Por MATEUS ARAÚJO*
Considerações sobre a atividade fílmica do Glauber “historiador”.
Ninguém ignora a centralidade da questão da História no cinema de Glauber Rocha, já discutida por seus exegetas, notadamente pelo melhor de todos, Ismail Xavier, que sempre esteve atento a ela em seus diversos estudos sobre o cineasta, e lhe consagrou em 1987 um ensaio muito penetrante (“Glauber Rocha: o desejo da História”),[i] a meu conhecimento a melhor visão de conjunto já escrita em qualquer língua sobre a sua obra.
Seus filmes dos anos 1960 (ficcionais como documentais) revisitaram episódios e momentos decisivos da História do Brasil (a Guerra de Canudos e o ocaso do cangaço em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o golpe de 1964 em Terra em Transe), ou aspectos candentes da sua vida social (conflitos de classe em Barravento, miséria urbana ou rural em Maranhão 66 e O Dragão da maldade contra o Santo guerreiro, violência urbana sob a ditadura militar em Câncer, manifestações políticas contra ela em 1968) tratados numa ótica de História do presente, ou História imediata, para lembrarmos uma noção de Jean Lacouture invocada por Jean-Claude Bernardet e Alcides Ramos (1988, p. 62 ss). Cada um a seu modo, eles desenharam a imagem de um Brasil subdesenvolvido, visto sob a forma do microcosmo nordestino (sertão em Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade, litoral em Barravento e Maranhão 66), nortista (Amazonas Amazonas) ou carioca (Terra em Transe, Câncer e 1968, filmados no Rio), no calor do presente ou num passado recente que condensa ou remete a momentos um pouco mais antigos da história do país.[ii]
Os filmes posteriores, feitos no exílio ou no retorno ao Brasil, continuaram a abordar questões ou processos históricos (uma revolução popular africana em Der Leone have sept cabeças, a agonia de um ex-ditador na Espanha em Cabezas Cortadas, a Revolução dos Cravos em Portugal no filme coletivo As Armas e o Povo, do qual Glauber participou em 1975, os movimentos sociais italianos de esquerda ou a derrota americana no Vietnã em Claro), quando não se debruçaram direta e frontalmente sobre a História do Brasil num longo retrospecto de cinco séculos (no filme homônimo) ou num bloco mais breve com uma entrevista do jornalista Carlos Castello Branco sobre a política externa da ditadura militar (em A Idade da Terra).
Ora, se na passagem dos anos 1960 aos 1970 a preocupação com a História permaneceu constante e fundamental no cinema de Glauber, a maneira de concebê-la e de figurá-la nos filmes parece no entanto ter sofrido uma inflexão. Discutiremos aqui esta mudança na atividade fílmica do Glauber “historiador”, com a ajuda de alguns exemplos, a partir de quatro aspectos intimamente ligados: (1) a expansão espácio-temporal do universo historiado, (2) a instauração de uma clivagem, nos filmes, entre uma História representada pelas suas narrativas (com personagens, ações e ambientações próprios) e outra História paralela evocada pelo cineasta nas intervenções sonoras de seus monólogos over; (3) o rearranjo da articulação entre diacronia e sincronia na visada histórica dos filmes, que transforma o anacronismo num elemento central da poética Glauberiana em Cabezas Cortadas, Claro e A Idade da Terra; (4) A natureza dos elementos figuradores da História, que ganha uma tradução estilística até então inédita no cinema de Glauber, na figura da sobreimpressão.
Expansão espácio-temporal do universo historiado
A partir do auto-exílio de Glauber em 1969, o arco espácio-temporal dos processos históricos figurados por seus filmes se expande. Por um lado, tais processos alargam suas fronteiras geográficas, saindo do Brasil e alcançando o mundo, para muito além do âmbito latino-americano já vislumbrado em Terra em Transe.
