Por Flavio Aguiar*
Berlim festejou neste sábado, 09 de novembro, 30 anos da queda do seu Muro, ocorrida na madrugada de 09 para 10 de novembro de 1989. O ponto alto das comemorações foi a realização no começo da noite de um concerto com múltiplos artistas num palco especialmente construído para este fim junto ao Portão de Brandemburgo. O epicentro do espetáculo esteve a cargo da Orquestra Sinfônica de Berlim, fundada em 1570, sob a regência de Daniel Barenboim. Descrevo a seguir algumas reminiscências de meu relacionamento com o Muro, primeiro à distância, depois ao vivo e a cores.
Primeira lembrança
Meu primeiro contato com imagens e a realidade do Muro de Berlim aconteceu em 1963, aos 16 anos de idade. Militava politicamente então como estudante secundarista no Colégio Anchieta, de Porto Alegre. Compareci a uma reunião numa das sedes semiclandestinas do Partido Comunista Brasileiro, situada nos altos do Cinema Cacique, na popular Rua da Praia. Digo semiclandestina porque o Partidão, como era conhecido, estava na ilegalidade, mas tinha sedes e reuniões conhecidas; tinha até uma livraria e, em priscas eras, até mesmo um bar, onde trabalhara, como garçom, um primo de meu pai.
Nesta sessão a que compareci (onde estavam presentes jovens universitários que mais tarde organizariam a chamada Dissidência do PC e a partir daí o futuro POC) apresentou-se um filme sobre o então recente Muro de Berlim. O filme defendia a construção da barreira. Recordo vagamente cenas mostrando imagens de produtos eletrônicos – câmeras fotográficas, gravadores, rádios, entre outros – apreendidos como contrabando da Berlim Ocidental para a Oriental, a fim de solapar as bases econômicas da sociedade comunista. Esta seria uma das razões da construção do Muro: um gesto defensivo diante da agressão capitalista.
Entretanto o filme, que eu me lembre, não tocava numa das justificativas já então alegadas para o fechamento da fronteira entre as duas Berlins: a fuga de cérebros e trabalhadores qualificados de um lado para o outro da fronteira. Esta fuga levava da Alemanha Oriental para a Ocidental, sobretudo, engenheiros, técnicos, médicos, cientistas (entre eles os cobiçados físicos na época da Guerra Fria), professores universitários e advogados. O regime comunista se ressentia deste êxodo; investira pesado na reconstrução da devastada Alemanha Oriental, inclusive no setor educacional; e agora via os primeiros frutos deste esforço escoar-lhe entre os dedos levados seja por razões econômicas ou por anseios de maior liberdade política, pessoal e profissional que o “outro lado” lhes oferecia.
Desde a divisão quadripartite da Alemanha e de Berlim entre as potências vencedoras da Segunda Guerra, cerca de 3,5 milhões de alemães haviam passado do lado Oriental para o lado Ocidental. Com o fechamento da fronteira entre as duas Alemanhas em 1952, Berlim tornara-se o principal funil desta passagem. Como era, na verdade, feita por duas cidades geminadas, era fácil passar de um lado para o outro. Aparentemente esta foi a razão prática da decisão de construir o Muro, fechando a passagem na cidade dividida. Há estimativas de que este êxodo provocou um prejuízo entre 7 e 9 bilhões de dólares à economia da Alemanha Oriental. Até hoje pairam dúvidas sobre de quem partiu a ideia de construir a barreira, se do primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev ou do dirigente alemão Walter Ulbricht. O certo é que este último assinou a ordem de construção do Muro no dia 12 de agosto de 1961. No dia seguinte a obra começou.
Segunda lembrança
Dois ou três anos mais tarde assisti, ainda em Porto Alegre, o filme O espião que saiu do frio (Martin Ritt, 1965), baseado no romance homônimo (1963) de John Le Carré, até hoje um de meus autores favoritos. (idem, Martin Ritt como diretor de cinema). Richard Burton era o protagonista masculino, no papel de Alec Leamas, um agente do serviço de espionagem e contraespionagem britânico, contracenando com Claire Bloom, no principal papel feminino.
A rigor, o título em português deveria ser “O espião que saiu da geladeira”, porque o cold do título não se refere à temperatura, mas sim ao jargão de alguém ser “congelado” como agente, para tornar verossímil sua defecção para o outro lado. Lemeas passa a beber demasiadamente (vai se tornar de fato alcoólatra, como Burton na vida real), se envolve em agressões físicas, é preso e condenado a meses de prisão e assim se torna palatável para que o outro lado o aceite como trânsfuga, propiciando sua fuga para a Alemanha Oriental, para a Berlim comunista.
Não vou contar detalhes do filme: quem se lembra, vai relembrar; quem não se recorda ou ainda não assistiu, reveja ou veja, vale a pena. Direi apenas que Alec Lemeas descobre que ele e sua amada Nan Perry (a personagem de Claire Bloom), uma comunista britânica idealista, foram envolvidos numa trama sórdida arquitetada de ambos os lados da espionagem, e tentam escapar atravessando clandestinamente o nesta altura já famoso Muro de Berlim.
O que era o Muro, nesta altura dos acontecimentos? Bom, para começo de conversa, de fato um Muro, de tijolos e cimento, com a ajuda de muito arame farpado e a presença armada de guardiões de lado a lado, mas, sobretudo, do lado Oriental/Soviético, que tinham ordem de atirar em quem tentasse atravessa-lo sem permissão. Com o passar do tempo, o Muro tornou-se uma macroestrutura, extremamente complexa. Havia dois muros: uma primeira barreira, mais imponente, em geral formada por enormes placas de concreto com 3 ou 4 metros de altura, e uma segunda barreira mais adiante, de menor porte, mas além de tijolos, formada também por cercas de arame farpado. Ambas ficavam em território tecnicamente do lado Oriental, e o espaço entre as duas era conhecido como “A Faixa da Morte”. Quem ali entrasse sem autorização, deveria morrer.
O Muro cercava completamente Berlim Ocidental, formada pelos setores controlados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Tinha um perímetro de 157 km, digamos, grosso modo, elipsoidal. Destes, cerca de 43 km separavam a Berlim Ocidental da Oriental; o restante separava o lado capitalista de outras municipalidades do mundo comunista. Havia 302 torres de controle ao longo dele e 20 bunkers militares. O lado Oriental o chamava de “Muro de Segurança Anti-Fascista”; mas ao longo do tempo ele se transformou no símbolo mais popularizado da falta de liberdade democrática no mundo comunista. Houve graves consequências. Famílias ficaram divididas. Trabalhadores do lado Ocidental que moravam do lado Oriental perderam seus empregos. A passagem do lado Ocidental para o lado Oriental era teoricamente livre, embora dependesse da obtenção de vistos pedidos com semanas de antecedência. O vice-versa não era livre, a não ser para idosos e aposentados.
Havia nove passagens de um lado para o outro. Três se tornaram famosas. A primeira foi o chamado (do lado Ocidental) Checkpoint Charlie. Ali, em outubro de 1961, dois meses, portanto, depois do fechamento da fronteira, quase começou a Terceira Guerra Mundial. Devido a um incidente inicialmente menor, a paz armada entre os vencedores da Segunda Guerra ficou por um fio: 10 tanques norte-americanos e 10 soviéticos ficaram frente a frente, em posição de combate, durante horas a fio, até que um contato telefônico direto entre o presidente John Kennedy e o primeiro-ministro Nikita Khrushchev começasse a desmontar a possibilidade de confronto. Os tanques foram se retirando, alternadamente, um de cada lado.
A segunda passagem era a da estação de metrô de Friedrichstrasse. Embora situada totalmente do lado Oriental, ela era o principal ponto de passagem para civis. Ficou conhecida como “O Palácio das Lágrimas”, porque era ali que as famílias com moradores de um lado e do outro se separavam depois de uma visita.
Finalmente, a terceira era a Ponte de Glienicke que, através do rio Havel, unia Berlim Ocidental e a cidade de Potsdam, do lado Oriental. Ficou conhecida como “A Ponte dos Espiões”, porque ali eram trocados prisioneiros de um lado e do outro. Nem todos eram espiões: conheço alguém que, ainda muito jovem, tentou passar ilegalmente do lado Oriental para o lado Ocidental e foi preso por isto. Acabou sendo incluído numa leva destas trocas.
Outros contatos e a Queda
O Muro de Berlim continuou me seguindo pela vida afora, ou vice-versa, através do cinema e da literatura. Continuei a ler os romances da Guerra Fria de Le Carré e a ver filmes: Funeral em Berlim, 007 contra Octopussy, Adeus, Lênin, A ponte dos espiões, além de outros. Vieram também a leitura de livros de autores que tinham visitado a ex-capital alemã, como João Ubaldo Ribeiro e Ignácio Loyola Brandão. Este último escrevera que considerava a Berlim capitalista a última cidade medieval do mundo, porque dispunha de um muro que a cercava e era efetivo.
