A fada e o mito

Juan Gris (1887–1927), Violino de cartas de jogar sobre a mesa, 1913.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO*

A identificação coletiva com a vitória da cultuada Rayssa não aponta para a esperança, mas para a resignação de uma população que se acostumou com a imediatez da morte de milhares, da fome e do autoritarismo social

“Obrigado por reacender a nossa esperança em um Brasil melhor”. Esta foi uma frase, dentre tantas outras semelhantes, escrita por um internauta após a conquista da medalha de prata pela jovem skatista Rayssa Leal (a chamada “fadinha”) nas Olimpíadas do Japão. Sua vitória, para além de ser o resultado de uma redenção individual, tornou-se uma espécie de redenção coletiva (de outra natureza) para os telespectadores.

Não há qualquer dúvida sobre a importância de tamanha conquista, sobretudo por ser o resultado do esforço de uma jovem brasileira preta, pobre e periférica que, certamente, enfrentou muito mais obstáculos que as demais atletas representantes dos países do centro do capitalismo.

Por outro lado, a comoção idólatra por sua vitória, impulsionada pelos veículos de comunicação de massa, carrega muito mais um potencial de resignação do que de crítica. Já em meados do século passado, Adorno e Horkheimer sinalizaram como o esporte, quando associado à indústria cultural, tornou-se pura ideologia ao ser utilizado como instrumento de identificação das massas com o socialmente dado, com a realidade administrada tal como é apresentada diante de nossos olhos. A função da ideologia não seria mais simplesmente a ocultação da verdade, que resultaria em uma falsa consciência. Pelo contrário, hoje a indústria cultural explicita a sua mentira, não escondendo nada do consumidor, exceto o fato de que ele vive em um mundo imutável e sempre igual. Por isso, de forma muito precisa os frankfurtianos sintetizaram essa nova faceta da ideologia em uma frase: “converte-te naquilo que és”.

Com efeito, o espetáculo em torno da vitória da fadinha nas Olimpíadas, ao mesmo tempo em que projeta sobre sua figura o imaginário do “mito” responsável pela reconciliação das contradições que operam na sociedade brasileira, também reforça o cinismo de que não há nada a ser mudado, de que “as coisas são o que são” e que tudo depende do esforço individual. Basta refletirmos que essa dura medalha é conquistada no contexto de um país cujo governo, do nomeado “mito”, foi diretamente responsável pela morte de mais de meio milhão de pessoas e que, sem qualquer culpa, extinguiu o Ministério do Esporte.

Em tal conjuntura, Rayssa teve a “sorte” de ter um vídeo seu viralizado na internet, que lhe ofereceu oportunidades para superar algumas das desvantagens estruturais que enfrentaria até a conquista da medalha. O mesmo ocorreu com o surfista Ítalo Ferreira, medalhista de ouro, que aprendeu a surfar em uma tampa de isopor no início de sua carreira. É evidente que tais desvantagens poderiam ter sido evitadas (ou minimamente amenizadas) em um país mais justo e menos autoritário. É por isso que suas vitórias, apesar de merecidas, apresentam-se aos telespectadores como mentira manifesta.

Nesse sentido, a identificação coletiva com a vitória da cultuada Rayssa não aponta para a esperança, mas para a resignação de uma população que se acostumou com a imediatez da morte de milhares, da fome e do autoritarismo social. A resiliência, neste contexto, é apenas expressão da mutilação e não da redenção ou da superação individual. Se há algo a ser escancarado na conquista da skatista, não é a esperança, mas o desespero. Afinal, a vitória espetacular da fada se dá infelizmente sob a desgraça real do mito.

*Thiago Bloss de Araújo é doutorando na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Caio Bugiato João Paulo Ayub Fonseca Slavoj Žižek Anderson Alves Esteves Vinício Carrilho Martinez Fernando Nogueira da Costa Afrânio Catani Andrés del Río Henri Acselrad Anselm Jappe Heraldo Campos Marcos Aurélio da Silva Mário Maestri Tarso Genro Lucas Fiaschetti Estevez Leonardo Boff Annateresa Fabris Leonardo Sacramento Mariarosaria Fabris Michael Roberts Eugênio Trivinho Ronaldo Tadeu de Souza Berenice Bento Jorge Branco Valerio Arcary Bento Prado Jr. José Dirceu Celso Frederico Antonio Martins Igor Felippe Santos Antônio Sales Rios Neto Osvaldo Coggiola Liszt Vieira Remy José Fontana Rodrigo de Faria Bruno Machado Sergio Amadeu da Silveira João Adolfo Hansen Claudio Katz Chico Whitaker Ricardo Fabbrini Vladimir Safatle Alexandre de Freitas Barbosa José Machado Moita Neto Ari Marcelo Solon Daniel Costa Thomas Piketty Lincoln Secco Gilberto Maringoni Alysson Leandro Mascaro Marilena Chauí Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Guimarães Lima Carla Teixeira Vanderlei Tenório Bernardo Ricupero Renato Dagnino Luis Felipe Miguel Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Renato Martins Michael Löwy Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo José Costa Júnior Francisco Fernandes Ladeira Fernão Pessoa Ramos Luiz Werneck Vianna Luciano Nascimento Paulo Martins Rafael R. Ioris Tadeu Valadares Eliziário Andrade Eduardo Borges Maria Rita Kehl Gerson Almeida Eleonora Albano Walnice Nogueira Galvão João Carlos Salles Marcos Silva Eleutério F. S. Prado Boaventura de Sousa Santos Marjorie C. Marona Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Lopes Eugênio Bucci Flávio R. Kothe Francisco Pereira de Farias Sandra Bitencourt João Sette Whitaker Ferreira Luiz Marques Denilson Cordeiro Leonardo Avritzer Paulo Capel Narvai Érico Andrade Andrew Korybko Francisco de Oliveira Barros Júnior Everaldo de Oliveira Andrade Ronald Rocha Jean Pierre Chauvin Marcelo Módolo José Luís Fiori Jorge Luiz Souto Maior Luiz Roberto Alves Antonino Infranca Chico Alencar Samuel Kilsztajn Otaviano Helene José Geraldo Couto Manchetômetro Alexandre de Lima Castro Tranjan Atilio A. Boron Julian Rodrigues Tales Ab'Sáber Rubens Pinto Lyra Airton Paschoa Ricardo Musse Lorenzo Vitral Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Matheus Silveira de Souza Flávio Aguiar Ronald León Núñez Dennis Oliveira Jean Marc Von Der Weid Elias Jabbour Gabriel Cohn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcus Ianoni André Singer João Feres Júnior Juarez Guimarães André Márcio Neves Soares Paulo Fernandes Silveira Kátia Gerab Baggio Fábio Konder Comparato João Lanari Bo Daniel Brazil Carlos Tautz Marilia Pacheco Fiorillo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Yuri Martins-Fontes José Micaelson Lacerda Morais Paulo Sérgio Pinheiro Dênis de Moraes Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser Luís Fernando Vitagliano José Raimundo Trindade Luiz Eduardo Soares Leda Maria Paulani Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Ricardo Antunes Ricardo Abramovay Benicio Viero Schmidt Daniel Afonso da Silva Armando Boito João Carlos Loebens Henry Burnett Celso Favaretto

NOVAS PUBLICAÇÕES