foram reconhecidas como causadoras de desordem e identificadas à esquerda, e mesmo ao comunismo, por mais moderadas que fossem. O papel de Poder Moderador das Forças Armadas teria que fatalmente cair para o lado da Ordem, que só poderia estar junto com os setores mais reacionários do país.

O reacionarismo das Forças Armadas é tão patente que não há necessidade aqui de comprová-lo. As Forças Armadas brasileiras nunca estiveram do lado das classes populares  e,  na ausência de inimigos externos, ou na incapacidade de combatê-los, as nossas FFAA guardaram para si a função dileta de aparelho repressivo das classes trabalhadoras internas, nacionalistas. Isto está fartamente comprovado em nossa história.

No entanto, a relação entre ordem e desordem no capitalismo sempre esteve muito embaralhada. A operação judicial Lava Jato novamente reacendeu essa contradição. Seus operadores se viam como defensores da ordem e a corrupção como o sintoma máximo da desordem institucional. No entanto, a desordem produzida pela Lava Jato, desafiando todos os limites de nosso sistema judiciário, teve um efeito devastador, sem igual em destruição de toda a história brasileira. Defensora de sua visão provinciana de ordem, os lavajatistas só poderiam se considerar como inimigos figadais dos progressistas, contra quem investiram sem peias no “lawfare”, na guerra do Direito Penal do Inimigo.

A operação Lava Jato fracassou redondamente porque perseguiu um autoengano cognitivo. A corrupção nunca foi um sintoma de desordem institucional. Na verdade, a corrupção desde sempre esteve do lado da ordem. Com efeito, a corrupção é um apanágio do verdadeiro Poder Moderador de nossa República pós-redemocratização, o assim chamado “Centrão”. Este Centrão é um legítimo herdeiro daquele que efetivamente exerceu o Poder Moderador na época da Ditadura Militar, o MDB. Não casualmente, o filósofo Marcos Nobre defendeu que a Nova República pós-1988 foi dominada pelo “pemedebismo”. Este partido PMDB, o principal do Centrão, exerceu uma influência amortecedora e diluidora não exatamente entre esquerda e direita, mas antes entre ordem e progresso. Nesse aspecto, a corrupção é um óleo aparador das arestas e dos atritos entre a ordem regressiva e o progresso “disruptivo” da economia capitalista. A corrupção sempre foi, portanto, um fator ordenador.

Ao desorganizar o sistema político estabelecido brasileiro, a Lava Jato desarticulou a capacidade moderadora do Centrão brasileiro, jogando o país na maior desordem institucional de sua história, maior até do que aquela testemunhada durante a ditadura militar. Assim, os heróis lavajatistas da ordem foram os maiores causadores da desordem nacional. Uma das consequências da ação ilegítima da operação foi transformar o Centrão num “Direitão”, e com isso perder completamente a sua capacidade de âncora do sistema político. Este transformismo foi, sem dúvida, um dos principais fatores para o surgimento e crescimento do bolsonarismo.

Por outro lado, os lavajatistas tinham razão ao ver o PT como seu inimigo mortal, mas não porque era o fiador da corrupção, como acreditavam, mas por ser o alavancador do progressismo econômico, e por impulsionar as forças disruptivas do capitalismo produtivo, ou simplesmente do desenvolvimento das forças produtivas. Em particular, com a nova valorização salarial do trabalho, principalmente com a política de ganho real do salário mínimo.  Como defensora da ordem, a operação Lava Jato teria que se opor ao progressismo desenvolvimentista dos governos petistas, que desestabilizava as relações de classe, porém não tinha então um diagnóstico correto da situação.

As Forças Armadas, por sua vez, desde 2014, com a derrota de Aécio Neves,  estabeleceram sua meta de retorno à política, novamente sobre a capa de Poder Moderador da República, e com isso incentivaram que suas altas patentes fossem à guerra cultural nas redes sociais, munidas pela ideologia olavista e “anti-gramscista” do Orvil, como demonstra o professor João César de Castro Rocha em lançamento recente, e apoiaram abertamente a guerra jurídica da Lava Jato contra o PT, inclusive atuando decididamente pela condenação e prisão de Luiz Inácio da Silva.

E então surge Bolsonaro. Desde antes do Golpe de 2016, e de sua espetaculosa performance na sessão do impeachment no Congresso, quando lançou na arena pública sua campanha presidencial, Bolsonaro já era o preferido das casernas para ser a vanguarda do retorno dos militares ao Poder. Com a intervenção militar no Rio de Janeiro durante o último ano do governo Temer, sob a direção do general Braga Netto, pavimentou-se o caminho de apoio à campanha Bolsonarista. O twitter do general Villas-Boas, às vésperas do julgamento de habeas corpus de Lula, garantiu a saída e o silêncio do principal protagonista de entrave ao projeto, bem como garantiu o acovardamento do Poder Judiciário em sua Suprema Corte.

Vários especialistas e historiadores, como Piero Leirner, têm insistido que não foram os militares que tomaram carona na campanha bolsonarista, mas Bolsonaro que pulou dentro de um projeto militar de retorno ao Poder. Prefiro ver antes como uma convergência de interesses não exatamente idênticos, a que se somaram os interesses da classe burguesa brasileira de sedimentar um novo período de superexploração do trabalho e de retirada de direitos sociais, garantida pela Lei do Teto e pelas reformas trabalhista e previdenciária.

O certo é que a vitória de Jair Messias Bolsonaro contou com apoio absolutamente cristalino e inequívoco das Forças Armadas. Curiosamente, na mensagem de congratulações do mesmo general Villas-Boas, após a posse, há o elogio de três homens públicos que ascendem então ao poder: Bolsonaro, o juiz Moro e o general Braga Netto. O outro homem forte, Paulo Guedes, foi esquecido.