Se, na esteira do roteiro inicial (“America Nuestra – a terra em transe”),[iii] este filme multiplicava, em sua alegoria política, nomes, referências e personagens hispano-americanos (Eldorado, Porfírio Diaz, Júlio Fuentes, Fernandez, além das ditaduras de Villaflores, Pancho Morales e “El Redentor”), seu cenário ainda era o Rio de Janeiro contemporâneo, sua língua ainda era o português e seu referente histórico principal, sob a capa do país fictício de Eldorado, era sem nenhuma dúvida o golpe de 1964 no Brasil.
Der Leone, Cabezas Cortadas e Claro (para não falar do roteiro italiano de La Nascita degli dei, escrito em 1974 e publicado postumamente em 1981, sobre Ciro da Pérsia e Alexandre da Macedônia[iv]) dão o passo seguinte e transcendem de vez a esfera da História do Brasil. Filmado no Congo Brazzaville em 1969, Der Leone mostra uma revolução política num país africano não especificado, cujo povo negro consegue se libertar dos diversos colonizadores brancos – ingleses, franceses, alemães e portugueses, todos devidamente encarnados por personagens grotescos, e aludidos no próprio título poliglota do filme. Retomando vários elementos de Terra em Transe, mas deslocando seu referente histórico para o mundo hispano-americano, Cabezas Cortadas se ambienta nas montanhas da Catalunha, onde um ditador latino-americano exilado, Diaz II, vive seu ocaso e acaba assassinado. Falado em espanhol, interpretado basicamente por atores espanhóis (Francisco Rabal à frente), comentado por canções hispânicas, o filme ainda se refere a Eldorado, Alecrim e à dinastia dos Diaz (remetendo assim a Terra em Transe), mas seu universo agora se situa basicamente no mundo hispânico, e hispano-americano.
Claro é um filme ambientado na Roma de 1975, falado sobretudo em italiano (mas também em francês, inglês e português), reunindo personagens de vários países (Glauber Rocha e Juliet Berto à frente, interpretando seus próprios papéis) e meditando sobre o capitalismo mundial em 1975 a partir de sua analogia com a crise do império romano. O referente histórico aqui é o mundo capitalista como um todo.
No retorno ao Brasil, depois de Di, Jorjamado e da experiência televisual no programa Abertura, Glauber volta a inserir, em Idade da Terra, a História do Brasil num universo mais amplo da História mundial, para além do que já faziam Amazonas Amazonas, Terra em Transe e O Dragão, que remetiam ao contexto colonial ou neocolonial a abordagem da geografia ou da história do Brasil atual.
Amazonas Amazonas começava reproduzindo numa locução over empostada um texto de Francisco de Orellana (que lhe emprestava o título) relatando sua viagem de 1542 ao rio caudaloso, antes de saltar para o Amazonas de hoje, de que se ocupará o filme inteiro, não sem algumas remissões ao passado da região. Terra em Transe remetia ao descobrimento quando revisitava (9’54”-11′)[v] a cena da Primeira Missa (em que o colonizador português de outrora contracena com seus avatares no presente – padre e político conservador), à violência do Conquistador encarnada no presente por Porfírio Diaz (político autoritário cujo tratamento lhe empresta ressonâncias da monarquia colonial), às similitudes entre a formação histórica brasileira e a latino-americana (pela mescla de personagens e referências históricas do Brasil e de países hispano-americanos na trama do filme, que expandia assim sua representação do golpe de 1964 no Brasil para o universo mais amplo da história latino-americana) e à dinâmica da exploração neo-colonial encarnada pela multinacional Explint. O Dragão reiterava a alusão a tal dinâmica ao trazer em seu desfecho uma logo da Shell indicando a lógica internacional que regia aquele mundo mostrado ali no vilarejo bahiano de Milagres.
Esta inserção da História do Brasil na História Mundial reaparece na estrutura de Idade da Terra, e é ali explicitamente reinvindicada pelo cineasta no fim do seu último e longo monólogo over apelidado por Ismail Xavier (1981, p.69) de “Sermão do Planalto”: “O Brasil é um país grande. América Latina, África, não se pode pensar num só país. Temos que multinacionalizar, internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático. Com a grande contribuição do Cristianismo e de outras religiões, todas as religiões. O Cristianismo e todas as religiões são as mesmas religiões” (135′; transcrito em ROCHA, 1985, p.463).