Pude também reconstituir algo de sua história e de suas tragédias. Durante sua existência, de 1961 a 9 de novembro de 1989, estima-se que houve 100 mil tentativas de atravessa-lo clandestinamente. Todos os meios imagináveis foram usados: disfarces, túneis escavados, balões de ar quente com ventos favoráveis, porta-malas de carros, arremesso de veículos contra ele, fugas a nado (parte do “Muro” era fluvial) e por aí afora. Estima-se que 5 mil dessas tentativas tiveram sucesso.
Entretanto muita gente morreu no meio do caminho. Há quem fale em mais de 200 mortes. Há a confirmação de pelo menos 140. Alguns poucos soldados do lado Oriental foram baleados por gente que fugia. Houve casos pungentes, como o do jovem que foi baleado ao tentar atravessar o Checkpoint Charlie e ficou sangrando até morrer, preso no arame farpado, com imagens transmitidas pela televisão. Nem os guardas do lado Ocidental nem os do lado Oriental se arriscaram a busca-lo, de medo que o outro lado lançasse mão das armas. Só depois de morto vieram os guardas do lado Oriental e retiraram o cadáver. Enfim, o tal “Muro de Segurança Anti-Fascista” tornou-se um desastre político para o lado Oriental.
Com a crise do mundo comunista que terminou levando a seu colapso, cresceram as pressões internas e externas para que o Muro fosse abolido. Ainda assim, o que aconteceu foi uma surpresa total. Em janeiro de 89, a menos de um ano de sua queda, o então premiê da Alemanha Comunista, Erich Honecker, previa sua permanência ainda por meio ou um século.
Tenho notícia de think tanks realizados neste ano com discussões sobre como seria o mundo duas ou três décadas depois: ninguém falou da Queda do Muro de Berlim. Mas as pressões de todo lado e as manifestações do lado Oriental cresceram. Países do agonizante Bloco Soviético começaram a abrir suas fronteiras. Para os alemães orientais, berlinenses incluídos, a Hungria e a então Checoslováquia tornaram-se rotas de passagem que possibilitariam a ida ao lado Ocidental.
Mas o Muro caiu de forma completamente inesperada. Diante das pressões e das crescentes manifestações na Alemanha Oriental, inclusive na capital, o governo comunista decidiu anunciar a intenção de abolir a necessidade de visto ou permissão especial, ou ainda a possibilidade e facilita-los para os cidadãos que desejassem visitar o lado Ocidental. A medida deveria entrar em efeito a partir do dia 10. Entretanto o encarregado de anunciar a medida, Günter Schabowski, foi mal informado ou atrapalhou-se no momento de falar com repórteres de televisão e outras mídias, e terminou dizendo que a medida era de efeito imediato. Graças a este engano, multidões começaram a se concentrar em alguns dos pontos de passagem de um lado para o outro, exigindo a sua abertura imediata. Os guardas orientais não puderam ou não quiseram reprimir os manifestantes, e estes conseguiram, então, passar. Foram recebidos do outro lado por multidões que já festejavam a abertura do Muro, com flores e espumantes. E assim o Muro “caiu”.
Conto anedota real para ilustrar a surpresa. Um jovem casal morava do lado Ocidental. O marido tinha família numerosa do lado Oriental, e eles costumavam visitar estes parentes. Na noite de 9 para 10 de novembro o casal foi dormir como sempre, por volta das onze da noite. Acordaram às duas da madrugada com gente batendo na campainha. Era a família – toda ela – do lado Oriental. Eles (o casal) moravam num apartamento pequeno. “Meu Deus”, um comentou para o outro, “eles fugiram, e agora como ficarão aqui no nosso apartamento?” Então perceberam que os parentes traziam garrafas de espumante ou champanhe, e estes falaram: “Não fugimos; o Muro caiu”. Foi uma bomba, no bom sentido.
Seguiram-se semanas e semanas de intensas festas, reencontros e desencontros de todo tipo; amizades e casamentos fizeram-se, desfizeram-se e refizeram-se efusivamente. Com o passar do tempo, a vida voltou a entrar nos eixos, os antigos ou em novos. E até hoje paira a pergunta: o que aconteceu de fato? Houve uma reunificação das Alemanhas, ou a anexação da derrotada pela vitoriosa? Oh, dúvida cruel…
Olho no olho
Em abril de 1996, quase cinco anos depois da Queda, vim a Berlim pela primeira vez. E é claro: acabei encontrando-me, olho no olho, e de viva voz, com ele, o Muro. Ou o que restava dele.
Entre meados de 1990 e o final de 1991 houvera um frenesi de demolição do Muro. Todo mundo queria tirar sua casquinha, ter seus pedaços de concreto do famigerado em casa. E houve uma demolição oficial. Acabar com o “Muro da Vergonha”. Aparentemente, pouco restava de pé.
