A fala (do) protagonista

Feliks Topolski, Canto dos palestrantes, 1973
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

O hiper-sujeito se constitui num misto de inflamações do éthos, para as quais não há medicamentos na drugstore

Em termos históricos, a transformação do súdito em hiper-indivíduo é recente: a metamorfose do súdito do rei em sujeito do capital começa na segunda metade do século XVIII[i] e se consolida como valor subordinado ao valor dinheiro,[ii] durante o Oitocentos. Um século e meio depois, mais ou menos na década de 1990, passou-se a supor que o sujeito inflacionara o próprio ego, contagiando também a sua concepção de mundo, de tal modo que passara a submeter as outras pessoas e coisas a seus caprichos egocêntricos, excludentes e exclusivos.[iii]

Se me permitem a analogia sanitária, o hiper-sujeito se constitui num misto de inflamações do éthos, para as quais não há medicamentos na drugstore. Sua personalidade invasiva, aliada à compulsão crescente de autoexposição, funciona quase ao mesmo ritmo das campanhas publicitárias mais agressivas. O hiper-indivíduo converteu-se em uma espécie de agência ambulante de autopropaganda e marketing pessoal, embebido de livre-concorrência. Empreendedor caseiro, ele se orgulha por acumular as funções de pesquisador, roteirista, diretor e apresentador de entretenimento, a mendigar patrocínio de empresas cujos serviços nem sempre têm relação com os materiais que ele veicula.

Não parece restar dúvida de que o advento da Internet, há cerca de trinta anos, favoreceu a pandemia dos mega-sujeitos. Inicialmente, eles transformaram diários e experiências pessoais em blogs; depois, remontaram pedaços de sua mirrada biografia em vlogs e fotologs; em seguida, passaram a postar (e cobrar) testemunhos, curtidas, compartilhamentos e afiliação de novos membros nas redes sociais, para, no estágio mais elevado da estupidificação, apresentarem-se como “administradores de canais”, ciosos da função ultramoderna de “preparar conteúdo”.

A julgar pelas filas quilométricas em livrarias e eventos literários, a exposição e o self-marketing têm sido eficazes: o best-seller passou de livro com êxito comercial (muitas vezes, com efetiva qualidade literária) a objeto de puro fetiche, cuja maior utilidade é assegurar selfies com ídolos de ocasião e registrar o autógrafo de opinadores metidos a graves, ou francamente superficiais, chancelados segundo a depauperada opinião de um exército de não-leitores. O conteúdo do livro que leva o nome da celebridade digital pouco importa;[iv] o que interessa é a certificação (por imagem e por escrito) de que o follower esteve em companhia do ídolo-de-ocasião durante alguns segundos.

Mas, convenhamos. Havia muito tempo que o protagonista coexistia com a sua legião de admiradores e fãs (provavelmente, desde meados do século XIX). Que o diga a proliferação de salões literários, sessões de vernissage, concertos de câmara, exposições com curadores, lançamento de livros etc.,[v] durante o Oitocentos. Nesse sentido, parece inegável que o comportamento dos entertainers da internet apenas potencializou, via world wide web, o que numerosas pessoas já faziam fora dos canais de vídeo, das redes sociais e dos grupos de mensagem eletrônica.

Portanto, a questão que mais nos deveria interessar é a crescente necessidade de protagonismo dos sujeitos e mega-indivíduos;[vi] e menos o meio (presencial ou remoto) em que mecanismos dessa natureza acontecem. Evidentemente, haveria muito o que considerar: a idealização do projeto, a produção do cenário, a encenação do palestrante, a maneira como ele caminha, o modo como se veste, a manutenção do sorriso geral e irrestrito, a mesmice anti-criativa dos autógrafos que concede, as selfies que coleciona etc.[vii]

Concentremo-nos, porém, no léxico e na fala (do) protagonista. Caricatura de si mesmo, o representante dessa curiosa espécie armazena um punhado de frases de efeito – algumas delas centradas em torno de palavras guarda-chuva, tais como: “este projeto não seria possível sem a colaboração/assistência de minha equipe”; “meu objetivo era devolver à sociedade o que ela investiu em mim”; “este material é uma ferramenta que auxiliará no trabalho de futuros pesquisadores, já que há muito por se fazer”.

Obviamente, as fórmulas discursivas variam. Mas, em linhas gerais, o protagonista enaltece o seu projeto; fala sobre si mesmo e reafirma a relevância do trabalho artístico/técnico resultante. Sua postura, seus gestos e comportamento estão atrelados a clichês com que ocupa o tempo de duração do evento. Por extensão, a sua fala resulta autorreferente, longa e unilateral.

E como confunde extensão de tempo com primazia, frequentemente ele interrompe, complementa ou se apossa do discurso alheio – feito um soberano que monologasse em gabo de si e em detrimento dos outros,[viii] por ter mais e melhor a dizer. Quando isso acontece, mediadores e convidados desempenham o papel de mero vassalos, mantidos à sombra da genialidade do protagonista, materializada em (não importa qual) produto: forma mercadoria do seu empenho pessoal, talento particular e relevância quase universal.[ix]

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

 

Referências


CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

ECO, Umberto. Pape Satàn aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2017.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S. Philipson. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.

HANSEN, João Adolfo. Aula magna. s/l: Zazie Edições, 2019, p. 10.

LIPOVETISKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2007.

LUCAS, Fábio. Literatura e comunicação na era da eletrônica. São Paulo: Cortez, 2001.

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2006.