Mas os processos históricos tematizados pelos filmes alargam também suas fronteiras temporais, recuando cada vez mais na história da humanidade. Se a trama de Deus e o Diabo condensava 40 anos de revoltas populares no nordeste (da Guerra de Canudos em 1897 ao ocaso do cangaço com a morte de Lampião em 1938), até saltar para um futuro utópico no desfecho em que a montagem faz o Sertão “virar” mar; se o cinejornal de combate a Diaz em Terra em Transe descrevia sua biografia de 1920 a 1957 (a trama do filme se encarregando de trazê-la mais perto de 1964), a História abordada nos filmes posteriores muda completamente de escala.
A de Eldorado coberta por Cabezas Cortadas descreve um arco que vai do século XVI a meados do XX. É o próprio Glauber, depois de uma longa seqüência que a sintetiza de modo alegórico (e à qual voltarei mais adiante), quem a evoca num monólogo over, em espanhol aproximativo: “Nas páginas da História, Eldorado foi descoberto no século XVI por navegantes espanhóis e desenvolveu-se inicialmente graças ao cultivo da cana de açúcar. Alguns anos mais tarde chegaram os escravos negros da África e o vice-rei de então construiu estradas, um porto novo e conquistou o território de Alecrim, exterminando completamente a civilização índia local. […] As rebeliões contra a Coroa espanhola foram violentamente reprimidas e todos os líderes enforcados e esquartejados em praça pública. Séculos mais tarde surgiu o primeiro libertador, Emanuel Diaz. Advogado muito inteligente, influenciado pela Revolução Francesa e pelas ideias da nova República Americana, organizou a Sociedade Secreta pela Libertação de Eldorado. A ideia incendiou as plantações e dez anos mais tarde Eldorado proclamava-se monarquia independente. Emanuel Diaz colocou a coroa sobre a cabeça e desde então seus descendentes cultivaram a obsessão do Poder. Quando, na Revolução Republicana de 1910 toda a dinastia Diaz foi passada pelas armas, nosso herói, que escapou graças à ajuda de um velho criado negro, não tomou a vingança do povo como lição. […] Desde então Diaz [seu filho?] subiu ao poder várias vezes e várias vezes foi deposto e várias vezes voltou e voltará” (27’50”-30’05”; transcrito em ROCHA, 1985, p. 388-9).
Em Claro, o retrospecto histórico enunciado noutro monólogo over de Glauber menciona a Terra, “das origens até hoje”, antes de listar eventos da História Mundial a partir da Revolução Soviética: “A Terra, um planeta pequeno, pobre das origens até hoje. A ruptura do sistema com a Revolução Soviética, a Revolução da China, a Revolução Cubana, a Revolução do Terceiro Mundo, a destruição do nazismo, a ressurreição do fascismo sobretudo nos países do Terceiro Mundo. A conquista do espaço, a desintegração harmônica da arte burguesa, desmistificação da paranoia estética, grotesca, expressionista, barroca. Portugal redescobre o mundo” (73’36”-74’21”; transcrito em ROCHA, 1985, p. 430).
