O grito da Paulista

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Por VALERIO ARCARY*

O chefe dos neofascistas agita a sua base social para a possibilidade de uma ruptura institucional, em algum momento.

“A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder com os métodos e meios de sua própria criação – o Estado parlamentar. Mas a burguesia estabelecida não gosta dos meios fascistas de resolver seus problemas, pois os choques e distúrbios, embora sejam do interesse da sociedade burguesa, envolvem perigos também para ela. Esta é a fonte do antagonismo entre o fascismo e os partidos tradicionais da burguesia”
(Leon Trotsky, The Struggle Against Fascism in Germany).

O grito da Paulista no dia do grito do Ipiranga foi vitória ou morte. Ao anunciar sua estratégia Bolsonaro deixou claro que não renunciará à luta implacável pelo poder, custe o que custar. Acumulou forças. Os dois objetivos táticos imediatos da mobilização contrarrevolucionária eram (a) uma advertência à oposição liberal de que incendiará o país em caso de perigo de impeachment e (b) a polarização contra os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso do STF que cercam sua corrente e família com investigações e prisões. Mas é muito mais grave.

Deixa no ar para a fração da classe dominante que se deslocou para a oposição, nos últimos quarenta dias, a ameaça de que não aceitará o resultado de eleições, se perder. Não respeitará as regras do regime democrático-liberal, não haverá transmissão pacífica de faixa em Brasília em janeiro de 2023. O chefe dos neofascistas procura se relocalizar para as eleições de 2022, mas promete que está disposto a tudo e, portanto, agita a sua base social, também, para a possibilidade de uma ruptura institucional, em algum momento. Ou seja, tudo ou nada, ou ameaça de guerra civil.

A contraofensiva se deu no marco de um enfraquecimento ininterrupto, desde maio, com o auge da segunda onda da pandemia. Mas demonstrou que não está derrotado. O maior erro da esquerda nos últimos três anos foi subestimar o bolsonarismo. A posição de Lula nas pesquisas de opinião, neste momento, não é garantia de nada. Considerar somente os graus de aprovação e rejeição revelados pelas pesquisas é insuficiente para a aferição da relação de forças social e política. Diante de centenas de milhares de pessoas, altamente motivadas, Bolsonaro se fortaleceu. Não foi um fiasco.

Bolsonaro ainda não tem uma legenda eleitoral, mas provou que controla um “partido de combate”, ou seja, a organização de um movimento contrarrevolucionário que tem ideologia neofascista, estratégia política, potência social, capacidade financeira de autossustentação, iniciativa nas ruas e nas redes sociais, relações internacionais, forte influência militar e policial e uma liderança com autoridade messiânica.

A tática de Bolsonaro, neste momento, consiste em ganhar tempo. Morde a assopra. Ocupa o centro das cidades, mas não autoriza distúrbios. Estimula bloqueios de estradas pelos caminhoneiros, mas depois manda recuar. Faz ameaças golpistas, mas lança uma carta apaziguadora. Nem a pressão pela tutela militar, nem Sergio Moro ou Paulo Guedes, nem o acordo com o Centrão, muito menos Michel Temer, um cadáver político insepulto, poderão deter Bolsonaro. Mas qual é a estratégia? Garantir um reposicionamento melhor para a disputa eleitoral, e garantir a reeleição? Sim, mas não é só isso. O governo da extrema direita liderado por um neofascista não é um governo “normal” com uma agenda de contrarreformas neoliberais.

Bolsonaro tem como estratégia uma nova localização do capitalismo brasileiro no mundo em uma aliança estratégica com uma fração do imperialismo norte-americano contra a China. O plano de recolonização repousa na expectativa de que as inversões estrangeiras são a chave para retomada do crescimento econômico. Mas para isso é necessário impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e ao povo pobre e oprimido. Uma mudança qualitativa na relação social de forças só é possível com a subversão do regime pode garantir a concentração máxima de poderes. O projeto é golpista, bonapartista, contrarrevolucionário. As formas, os tempos, os desenhos das iniciativas insurrecionais são táticas. Mas incontornáveis.

Mudou a política da oposição liberal com o giro, por enquanto individual, de João Doria e Gilberto Kassab pelo impeachment. A classe dominante está dividida. Bolsonaro é, crescentemente, disfuncional e disruptivo. A fração burguesa que deslocou para a oposição é muito poderosa, e vem tentando exercer pressão institucional. Mas hesita em avançar na direção do impeachment. A direita liberal está muito mais preocupada com a posição das Forças Armadas do que com o Centrão. E há imensa incerteza com o papel do general Mourão.

Seja como for, diante do novo momento da conjuntura é necessária uma mudança de tática na esquerda. A tática de unidade na ação passou a ter maior importância porque um setor da oposição liberal se deslocou, finalmente, para a defesa do impeachment. É incerto e delicado, mas necessário lutar, seriamente, por Atos unitários pelo Fora Bolsonaro. Mas devemos preparar a iniciativa respeitando os espaços construídos da Frente Única de Esquerda, e a independência política em defesa das reivindicações dos trabalhadores.

A decisão das Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, da Coalizão Negra por direitos de manter a Jornada Nacional de Luta de 7 de setembro demonstrou-se correta. Não foram grandes, mas foram dignas. E receberam o abraço de um panelaço nacional na mesma noite. Foi correta porque o perigo de uma divisão e, em consequência, desmoralização de parcelas da militância de todos os movimentos e partidos era real. É preciso preservar a firmeza, a capacidade de cálculo tático e lucidez estratégica. Cinco anos de derrotas acumuladas deixaram feridas. Há instabilidade em nossas fileiras. Deve nos causar perplexidade as oscilações “bipolares” de avaliação da conjuntura, indo do desfalecimento à euforia em dias, mesmo em meios de esquerda sérios.

Não faz sentido que durante uma semana tenha prevalecido uma visão apocalíptica de iminência de “perigo real e imediato” de autogolpe e, na sequência, a conclusão de que o bolsonarismo teria “flopado”. Temos pressa, por isso nos movemos com responsabilidade. Voltaremos às ruas e seremos maioria, mas é necessário construir mobilizações em patamar superior às de maio, junho e julho. Não será fácil, mas é possível ir além.

O impacto das manifestações bolsonaristas não deve dividir a esquerda. Já vimos que a pulverização de posições sobre a Jornada de 7 de setembro foi um desastre, e as declarações inoportunas desagregaram. Uma mudança de tática não deve dividir a esquerda. A fragmentação é um perigo real. A Frente Única foi o maior passo em frente no ano de 2021.

A questão central é que a capacidade da esquerda de colocar em movimento sua base social de implantação revelou-se, por enquanto, insuficiente para abrir o caminho do impeachment. Não foi o bastante a tragédia sanitária, econômica, social e política que nos amargura. Quase seiscentas mil mortes, desemprego acima de 14 milhões de desamparados, vinte milhões em insegurança alimentar, inflação na vertigem dos 10%, perigo de apagão elétrico, incêndios no pantanal e na Amazônia, invasão de terras indígenas, redução de 30% das inscrições no Enem, não foram o bastante.

O dilema central na estratégia da esquerda é que a tática quietista de aguardar as eleições de 2022 é, moral, política e estrategicamente errada. Bolsonaro não é o inimigo ideal em 2022. A hora é de lutar pelo impeachment e avançar. O desafio é transformar a maioria social que está na oposição em força social de choque para derrubar Bolsonaro.

Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã)

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