No entanto, o ex-juiz de Maringá acabou sendo um fracasso e o próprio Bolsonaro desde o início sabotou sua atuação, cumprindo seus compromissos com a base do “Direitão” que estava apoiando seu governo. É exatamente após a queda de Moro, em meados de 2020, que Bolsonaro faz o grande pacto com o “Direitão”, afiançado na época por Rodrigo Maia, expurgando o que havia de lavajatismo em seu governo. Apesar disso, os militares continuaram intransigentes em seu apoio ao projeto.

Talvez porque os militares tenham visto a oportunidade, com o “pactão das boiadas” (termo de Ricardo Salles), de assumir de vez o almejado posto de Poder Moderador do Novo Regime Bolsonarista. Mas com isso, retornaram à contradição fatídica de nossa história, entre Ordem e Progresso.

O bolsonarismo pode ser entendido como um movimento de desordem, desorganizador, que só pode sobreviver como um parasita do sistema político enquanto este está desfuncionalizado. O bolsonarismo não almeja jamais em ser um Partido da Ordem e muito menos um Poder Moderador. Não é por outro motivo que Sérgio Moro caiu e Paulo Guedes continua em pé. Pois o ultraliberalismo de Paulo Guedes é a ponta mais desorganizadora e agressiva do capitalismo, em sua “doutrina de choque”, aprendida na experiência pinochetista do ministro. Se Bolsonaro é funcional para o sistema neoliberal da banca financeira, o ultraliberalismo guedista é funcional para o bolsonarismo porque contribui para permanentemente corroer as instituições. Por isso, ao se aliar com o bolsonarismo, as Forças Armadas não têm mais como alimentar seu projeto nem de ser um novo Poder Moderador, nem de promover a missão pacificadora da ordem interna, de que se julgam imbuídas.

Por exemplo, agora no momento em que o bolsonarismo vê ser corroída sua base de sustentação, o Ministério das Minas e Energia, chefiado pelo general Bento Alburquerque,  lança por Medida Provisória (1031) uma espécie de “Boiada das Boiadas”, obedecendo docilmente ao plano neoliberal de privatizar um dos maiores patrimônios brasileiros, a empresa de energia ELETROBRÁS. Ora, o imenso sistema hidrelétrico brasileiro interligado, que inclui os fluxos das principais bacias hidrográficas brasileiras, é baseado num sistema que funciona como estabilizador tecnológico da economia brasileira como nenhum outro o é, nem mesmo aquele ligado ao setor de petróleo e gás. Assim, os militares,  em nome de uma ideologia que nenhum outro país do mundo está seguindo,  irão privatizar esse sistema, comprometendo a segurança energética do país e gerando mais instabilidade social com o esperado aumento das tarifas, que irá se somar ao aumento desesperador do custo do gás de cozinha. Está aí o gatilho para mais um tsunami de revoltas e tumultos populares.

Espertamente o bolsonarismo tem emaranhado as Forças Armadas ao seu (des)governo. O episódio envolvendo o general e ex-ministro da Saúde, Pazuello foi exemplar da esperteza bolsonarista de enredar o futuro das Forças Armadas ao de seu governo. O bolsonarismo ainda consegue manobrar o episódio trágico da pandemia do coronavírus para produzir uma espécie sui generis de “limpeza étnica eugenista” sobre as “classes perigosas” dos trabalhadores precarizados. Essa operação, em que a guerra política e cultural se transmuta em guerra biológica contra o próprio povo brasileiro, vulnerabiliza a sociedade e corrói de maneira decisiva todas as instituições, inclusive o próprio Exército Brasileiro, manchado pela direção ridícula e constrangedora de seu general de “logística”, Eduardo Pazuello. Alguns pensadores, como Eduardo Costa Pinto, têm chamado a pandemia do coronavírus de “as Malvinas do Exército brasileiro”, pelo seu caráter potencialmente deslegitimador da atuação das Forças Armadas frente ao Povo Brasileiro.

O episódio neofascista e grotesco da motocada e a subida de Pazuello ao trio elétrico bolsonarista foram o golpe de misericórdia no projeto militarista de se transformar num Poder Moderador da Nova República. Ao abraçar sem peias o bolsonarismo, as Forças Armadas jogaram no lixo não só a razoável aprovação popular de sua atuação, mas também a possibilidade de fazer a mediação entre a Ordem e o Progresso. Futuramente, os ganhos comezinhos nas sinecuras burocráticas parecerão pequenos e desprezíveis frente ao questionamento democrático de privilégios históricos.  Junto a Bolsonaro, o melhor que os militares podem no momento defender é mudar o lema de nossa brandeira para “Desordem e Regresso”.

Ironicamente, são os progressistas que hoje estão na luta pela paz social. Não se trata de defender meramente o retorno da ordem contra a desordem. A mediação entre Ordem e Progresso precisa recuperar a originalidade da frase de Comte, que incluía o princípio triádico do Amor. A absoluta falta de respeito no espetáculo grotesco bolsonarista e a completa ausência de sensibilidade das Forças Armadas pelo sofrimento do Povo, evidente no desprezo por aquilo que significa a perda de 500.000 brasileiros levados pela pandemia, só podem ser enfrentadas por um novo princípio de compaixão.  Em vez de Ordem e Progresso, talvez tenha chegado a hora de juntos, os progressistas, defendermos Paz, Compaixão e Desenvolvimento.

*Guilherme Preger é doutor em Teoria da Literatura pela UERJ. Autor de Fábulas da Ciência (Editora Gramma).

 

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