Este amplo retrospecto reaparece, ainda mais desmesurado, em A Idade da Terra, no longo monólogo over do “Sermão do Planalto”. Glauber alude ali a uma civilização “muito primitiva, muito nova” em que o Cristo teria surgido, antes de lhe atribuir, textualmente, “vinte, trinta milhões, quarenta milhões, cinquenta milhões de anos” (ROCHA, 1985, p.461), e de refazer um vertiginoso resumo do Ocidente pós-medieval: “São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, europeia, misturada com índios e negros. E são milênios além da medida dos tempos aritméticos ou da loucura matemática […]. Então, a civilização é muito pequena, antes de Cristo e depois de Cristo. Um desenvolvimento tecnológico na Europa, econômico, o mercantilismo, o capitalismo, o neo-capitalismo, o socialismo, transcapitalismo, transsocialismo, todo um desespero de uma humanidade em busca de uma sociedade perfeita. […] Conflitos religiosos entre católicos e protestantes provocaram explosões, navegações, guerras. Invasões cristãs na África do Norte. Espanha, Portugal e Inglaterra ocupam a América do outro lado. Índios massacrados, negros importados. Guerras de Independência, latifúndios, indústrias. […] Guerras civis, levantes, caudilhos, guerras, guerrilheiros, revoluções. Golpes de Estado, democracia, regressões, avanços, recuos, sacrifícios, martírios. A América do Norte se desenvolve. O desenvolvimento tecnológico americano leva a civilização ao mundo do Século XX. A Revolução Soviétyka, a Revolução Soviética de 1917, comandada por Lenin, Trotsky e Stalin, subverte completamente o discurso capitalista norte-americano. Enquanto isto os povos subdesenvolvidos da América Latina, da Ásia e da África pagam o preço do desenvolvimento tecnológico da Europa, dos Estados Unidos. Da Europa capitalista, da Europa socialista. Da Europa católica, protestante, ateia. Dos Estados Unidos. Os povos subdesenvolvidos estão na base da pirâmide. […] Existirá uma síntese dialética entre o capitalismo e o socialismo. Estou certo disso. E no Terceiro Mundo seria o nascimento da nova, da verdadeira democracia” (ROCHA, 1985, p. 461-3).
Encontrem ou não reforço na História encenada pelos filmes de onde vieram, estes três retrospectos proferidos por Glauber em monólogos over cobrem vários séculos e já dilatam assim o tempo histórico concernido pelos filmes, de modo a empurrar sua ficção para um terreno de duração mais longa.[vi]
História encenada e História evocada
Vemos então que a ampliação do arco espácio-temporal coberto pelos filmes vai de par com a entrada em jogo, em seu transcurso, de monólogos historiográficos proferidos pelo próprio Glauber ou por seus representantes (caso de História do Brasil, ao qual voltarei).
A bem da verdade, os filmes de Glauber sempre recorreram a elementos sonoros (músicas, monólogos over) para comentar suas ficções ou acrescentar-lhes camadas de significação. A canção tradicional no fim de Barravento (“vou pra Bahia pra ver se dinheiro corre / se dinheiro não correr, ai, Deus, ai / de fome ninguém não morre”) comentava a aposta do personagem Aruã, que deixava a comunidade de Buraquinho para procurar trabalho em Salvador. As canções de Cordel comentavam a trama inteira de Deus e o Diabo, desempenhando ali um papel dramático muito importante. O cine-jornal satírico de Paulo Martins sobre Porfírio Diaz nos revelava a sua biografia política que, doutro modo, nos ficaria desconhecida. O monólogo over inicial com um trecho de Francisco de Orellana relatando sua descoberta do Rio Amazonas em 1542 nos fornecia uma informação histórica que o resto de Amazonas Amazonas não nos daria mais. Os monólogos cantados ou recitados dos diversos personagens de Der Leone também traziam retrospectos que comentavam ou enriqueciam a representação dos conflitos coloniais ou neo-coloniais ali em jogo.
Mas a partir de Cabezas Cortadas e da sonorização de Câncer em 1972, é o próprio Glauber quem empresta sua voz para monólogos over que irrompem, por assim dizer, “de fora”, para evocar uma História que não coincide necessariamente com aquela que o filme representava em seu relato, seja para expandi-lo, seja para explicitar um enquadramento histórico que a narrativa do filme não trazia. Desse modo, instaura-se uma clivagem entre uma História encenada nos filmes e uma outra História paralela, evocada nos monólogos over do cineasta[vii]. É na relação entre estes dois pólos (o da encenação e o da evocação) que passa a se definir o discurso histórico dos seus filmes.
Tal clivagem cria em alguns filmes um hiato temporal entre o que é encenado e o que é evocado. Em Cabezas Cortadas entre o exílio do velho Diaz II encenado no filme e a evocação na voz de Glauber da História de Eldorado, que cobre 4 séculos; Em Claro entre, de um lado, a movimentação na Roma de 1975 dos personagens alegóricos, de Glauber e Juliet e, de outro, a evocação verbal por Glauber de décadas de História mundial; Em A Idade da Terra, entre, de um lado, as perambulações dos 4 Cristos e dos outros personagens pelas cidades de Brasília, Rio e Salvador e, de outro, o longo retrospecto histórico evocado na voz de Glauber e já citado aqui. Cria também uma modulação política entre as imagens (“micropolíticas”) de Câncer mostrando um concorrido debate de intelectuais no MAM ou um evento beneficente com artistas e as evocações em over, por Glauber, do contexto (macropolítico) do Brasil de 1968.
Cria enfim uma modulação, por assim dizer, “epistêmica” entre a História encenada em imagens e sons (materializada, objetivada diante de nós) e a História enunciada por Glauber quase sempre de modo bastante informal, por vezes improvisada no momento da mixagem dos filmes, tendendo sempre a ganhar um coeficiente mais alto de subjetividade[viii] do que o discurso fornecido pelo restante do filme. Glauber tende a misturá-la a referências ou situações de sua própria intimidade, a ancorá-la na sua voz e no seu corpo, a proferir seu discurso na primeira pessoa, como em Di: “o Di Cavalcanti eu conheci na Bahia em 1958. Di Cavalcanti apareceu lá com Roberto Rossellini…” [7’08”]. Ou como, para citá-lo mais uma vez, no início do “Sermão do planalto” em A Idade da Terra: “No dia que… Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a vida de Cristo no terceiro mundo …” [126′, transcrito em ROCHA, 1985, p.461].
Promoção do anacronismo
O rearranjo nos anos 1970 da articulação entre diacronia e sincronia na visada histórica dos filmes dá lugar a uma verdadeira poética do anacronismo na figuração da História (em Cabezas Cortadas e Claro), que incide pontualmente em seu primeiro e único exercício fílmico de estrita historiografia diacrônica (História do Brasil) e desemboca no afresco trans-histórico de A Idade da Terra. Desde Cabezas Cortadas, começa a ficar mais nítida uma visada trans-epocal na figuração glauberiana da História, que tempera a diacronia de História do Brasil, se traduz na superposição de épocas no interior de cenas de Cabezas Cortadas e Claro, e se dissemina na concepção mesma de A Idade da Terra.
Realizado com Marcos Medeiros de 1972 a 1974 (sem chegar a uma versão final que satisfizesse Glauber e o levasse a incluí-lo em sua obra fílmica completa), História do Brasil se propunha a elaborar uma síntese de quase 500 anos da nossa história, dos descobrimentos aos inícios dos anos de 1970. Depois de muitas vicissitudes de produção, a versão que nos restou foi finalizada em outubro de 1974 em Roma, com cerca de 150′. Numa longa primeira parte de 117′ ela traz, proferido em over por um locutor masculino (o amigo Jirges Ristum), um retrospecto dos principais acontecimentos sociais, políticos, econômicos e culturais dessa história. Embora apresente ênfases, angulações e formulações por vezes peculiares, que podem gerar alguma estranheza, tal retrospecto verbal observa uma estrita diacronia e tende para uma abordagem factualista da História em questão. Sua relação porém com a banda imagem produz um resultado muito mais complexo, pelo desacordo constante entre o que diz o texto e o que mostra a imagem, composta de um conjunto variado de filmes brasileiros e mesmo latino-americanos, além de muitas fotos, mapas, ilustrações etc. Frequentemente, referências verbais a uma determinada época coexistem com imagens que remetem a outra, de modo a que elas se superponham num resultado trans-epocal, ou francamente anacrônico.
