Olhar para a outra margem do rio

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

Para sair da demência bolsonarista é preciso romper a ideologia da classe dominante, e toda manipulação política

Como se faz para olhar a realidade concreta? A partir de que sensibilidades, de quais conhecimentos, de quais fontes de informação e de quais análises dos fatos? Como tomar posse de um objeto pensado, sem deixar-se manipular pelos meios de comunicação, nem pela mistificação dos aparelhos do Estado, e assim observá-lo de diversas perspectivas, para obter algum conhecimento verdadeiro? Afinal, a verdade possui em si uma típica força libertadora que nos faz mudar o rumo ou ampliar nossa convicção. Como pode uma democracia sobreviver se as instituições republicanas não forem garantidoras da verdade dos fatos e da lei?

As respostas a tais questões apresentam-se com a necessária gravidade em função das tensões sociais comprovadas, cada dia mais radicalizadas, oriundas de amplos movimentos de pós-verdade (fake news) e de algoréticas (uso ético ou não ético da tecnologia) condicionadores de comportamentos e percepções dos indivíduos e grupos.

Um exemplo clássico recente no Brasil foi a construção, pelo conglomerado jurídico-midiático, do “objeto Sérgio Moro”. O objetivo visava torná-lo percebido como uma espécie de super-homem, acima do bem e do mal, no combate a corrupção pública. Eu recordo vivamente de diálogos travados, entre 2014 e 2018, com alguns amigos do campo religioso cristão católico, com nível de escolaridade superior, que o consideravam “o paladino da justiça”, aquele que finalmente iria colocar o país nos trilhos da decência.

Esses amigos cristãos católicos tinham como sua fonte principal, de informação e observação do objeto Sérgio Moro, a Rede Globo (Jornal Nacional, Fantástico, Globo News etc.). Destaque-se que a Rede Globo era simultaneamente a força mentora e propulsora do desenvolvimento conceitual do referido objeto (Sérgio Moro) e de divulgação publicitária do antipetismo. Além disso, esses amigos dialogavam com outros formadores de opinião que comungavam das mesmas motivações globais. Portanto, o seu campo de visão estava racional e emocionalmente condicionado; acreditavam piamente que o objeto Sérgio Moro era uma espécie de salvador da pátria.

Ocorre que, na outra margem do rio, a defesa técnica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já havia apresentado gigantescas provas documentais denunciando a corrupção (lawfare) do sistema de justiça brasileiro, pelas mãos de Sérgio Moro, com o objetivo explícito de aprofundar o Golpe de 2016, visando à prisão ilegal do presidente Lula em 2018 (e à criminalização dos partidos de esquerda), retirando-o da disputa presidencial, para viabilizar a eleição do capitão de extrema-direita Bolsonaro. Ou seja, o lavajatismo construído por Moro-e-Globo foi a incubadora do bolsonarismo militarizado atual.

Essa imposição à opinião pública da visão dominante na construção do objeto Sérgio Moro nos remete ao pensamento gramsciano sobre ideologia. Para Gramsci, as ideologias dominantes e dominadas são estruturadas pela luta de classe. As ideologias são experiências de mundo que se formam em relação à dominação e ao conflito social. Ideologias ditas subalternas são aquelas que incorporam a dominação na sua sujeição à ideologia dominante. O senso comum seria então a assimilação do discurso ideológico dominante pelas classes subalternas, ao procurar submetê-las a uma determinada concepção particular de mundo imposta como universal. No caso em questão, incorporar a percepção universal do objeto Sérgio Moro como sendo um agente do bem.

A classe dominante, com o seu poder político-econômico-cultural-institucional, procura instituir como universal algo que é particular (a sua ideologia) por meio de uma malha de instituições com efeitos normativos e repressivos. A hegemonia na sociedade civil é assegurada pela difusão de práticas sociais que configuram representações e valores de classe. Sua metamorfose em universais dificulta a identificação e a sinalização da dominação de classe. Portanto, a hegemonia não é uma coisa vazia, abstrata ou só relacionada a ideias; possui materialidade e expressão institucional por meio dos aparelhos da hegemonia: escolas, igrejas, meios de comunicação etc.

Dito isto, somente depois da imprevista ação de Walter Delgatti Neto, o hacker que mudou a história do país, há uma mudança de rota. Delgatti teve a coragem de olhar para a outra margem do rio ao denunciar, por meio de suas interceptações, incialmente acidentais, as trocas de mensagens dos procuradores da dita Operação Lava-Jato, comprovando o que a defesa técnica do presidente Lula já havia documentado amplamente nos autos: que o presidente Lula foi alvo de corrupção judicial (lawfare), num processo conduzido por um juiz corrupto e por procuradores dissolutos, conforme sentenciado posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Indaga-se: e se Delgatti não tivesse conseguido sucesso em seu intuito, como estaria hoje a realidade política do Brasil? Continuaria a cumplicidade do sistema de justiça brasileiro com o lavajatismo, como ocorreu no início daquela operação?

