Por LUIZ EDUARDO NEVES DOS SANTOS*
Atualmente, em meio a mais grave pandemia em cem anos, a fome atingiu cerca de 19 milhões de brasileiros em 2020
“Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo à personalidade humana como a fome quando alcança os limites da verdadeira inanição” (Josué de Castro, Geografia da fome).
Em 1946, quando Josué de Castro publicou Geografia da Fome, o Brasil tinha 41 milhões de habitantes e padecia de graves problemas: a esperança de vida era de 45 anos, a taxa de mortalidade infantil era de 147 óbitos a cada mil nascidos vivos, 56% da população acima dos 10 anos de idade era analfabeta e 69% vivia no campo. O livro pode ser considerado o mais relevante estudo socioespacial sobre o tema da fome já realizado no Brasil até hoje, primeiro pelo seu pioneirismo, segundo porque se destaca pelo rigor científico em abordagem qualitativa, feito em uma escala de análise ampla e complexa, com sólida base teórica e método geográfico interpretativo, e em terceiro lugar pela força e coragem da denúncia de um tema quase que proibido na época, como o próprio autor menciona no prefácio da primeira edição.
A obra apresenta um panorama das carências vitamínicas, proteicas e minerais no Brasil. Josué de Castro faz um mapa de áreas alimentares no país, dividindo-o em três tipologias, a saber: 1. Área de fome endêmica (Amazônia e todo o litoral nordestino, descrito como “nordeste açucareiro”); 2. Área de epidemias de fome (Sertão nordestino); e 3. Área de Subnutrição (territórios equivalentes às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul atuais, chamando-as de “Centro-Oeste” e “Extremo Sul”). A parte final do livro é dedicada ao “Estudo do Conjunto Brasileiro”.
Foi no território do “Sertão do Nordeste” que Josué de Castro mais concentrou seus esforços de análise, não por acaso, a região era castigada por episódios de fome severa, devido à estiagem cíclica, provocando óbitos e obrigando o sertanejo a migrar para outros lugares, realidade retratada por Cândido Portinari, em 1944, na sua famosa tela “Retirantes”, na qual mostra uma família em situação de grave desnutrição. A obra apresenta cores fúnebres, tons terrosos e elementos que simbolizavam a morte e a miséria, com os corpos esqueléticos, uma criança maior, fadigada e subnutrida, pendurada nas ancas da mãe e outra com “barriga d’água”. Todos os membros da família se apresentam descalços sobre terra seca, com olhares amedrontados e tristes, situação que dois anos mais tarde seria analisada por Josué de Castro em sua obra máxima.
Tendo como base teórica e metodológica, geógrafos franceses como Pierre Deffontaines e Vidal de La Blache, discutindo a temática da fome com autores naturalistas como Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, se utilizando da riqueza semântica, poética e narrativa de romancistas como Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, travando duros debates com Gilberto Freyre e citando os importantes estudos sobre alimentação do médico e conterrâneo Orlando Parahim, Josué de Castro elabora uma profícua análise do subdesenvolvimento e dos episódios de fome aguda no sertão, agravadas nos períodos de estiagem crítica, no entanto sua avaliação para a problemática vai muito além das causas ambientais, climáticas e da irregularidade pluviométrica, algo impregnado no imaginário e na consciência nacional da época. Desde a publicação, em 1937, de Documentário do Nordeste, que o autor já afirmara que a miséria e a fome na região era um estorvo, explicado por dimensões de caráter histórico, fundiário, político e social.
Ao analisar o Brasil, o intelectual de Recife fez duras críticas ao pensamento dominante da época, aquele que colocava a industrialização como a única via para o desenvolvimento do país. Chamou atenção para que o governo investisse também na economia agrícola, por isso o “dilema brasileiro” descrito no subtítulo da obra: “pão ou aço”, alimentação ou industrialização. A resolução, segundo ele, seria compatibilizar pão e aço segundo a imposição das circunstâncias sociais e da disponibilidade econômica existente. O principal caminho seria a instauração de uma ampla reforma agrária, sendo preciso superar o obstáculo jurídico da propriedade privada mediante “justo valor” a ser pago pelo Estado.
No decorrer destes 75 anos da primeira edição de Geografia da Fome, o Brasil passou por transformações substanciais, resolveu o seu problema de abastecimento alimentar, aumentou e diversificou sua produção agrícola, e de um modo geral sanou problemas mais específicos de carências alimentares, comuns nos anos 1940. Embora a chaga social da fome nunca tenha sido resolvida no país, mesmo com os avanços reais alcançados pelas gestões petistas, culminando com a saída do Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Mas desde o início do segundo mandato de Dilma Roussef, momento do aprofundamento de uma agenda neoliberal, de ajuste fiscal e do golpe em 2016, houve uma maior expansão das desigualdades sociais no país, resultado do baixo crescimento econômico, da redução drástica dos investimentos públicos, da flexibilização no mercado de trabalho, da turbulência política e da retração dos gastos com políticas sociais.
Atualmente, em meio a mais grave pandemia em cem anos, a fome atingiu cerca de 19 milhões de brasileiros em 2020 de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), um documento de 66 páginas que atesta ainda que 116,8 milhões de pessoas no país convivem com algum tipo de insegurança alimentar em seu cotidiano.
O mais é revoltante é constatar que, a despeito das transferências de renda em 2020 e 2021, destinadas a famílias vulnerabilizadas, o governo federal não demonstra preocupação com a calamidade da fome em território nacional, visto que não há qualquer agenda política de estímulo a implantação de programas sociais para tratar o problema. A omissão e a inoperância do poder público federal são premeditadas, fazem parte de um projeto necropolítico explícito, observado na desastrosa gestão do país em relação à pandemia, que levou o Brasil ao 2º lugar em mortes no mundo em termos absolutos e o 7º lugar em mortes por milhão de habitantes. Ao mesmo tempo, tal projeto contribui para o sucesso de grupos específicos em seus objetivos de acumulação, qual seja o aumento dos desmatamentos, da grilagem de terras e dos garimpos ilegais na Amazônia, além do incentivo ao agronegócio, aos latifúndios e às monoculturas, ocasionando ameaças graves às comunidades tradicionais, suscetíveis à destruição de seus territórios e de seus modos de vida pela sanha de megaprojetos mineiros, agropecuários e industriais.
Pelo exposto, é inadiável que se resgate e coloque em prática o legado de Josué de Castro. Sua Geografia da Fome nos mostra ainda hoje que os interesses mercantis de acumulação – naquilo que José Luís Fiori designou de “pacto conservador” – materializados pela aliança entre a elite nacional e o grande capital financeiro, continuam sendo os principais responsáveis pela robusta concentração de riqueza, expansão do racismo ambiental, pela expropriação de camponeses, pela opressão às comunidades indígenas e quilombolas, extermínio de populações pretas nas cidades e pela aniquilação de biomas e ecossistemas no país. As consequências deste processo são o difuso alastramento do desemprego, da miséria e da fome, ratificando nosso persistente subdesenvolvimento, algo que só começará a ser superado, como o próprio Josué preconizou décadas atrás, com a definitiva emancipação e soberania alimentar do povo brasileiro.
*Luiz Eduardo Neves dos Santos, geógrafo, é professor do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).