Logo nos primeiros planos do filme, por exemplo, enquanto o locutor se refere ao contexto europeu que condicionou o desenvolvimento das navegações rumo ao Novo Mundo (revolução cultural promovida pelo capitalismo mercantil europeu culminando no Renascimento do Quattrocento, tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 bloqueando as rotas terrestres para a Ásia e a África), vemos imagens de um homem miserável num leito de hospital de São Luís do Maranhão extraídas do documentário Maranhão 66, do próprio Glauber. Convivem assim, já no início, processos históricos do século XV europeu e um flagrante da miséria maranhense de 1966, numa disjunção de montagem entre a imagem e o som que o filme não cessará de reiterar, de modo a conjugar a diacronia do seu relato histórico verbal com um constante impulso anacrônico[ix].
Tal impulso já aparecia claramente em Cabezas Cortadas.[x] Numa longa sequência [16′-27′], vemos uma representação alegórica do processo de colonização hispânica: encarnando o Rei ou ao menos o colonizador, e secundado por dois cavaleiros medievais (um mouro de turbante, outro cristão de armadura), Diaz II avança por uma região montanhosa até encontrar um índio [Fig. 1], arrancar-lhe das mãos para erguer em triunfo uma pedra de ouro e subjugá-lo [Fig. 2]. O anacronismo da cena salta aos olhos, por misturar o universo histórico das Cruzadas com o dos descobrimentos e da colonização da América. Advindos de épocas e situações históricas distintas, os personagens dos cavaleiros e do ameríndio convivem na mesma cena e no mesmo plano, todos submetidos à vontade de Diaz II.
Assujeitado a Diaz II, o índio subjugará por sua vez um homem vestido com roupa branca do século XX (operário?), e ambos cerrarão fileiras com os colonizadores numa cena posterior que acentua o efeito de anacronismo, ao confrontar este quinteto multi-secular com um grupo de uns 15 homens vindos do século XX, armados de fuzis (guerrilheiros? operários? mercenários?), e trazidos na carroceria de um caminhão [Fig. 3]. O plano do caminhão que avança se alterna, em campos-contracampos, com a imagem de Diaz II e seus partidários [Fig. 4]. Um confronto se desenha na alternância de campos de um lado, e contracampos de outro.
Um dos homens com fuzil desce do caminhão e caminha rumo à câmera, como se preparasse um duelo com Diaz II. Este entra no quadro a cavalo [Fig. 5], despoja com um golpe de espada o opositor de seu fuzil, antes que o índio e o homem de branco lhe apontem armas para a cabeça, rendendo-o [Fig. 6]. Um plano em contracampo mostra agora apenas os opositores atirando do caminhão [Fig. 7], até que, no plano mais fortemente anti-realista da sequência, Diaz II e seu grupo, em câmera lenta, ao som de uma espécie de sirene acompanhada de rajadas de tiros, avancem no quadro rumo ao caminhão dos adversários [Fig. 8], para atacá-los com suas armas (lanças, espada, fuzis), vindas, elas também, de épocas distintas.
Está consumada assim uma figuração plenamente anacrônica de um confronto trans-epocal entre, de um lado, a figura do Rei e seus vassalos, que remetem ao período das cruzadas, da expansão ultramarina e da colonização da América Latina, e, de outro, um grupo de opositores saído certamente do século XX, senão de 1970.
Em Claro, logo no segundo plano, vemos Juliet Berto no Forum Romano, vestindo um poncho marrom com padronagem bege, que faz pensar na América Latina. Em seu entorno, turistas visitando o lugar parecem surpresos e atentos a uma gritaria de Glauber no extracampo, cujos sons remetem a alguma língua ameríndia. Juliet responde com gritos igualmente indecifráveis, mimetizando tal língua, num dueto extravagante que prossegue (com ou sem gritaria) até as proximidades do Coliseu, e rouba totalmente, em diversos pontos do trajeto [Figuras 9 a 12], a atenção dos turistas.