Mas as coisas não se passaram bem assim. O Muro está impresso nos espíritos. Assisti discussões acaloradas entre berlinenses ex-orientais e ex-ocidentais, em torno do espólio do passado. Nelas ouvi que um lado tinha sabotado a memória do outro. Numa destas discussões, cheguei a ouvir um lado dizendo ao outro: “ei, vocês, aí do outro lado, falem mais alto para que possamos ouvir”. Finda a discussão, ambos os lados saíram pisando firme, com ar (ambos) de terem posto o “outro lado” no seu devido lugar.
Com o passar do tempo, Berlim deixou de ser um burgo “distante do mundo” para tornar-se uma metrópole cada vez mais capitalista e integrada à rota do turismo internacional. Milhões de turistas acorrem à nova capital alemã anualmente. Entre outras coisas, o que eles querem ver? Ora, o Muro! Houve até um político que propôs a sua reconstrução, ideia que felizmente não prosperou. Mas hoje o Muro é protegido com força de lei. É contravenção tirar pedaços dele. Ainda vai virar Patrimônio da Humanidade, via UNESCO, se é que já não virou.
E ele lá está. Há recantos turísticos e estéticos, em que suas placas de concreto, sobreviventes, são arrendadas por artistas que deixam ali suas obras temporariamente, mas registradas para sempre no mundo digital. Prefiro visitar suas paragens mais longínquas, agora perdidas no meio de matagais fechados, ou dividindo cemitérios, cujas tumbas tiveram de ser mudadas de um lado para o outro quando de sua construção. A cidade está se reapropriando, de diferentes maneiras, de seu Muro. Ele não vai desaparecer. Vai transformar-se. Está virando um lieu de mémoire, na acepção de Pierre Nora. Objeto de veneração e culto. Na melhor tradição alemã e berlinense, uma das únicas que erige e venera monumentos àquilo que… não deve ser feito!
Termino esta crônica evocando duas outras anedotas verdadeiras.
Em Berlim Oriental o movimento de jovens, com hippies, contracultura, etc., eram mal e mal tolerado pelas autoridades comunistas, apenas para servirem de cartão-postal demonstrando que havia liberdade no mundo comunista. Eram corruptelas da decadência capitalista. O movimento concentrou-se em alguns prédios de certa rua, ocupados pelos jovens.
Quando o Muro caiu, foi um delírio: a liberdade chegava, era o fim da opressão do regime detestado. E era mesmo. Como já disse antes, o tempo passou. E um belo dia chegou ali a Polícia da cidade reunificada. Houvera compras e/ou recuperação de propriedades; havia um processo de reintegração de posse; e no novo mundo da liberdade afinal antevista e presente, os jovens tinham que desalojar-se voluntariamente, ou seriam despejados à força. Saíram, desfrutando desta nova liberdade de movimentos arduamente conquistada, tanto quanto eu saiba.
Certa vez, ainda naquele primeiro ano de 1996, fui visitar com minha hoje companheira um recanto tocante, um memorial às vítimas das repressões aos movimentos de 1848 e de 1918, no parque de Friedrichshain, na antiga Berlim Oriental. Ao redor de um amplo, mas aconchegante quadrado de grama dispunham-se ciprestes e pequenas lápides das vítimas. No centro, uma pedra de granito com o nome de todas elas.
Um simpático velhinho acercou-se de nós e perguntou o que fazíamos ali, já que, disse ele, ninguém mais visitava aquele recanto. Minha então possível namorada explicou-lhe que eu era um professor visitante, do Brasil, etc. e tal. E ele nos mostrou um dos nomes naquela pedra, no centro do gramado: “Ludwig” – recordo bem. E explicou que, quando puseram a pedra ali, durante o regime Oriental, não se conhecia o sobrenome daquele “Herr Ludwig”. Mas depois se ficou sabendo, e ele, que fora professor de História, contava isto para seus alunos, quando eles ali vinham. “Hoje ninguém mais liga para isto”, disse, melancolicamente. Perguntamos então se ele tinha saudades do regime anterior. “Não”, disse, “o regime acabou se tornando um regime policial, mais ocupado em nos controlar do que em enfrentar o outro lado”. “Eu tenho saudades”, completou, “dos sonhos que eu tinha e hoje não tenho mais”.
Nada tivemos a acrescentar. Tampouco tenho agora, a não ser a reverência por este exemplo de professor.
*Flávio Aguiar é escritor, jornalista, e professor de literatura brasileira na USP.