Por ANDRÉ SINGER*
Observações sobre as ideias do intelectual e dirigente petista, que faria 80 anos nesta semana
“Oi Marco, tudo bem? Preciso trocar uma ideia com você”, começava eu. “Não será possível”, respondia ele. “Ué, por que não”? “Por que não tenho ideias para trocar”. Durante quase quarenta anos, este foi o tom predominante dos nossos diálogos. Ele nunca deixava cair a peteca do humor. Mesmo em momentos difíceis, de decisões importantes, era um modo sutil e corrosivo de manter a crítica em alta, inclusive sobre nós mesmos.
Mas a blague envolvia uma inverdade. Marco Aurélio tinha ideias. Pensava e analisava bem, o que me levou volta e meia a consultá-lo desde que voltou ao Brasil, se não me engano, na segunda metade dos anos 1970 (tanto tempo passado, os fatos se embaralham). Não sei bem por quê, não me lembro de tê-lo conhecido no Chile, mas assim que chegou em São Paulo, Eder Sader me falou dele, como parte de um grupo de companheiros e companheiras que haviam tomado uma orientação autonomista na França.
Desde então, ainda que mediado por hiatos de silêncio, a cada tanto eu tinha o prazer de ouvi-lo, rirmos juntos, lembrarmos do Chile e, em seguida, analisar a situação presente. Numa série de diálogos que se deram em torno da eleição de 2002, Marco Aurélio me disse duas coisas que acabaram por influenciar o rumo do meu pensamento após deixar o governo em 2007.
A primeira conversa, creio, ocorreu na sede do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, perto da Praça da Sé, no primeiro semestre de 2002. Falávamos sobre o programa do PT para o pleito, cuja confecção ele coordenou inúmeras vezes. No meio de um raciocínio, virou-se para mim e disse: “Escuta, tem um aspecto que você precisa entender. Existe o petismo, mas hoje em dia existe uma outra coisa, independente, que é o lulismo”.
Apesar do jeito levemente irônico de enunciar a frase, percebi que havia ali, exatamente, uma ideia. A projeção da liderança de Lula, mesmo que indissociável do PT, tinha contornos próprios, com exigências, possibilidades e inflexões que precisavam ser consideradas por si mesmas. Não se tratava de aumentar ou diminuir o partido, mas de dar a César o que é de César (passe o trocadilho). Analisar é isso.
Como se sabe, nos meses subsequentes a variável lulista, com a vitória, daria um salto de importância e foi, talvez, no início do mandato que ocorreu a segunda conversa chave. Nela, o tema eram os planos referentes ao Nordeste. É provável que eu buscasse encaixar o assunto nos esquemas da luta de classes, quando Marco, de novo, surgiu com o inesperado. “Olha, existe uma componente rooseveltiana na concepção deste governo”.
Tal como fora surpreendido pela existência do lulismo, nunca tinha me passado pela cabeça que o modelo reformista em curso pudesse passar não pela experiência socialista europeia, mas pela democrata norte-americana. Com o tempo percebi que ele estava certo. Uma noção de capitalismo popular, com raízes nos EUA, explicaria diversas iniciativas governamentais como, por exemplo, a do crédito consignado.
Por isso, usei os dois toques nos meus trabalhos posteriores, sempre o avisando e agradecendo publicamente, como mais uma vez faço aqui. Generoso, desapegado, amigo, Marco Aurélio recomendava enfaticamente os textos a outros amigos, sem nunca dizer, creio, que os havia inspirado.
Na última vez que nos vimos, penso que seis meses antes de sua morte, outra vez o cenário era o do Diretório Nacional do PT no centro da cidade. Conversando sobre o quadro, saímos e caminhamos junto com a historiadora Selma Rocha até a estação do metrô. Estava claro, para mim, e creio que para ele, que o sonho rooseveltiano se quebrara. Já tínhamos entrado nesta conjuntura regressiva que, quatro anos depois, ainda nos envolve. Ao me despedir, não sabia que precisaríamos sair dela sem as ideias e o humor de Marco Aurélio Garcia.
*André Singer é professor titular de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras).
Publicado originalmente na revista Teoria e debate.