Assim, quatro realidades históricas convivem num mesmo Happening trans-epocal: o presente dos artistas e dos turistas que os observam em 1975, o passado da Roma imperial a que as ruínas do Forum e do Coliseu remetem tanto os visitantes em cena quanto os espectadores do filme, o mundo latino-americano de que o poncho funciona como metonímia, e mais precisamente a civilização ameríndia sugerida pelo canto de Glauber e Juliet. Centro e periferia, império e mundo novo, colonizador e colonizado coexistem assim numa única cena, que opera uma notável superposição de tempos históricos e confere ao anacronismo toda a sua potência de significação.
Tal superposição certamente terá sido sugerida a Glauber pela cidade mesma de Roma, cuja variedade de camadas históricas convida o visitante ao exercício do raciocínio trans-epocal, reflexo quase inevitável de quem transita pela cidade e se vê o tempo todo passando da Roma antiga à moderna e vice-versa. Mas configura também um diálogo atento com dois filmes romanos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Os olhos não querem sempre se fechar ou talvez um dia Roma se permita fazer sua escolha, de 1969, e Lições de História, de 1972), que construíam uma verdadeira poética do anacronismo, ao encenarem em 1969, pertinho do Forum, no Monte Palatino, a peça Othon (1664) de Pierre Corneille, cujo enredo se passa no século I d.C., ou em 1972, a partir do romance inacabado de Bertolt Brecht Os Negócios de Júlio César (1938-9), conversas de um homem de hoje com contemporâneos de Júlio César, vestidos a caráter, que ele vai procurar, de carro, atravessando para isto a Roma de 1972.
Esta promoção do anacronismo em Cabezas Cortadas, História do Brasil e Claro acabará desembocando num dos filmes mais complexos de Glauber em termos espácio-temporais, seu derradeiro A Idade da Terra. Ali, a premissa mesma do projeto repousa na encenação anacrônica, em pleno Brasil do fim dos anos 70, da figura do Cristo, refratada em quatro personagens distintos – um Cristo índio, um Cristo negro, um Cristo guerrilheiro e um Cristo militar.
Afora a ambientação no Brasil do presente (Rio, Brasília e Salvador) e algumas alusões permitindo situar a trama no fim da década de 70 (referência a Jimmy Carter, entrevista com Carlos Castello Branco sobre a política externa do regime militar até o governo Geisel etc.), a movimentação dos Cristos e dos outros personagens nas respectivas cidades não chega a desenhar uma cronologia clara. Desde o início do filme, notamos variações espetaculares na própria escala temporal: à imagem inicial do nascer do Sol no Palácio da Alvorada em Brasília, sucede um ritual cosmogônico sincrético cheio de ressonâncias ameríndias (mas com falas do Cristo em português), que leva sem transição ao desfile de algumas Escolas de Samba do Carnaval carioca de 1978 na Av. Marquês de Sapucaí, ao qual sucederá uma entrevista em Brasília com o jornalista Carlos Castello Branco sobre a política externa do regime militar depois do golpe de 1964. Do imemorial ao conjuntural, a passagem é brusca, neste início como noutros momentos do filme, e permite perceber em todo o seu desenrolar um regime temporal que tendeu a banir a diacronia, os elementos mostrados se organizando como uma espécie de afresco ou mural sobre a vocação do Brasil para renovar a civilização ocidental[xi].
E se falo aqui em mural, penso no México e mais especificamente no projeto eisensteineano de Que Viva México!, que alimentou toda a gênese de Idade da Terra, desde uma versão preliminar do projeto submetida no ano de 1974 em inglês ao governo mexicano (que não topou financiá-lo) como uma adaptação do roteiro de Eisenstein[xii], até sua tradução batizada de Anabaziz – o primeiro dia do novo século”, datada de 16/3/1977 e apresentada como “primeiro tratamento” do filme[xiii], que seria rodado em 1977-79. O roteiro de Eisenstein, que não resultou em filme finalizado por ele, anunciava já no prólogo um trânsito contínuo entre épocas diversas: “o tempo do prólogo é a eternidade. Poderia ser hoje. Poderia ter sido há vinte anos. Poderia ter sido há mil anos atrás” (Eisenstein, 1964, p.66), dizia uma passagem mantida na versão reconstituída por Grigory Alexandrov (5’37” – 5’53”).[xiv] Ora, mutatis mutandis, uma tal observação valeria para A Idade da Terra, com seus saltos espácio-temporais entre o imemorial e o conjuntural, entre o “pássaro da eternidade”, cuja existência é negada pelo Cristo índio na cosmogonia inicial, e a “cloaca do universo” que o Cristo militar enxerga no Brasil do fim da década de 1970.