O filme Não olhe para cima, do diretor Adam MacKay (A grande aposta), é uma metáfora que vem ao encontro do tema acima exposto: diante da ameaça de desaparecimento da Terra por um cometa destruidor de planetas, descoberto acidentalmente por uma dupla de cientistas astrônomos, que a partir daí procuram a presidenta dos EUA para alertar o mundo e tomar as devidas providências, encontra-se uma população envolta na media-life: memes, lacrações, celebridades, polarizações constantes em seus celulares.

No filme, tal condição cultural produz pós-verdade (derrota da verdade científica) no mar turbulento de vieses, de narrativas deturpadoras dos fatos, de opiniões que se impõem como verdades, relativizando a realidade. A manipulação política (conclamando as pessoas a olharem para baixo) somada ao alheamento civil em não querer olhar para cima (ou não olhar para a outra margem do rio) permitem a destruição do planeta Terra pelo cometa.

O diretor do filme, Adam MacKay, apostou que a proximidade do cometa seria a possibilidade de mudança de rumo e tomada de atitude da população em relação à pós-verdade a que está submetida. Errou. No Brasil, teremos uma grande oportunidade nas eleições de 2022. Será que conseguiremos olhar para a outra margem do rio? Nesses dias, numa margem, Bolsonaro está se divertindo com seu jet-ski em Florianópolis; na outra margem, a população baiana está padecendo pela inundação das águas em seus lares. O que todo esse acúmulo de descaso, negacionismo, insensibilidade e perversidade bolsonarista continuam a nos dizer?

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Anselm Jappe Jean Marc Von Der Weid Sergio Amadeu da Silveira Leda Maria Paulani Alysson Leandro Mascaro Chico Whitaker Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Daniel Brazil João Carlos Loebens Mariarosaria Fabris Gabriel Cohn Alexandre de Freitas Barbosa Eugênio Bucci Heraldo Campos Jorge Branco Rodrigo de Faria Antônio Sales Rios Neto Fernando Nogueira da Costa Leonardo Boff Priscila Figueiredo Vanderlei Tenório Carlos Tautz Rafael R. Ioris José Costa Júnior Claudio Katz Daniel Costa Flávio Aguiar Alexandre Aragão de Albuquerque Chico Alencar Eleonora Albano Roberto Noritomi Luiz Bernardo Pericás Gerson Almeida Gilberto Maringoni Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Fernandes Silveira Leonardo Avritzer Érico Andrade Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Afonso da Silva Celso Frederico Ladislau Dowbor Afrânio Catani Michael Roberts Valerio Arcary Marjorie C. Marona Fernão Pessoa Ramos André Singer Kátia Gerab Baggio Thomas Piketty Luciano Nascimento Slavoj Žižek Yuri Martins-Fontes Manchetômetro Antonio Martins Luiz Eduardo Soares Marcos Silva Armando Boito Marcelo Módolo Ronald Rocha Otaviano Helene Luis Felipe Miguel João Lanari Bo Henry Burnett Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre de Lima Castro Tranjan Walnice Nogueira Galvão Airton Paschoa Julian Rodrigues Andrew Korybko Jean Pierre Chauvin José Geraldo Couto Francisco de Oliveira Barros Júnior André Márcio Neves Soares José Raimundo Trindade Antonino Infranca Fábio Konder Comparato Tales Ab'Sáber Ari Marcelo Solon Vinício Carrilho Martinez Luiz Carlos Bresser-Pereira Maria Rita Kehl Osvaldo Coggiola Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lincoln Secco Henri Acselrad Luiz Marques João Carlos Salles Francisco Pereira de Farias João Sette Whitaker Ferreira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcus Ianoni Annateresa Fabris Luiz Renato Martins José Dirceu Sandra Bitencourt Lorenzo Vitral Roberto Bueno Caio Bugiato Salem Nasser Elias Jabbour Dennis Oliveira Rubens Pinto Lyra Igor Felippe Santos Jorge Luiz Souto Maior Atilio A. Boron Luiz Roberto Alves Tadeu Valadares João Adolfo Hansen Gilberto Lopes Eduardo Borges Ricardo Antunes Benicio Viero Schmidt Bento Prado Jr. Vladimir Safatle Remy José Fontana Tarso Genro Eliziário Andrade Ricardo Fabbrini Juarez Guimarães Michael Löwy Ronald León Núñez Francisco Fernandes Ladeira Carla Teixeira Eleutério F. S. Prado João Paulo Ayub Fonseca Valerio Arcary Berenice Bento Ricardo Musse Marcos Aurélio da Silva Mário Maestri Marilena Chauí Bruno Machado Flávio R. Kothe Luís Fernando Vitagliano José Micaelson Lacerda Morais Samuel Kilsztajn Paulo Nogueira Batista Jr Dênis de Moraes Marcelo Guimarães Lima Ricardo Abramovay Celso Favaretto Renato Dagnino Leonardo Sacramento Luiz Werneck Vianna Boaventura de Sousa Santos Liszt Vieira Eugênio Trivinho Denilson Cordeiro Paulo Capel Narvai João Feres Júnior Paulo Sérgio Pinheiro José Luís Fiori José Machado Moita Neto Milton Pinheiro Matheus Silveira de Souza Bernardo Ricupero Anderson Alves Esteves Manuel Domingos Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada