Em defesa da liberdade acadêmica

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Os poderosos de hoje não têm força para dar cabo da existência física de professores, mas eles têm o desplante de atentar contra a nossa reputação e fazem de tudo para nos intimidar

No dia 23 de outubro de 1975, Ana Rosa Kucinski Silva, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), foi demitida por “abandono de função”. Um ano e meio antes, em 22 de abril de 1974, aos 32 anos, havia caído nas mãos da repressão da ditadura, que fez dela uma desaparecida política. Mesmo assim, a burocracia universitária, solícita para cima e implacável para baixo, resolveu demiti-la de forma desonrosa. Colegas de Ana Kucinski protestaram – aos resmungos, como era possível naqueles tempos –, mas não houve jeito. A militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), depois de perder a vida nas masmorras, perdeu o título de professora da USP. Sua demissão, com carimbos e rubricas sobre papel timbrado, marcou de vergonha a história da USP.

Naqueles anos de chumbo, até mesmo empresas privadas encontraram maneiras de proteger seus empregados perseguidos pelos órgãos de segurança do regime. Jornalistas de esquerda escaparam da morte porque contaram com a ajuda não só de seus camaradas, mas também de seus patrões. Na USP, entretanto, não foi assim. Já nas primeiras listas de cassação, os medíocres invejosos comemoravam, silentes, nutrindo seu carreirismo estulto. É possível que, no episódio Ana Kucinski, algum sabujo tenha confidenciado em surdina algo como: “Mas ela também era muito radical”. Outro talvez tenha aconselhado os pares a não “afrontar” ou “arrostar” os militares. Foi um desastre indigno e voluntário. Ao se dobrar para os camburões e os coturnos, a USP entregou mestres e estudantes aos cachorros, que depois os abandonaram aos abutres.

Uma universidade que não defende a vida de seus quadros não sabe a que veio, perde a identidade. Uma universidade que fecha os portões para os sonhos de seus estudantes, que faz pouco da integridade de quem dá aulas e imagina ter sua substância não no saber, mas em repartições movidas por anônimos robóticos, é uma filial de açougue.

Agora, aqui estamos nós, os professores universitários que não morreram. Estamos sob risco. Não cometamos os mesmos erros do passado. O poder que aí está quer nos calar, enquanto procura pôr na rua os calhambeques a que chama de blindados, para golpear a democracia. A visão militarista do ensino produz estragos e mais estragos. Esta semana, o ministro da Educação declarou que os reitores das universidades federais “não precisam ser bolsonaristas, mas também não precisam ser esquerdistas, não podem ser lulistas”. O ministro quer um quartel em cada escola.

Fiquemos atentos. Se pactuarmos com o arbítrio que se desinibe, estaremos entregues aos cachorros simbólicos e seus abutres.

É verdade que os poderosos de hoje não têm força para dar cabo da existência física de professores, mas eles têm o desplante de atentar contra a nossa reputação e fazem de tudo para nos intimidar. Entre tantos ataques, o mais eloquente é o que se move contra o professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP. Autor de vários textos na imprensa, colunista do diário Folha de S. Paulo, ele é acusado de calúnia, injúria e difamação por autoridades identificadas com o presidente da República. O procurador-geral da República, Augusto Aras, move um processo criminal contra ele. O ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, requisitou uma investigação.

Para complicar, a USP viu-se diretamente enredada na perseguição. No início de maio, Aras solicitou formalmente à Reitoria que o professor fosse punido pela Comissão de Ética da casa. O ofício do procurador-geral, que pretende criminalizar absurdamente a liberdade de expressão e de imprensa, chegou à Cidade Universitária há três meses e até agora não recebeu a negativa categórica que merece. A demora preocupa.

A direção da USP tem enfrentado com firmeza as sandices autocráticas do governo federal. Nesse caso, porém, tarda. Difícil entender por quê. Será por obra de miudezas e intrigas mesquinhas? Será que agora, como em 1975, se ouvem nos bastidores dos órgãos colegiados comentários do tipo “não é hora de bater de frente com as autoridades” ou “ele também é muito radical”? Será essa a explicação para a lentidão?

Não, não pode ser. O que está em jogo aqui não é se os artigos do professor são mais ou menos agressivos, não é o melindre das autoridades. O que está em jogo é uma questão de princípio. Ou a universidade assume a defesa da liberdade acadêmica, ou ficará sitiada e será apenas obediente, como quer o ministro da Educação.

Conrado Hübner já recebeu solidariedade expressa de seus colegas, de dezenas de instituições e de renomados intelectuais do Brasil e do exterior. Só lhe falta o apoio das mais altas instâncias da USP. Esse apoio não falhará, sabemos que não falhará, mas a demora realmente preocupa.

Em 22 de abril de 2014, 40 anos depois do desaparecimento de Ana Rosa Kucinski Silva, o instituto onde ela lecionava reconheceu o erro, revogou a demissão e pediu desculpas à família. No caso de Conrado Hübner, todos temos certeza, a espera por justiça não será tão longa.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Carla Teixeira Juarez Guimarães Luiz Eduardo Soares Dênis de Moraes Ronaldo Tadeu de Souza Maria Rita Kehl Leda Maria Paulani Luiz Roberto Alves Julian Rodrigues Yuri Martins-Fontes Ricardo Fabbrini Anselm Jappe Paulo Martins Matheus Silveira de Souza André Márcio Neves Soares Liszt Vieira João Lanari Bo Tales Ab'Sáber Jorge Luiz Souto Maior Vinício Carrilho Martinez Marilia Pacheco Fiorillo Eugênio Bucci Eliziário Andrade Bernardo Ricupero Leonardo Sacramento Gilberto Lopes José Geraldo Couto Tadeu Valadares Everaldo de Oliveira Andrade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Andrés del Río Francisco Fernandes Ladeira Rodrigo de Faria Lorenzo Vitral Marcos Silva José Raimundo Trindade Marcelo Guimarães Lima Caio Bugiato Vladimir Safatle Ricardo Antunes Alexandre Aragão de Albuquerque Francisco de Oliveira Barros Júnior Ronald Rocha Gabriel Cohn Sergio Amadeu da Silveira Walnice Nogueira Galvão Claudio Katz Airton Paschoa Celso Frederico Rafael R. Ioris Bento Prado Jr. Thomas Piketty Daniel Brazil Manuel Domingos Neto Marcus Ianoni João Sette Whitaker Ferreira Gerson Almeida Luiz Renato Martins Daniel Costa Michel Goulart da Silva Atilio A. Boron Ricardo Musse Flávio Aguiar Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Anderson Alves Esteves Celso Favaretto Bruno Machado Henri Acselrad Fernando Nogueira da Costa Fábio Konder Comparato Flávio R. Kothe Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Osvaldo Coggiola Michael Löwy Armando Boito Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Feres Júnior Slavoj Žižek Eduardo Borges Luís Fernando Vitagliano Benicio Viero Schmidt Fernão Pessoa Ramos Samuel Kilsztajn João Carlos Salles Rubens Pinto Lyra Paulo Fernandes Silveira Eugênio Trivinho Eleonora Albano Chico Whitaker Ronald León Núñez Antonio Martins Elias Jabbour Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Aurélio da Silva Kátia Gerab Baggio Milton Pinheiro Eleutério F. S. Prado Paulo Capel Narvai Marilena Chauí Leonardo Avritzer João Adolfo Hansen Luciano Nascimento Marjorie C. Marona Vanderlei Tenório José Dirceu Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Bernardo Pericás Jean Marc Von Der Weid José Micaelson Lacerda Morais Paulo Sérgio Pinheiro Manchetômetro Afrânio Catani Paulo Nogueira Batista Jr Dennis Oliveira Sandra Bitencourt Mário Maestri Remy José Fontana Luiz Werneck Vianna Salem Nasser Chico Alencar Jean Pierre Chauvin Érico Andrade Annateresa Fabris Andrew Korybko Mariarosaria Fabris Denilson Cordeiro Ricardo Abramovay João Paulo Ayub Fonseca Michael Roberts Daniel Afonso da Silva Berenice Bento Lincoln Secco Priscila Figueiredo Tarso Genro Ladislau Dowbor Otaviano Helene Jorge Branco Igor Felippe Santos José Luís Fiori Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Renato Dagnino Marcelo Módolo Gilberto Maringoni Ari Marcelo Solon José Machado Moita Neto Leonardo Boff Luiz Marques José Costa Júnior João Carlos Loebens Henry Burnett Carlos Tautz Francisco Pereira de Farias Boaventura de Sousa Santos Heraldo Campos Alexandre de Lima Castro Tranjan Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antonino Infranca

NOVAS PUBLICAÇÕES