 

Notas


[i] “Também o profissional burguês, como o comerciante, por exemplo, tem sua tática e sua maneira específica de lidar com as pessoas. Contudo, é raro que ela chegue a integrar o outro em sua totalidade, como no caso do cortesão, pois este geralmente mantém um relacionamento que dura a vida toda com cada um dos outros indivíduos de sua sociedade” (Elias, 2001, p. 125).

[ii] “Quando a mercadoria toma a palavra o que ela diz? Dinheiro e banalidade, vulgaridade e dinheiro” (Hansen, 2019, p. 10).

[iii] “[…] a corrida da competição faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial” (Lipovetsky, 2007, p. 77).

[iv] “As mídias eletrônicas de massa destroem o discurso racional marcado pela cultura livresca. Produzem uma midiocracia” (Han, 2022, p. 27).

[v] “A sociedade está sendo dirigida para impor uma educação cada vez mais técnica, o que equivale a dizer: cada vez menos literária. Enquanto isso, aumenta o número de escritores sem público” (Lucas, 2001, p. 22).

[vi] “[…] tecnociência, consumo personalizado, arte e filosofia em torno de um homem emergente ou decadente são os campos onde o fantasma pós-moderno pode ser surpreendido” (Santos, 2006, p. 11).

[vii] “[…] é impossível entender os mecanismos de poder atuais sem atentar para o fenômeno do neoliberalismo, essa racionalidade governamental, essa normatividade e esse imaginário que se originam da premissa de que o mercado é o modelo para todas as relações sociais, o que demonstra uma sociabilidade marcada pela concorrência e a crença de que tudo (e todos) pode(m) ser negociado(s). (Casara, 2021, p. 44).

[viii] “Com a crise do conceito de comunidade, emerge um individualismo desenfreado, onde ninguém mais é companheiro de viagem de ninguém, e sim seu antagonista, alguém contra quem é melhor se proteger” (Eco, 2017, p. 10).

[ix] “A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objeto quanto sob o subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva nas mercadorias” (Lukács, 2012, p. 200).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ladislau Dowbor José Geraldo Couto Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Costa João Adolfo Hansen Tarso Genro Mário Maestri Anselm Jappe José Costa Júnior Luciano Nascimento Daniel Afonso da Silva José Micaelson Lacerda Morais Alexandre de Freitas Barbosa Lincoln Secco Flávio R. Kothe Flávio Aguiar Gilberto Lopes Tales Ab'Sáber Eugênio Trivinho Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fábio Konder Comparato Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Sandra Bitencourt Elias Jabbour Francisco Fernandes Ladeira Samuel Kilsztajn Ronald Rocha Chico Alencar Bernardo Ricupero Ronald León Núñez Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Fabbrini Atilio A. Boron Afrânio Catani Michael Roberts Celso Frederico Otaviano Helene Ari Marcelo Solon Marilena Chauí Matheus Silveira de Souza Marcos Aurélio da Silva Manchetômetro Gabriel Cohn Jorge Luiz Souto Maior Jorge Branco Slavoj Žižek Claudio Katz Francisco Pereira de Farias Eduardo Borges Bento Prado Jr. João Sette Whitaker Ferreira Chico Whitaker Luiz Marques Carla Teixeira Ricardo Musse João Carlos Loebens Gerson Almeida Marjorie C. Marona Eleonora Albano Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo Antônio Sales Rios Neto Celso Favaretto André Márcio Neves Soares Julian Rodrigues Eugênio Bucci Érico Andrade Maria Rita Kehl Armando Boito Luiz Renato Martins Luiz Roberto Alves Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Avritzer Ronaldo Tadeu de Souza Milton Pinheiro Andrew Korybko José Machado Moita Neto José Dirceu Dênis de Moraes Tadeu Valadares Manuel Domingos Neto Vanderlei Tenório Luis Felipe Miguel Henry Burnett Heraldo Campos Airton Paschoa Annateresa Fabris Andrés del Río Alexandre Aragão de Albuquerque Vladimir Safatle João Carlos Salles José Raimundo Trindade Alysson Leandro Mascaro Berenice Bento Vinício Carrilho Martinez Paulo Sérgio Pinheiro Remy José Fontana Paulo Capel Narvai Marcelo Guimarães Lima Juarez Guimarães Thomas Piketty Marilia Pacheco Fiorillo Gilberto Maringoni Osvaldo Coggiola Ricardo Antunes Plínio de Arruda Sampaio Jr. Caio Bugiato João Paulo Ayub Fonseca Eliziário Andrade Eleutério F. S. Prado Sergio Amadeu da Silveira Liszt Vieira Francisco de Oliveira Barros Júnior Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Michel Goulart da Silva Fernão Pessoa Ramos Leda Maria Paulani Luiz Werneck Vianna Mariarosaria Fabris Antonino Infranca Fernando Nogueira da Costa Igor Felippe Santos Boaventura de Sousa Santos Bruno Machado João Feres Júnior Alexandre de Lima Castro Tranjan Antonio Martins Rubens Pinto Lyra Marcus Ianoni Lucas Fiaschetti Estevez Denilson Cordeiro Dennis Oliveira Carlos Tautz Paulo Fernandes Silveira Luiz Bernardo Pericás José Luís Fiori Luiz Carlos Bresser-Pereira Jean Marc Von Der Weid Leonardo Sacramento Marcelo Módolo Valerio Arcary Paulo Martins Luís Fernando Vitagliano Walnice Nogueira Galvão João Lanari Bo Rafael R. Ioris Marcos Silva Leonardo Boff Salem Nasser Lorenzo Vitral Rodrigo de Faria Daniel Brazil André Singer Jean Pierre Chauvin Kátia Gerab Baggio Renato Dagnino Michael Löwy Ricardo Abramovay

NOVAS PUBLICAÇÕES