A sobreimpressão como figura estilística da História sincrônica
Vigente em alguns filmes do Glauber maduro, esta visada sincrônica da História ganha na figura da sobreimpressão uma tradução estilística até então inédita no seu cinema. Neste, o arsenal de metáforas da História (notavelmente discutido por Ismail Xavier) vinha sobretudo do mundo representado, na figura de um fenômeno natural (o barravento no filme homônimo, referente à natureza mas extensivo à História), de um construto da consciência (a profecia segundo a qual o sertão vai virar mar em Deus e o Diabo), de um estado psíquico (o transe em Terra em Transe), de uma enfermidade corporal (o Câncer no filme homônimo), . Nos filmes realizados a partir do exílio, a concepção da história continua mobilizando o procedimento constante em Glauber da disjunção entre som e imagem (como vimos em História do Brasil), mas ganha uma figura nova, propriamente formal, na sobreimpressão de imagens.
Até então ausente do cinema de Glauber, a sobreimpressão traduz a sobreposição de tempos e espaços históricos no mundo representado pelos filmes, e parece indicar a coexistência de camadas temporais até mesmo no seio do presente. Sua primeira aparição, salvo engano, se dá no miolo de Claro, numa cena de escadaria pública em Roma sobre a qual vem se sobrepor a capa do jornal Daily American de 30/4/1975 cuja manchete principal anuncia a rendição de Saigon e a derrota americana na Guerra do Vietnã [Fig. 13].
13 – Claro (1975)
Ficam assim conectados a História mundial e a aventura pessoal do casal Glauber / Juliet Berto (vemo-la na imagem, com seu poncho marrom), a Guerra do Vietnã e Roma ou, mais precisamente, a derrota do imperialismo americano em 1975 e a decadência do Império romano, evocada várias vezes nas falas de Glauber e Juliet. A coexistência destas realidades históricas diversas, na visada presente no filme, é assim tanto espacial quanto temporal. A sobreimpressão de imagens cuida de traduzi-la visualmente.
Mais adiante, perto do fim do filme, um segundo recurso à sobreimpressão vai ainda mais longe e mais fundo numa sequência excepcional (86′-95′), que nos mostra uma visita de Glauber, Juliet e outra moça a uma ocupação irregular no bairro de São Basilio, periferia de Roma, de uma comunidade de pobres de várias gerações, que vinha sofrendo um cerco constante da polícia, como conta a Juliet Berto uma militante política numa cena anterior. Nesta espécie de happening de solidariedade política, Glauber chega muito agitado àquele lugar, gesticulando muito e conversando com muitas pessoas ali, que o recebem como um aliado, mas com uma curiosidade que não exclui alguma reserva e alguma estranheza. Ele procura interagir, fala muito mas impede as pessoas de desenvolverem seus raciocínios. Sua abordagem nervosa não dá a cada um o tempo de se exprimir, um pouco como ocorre em As Armas e o Povo, de cujas entrevistas nossa sequência é irmã, e um pouco como ocorrerá em quase todas as suas entrevistas para o programa Abertura em 1979.
Aos 92′, seis minutos após o início da sequência, a mixagem cobre o som das falas com a Bachiana de Villa-Lobos que até então coexistia com elas, e as imagens da visita aparecem agora sobreimpressas umas às outras, em duas e por vezes três camadas. Isto ocorre num momento da visita em que o quadro fica menos saturado que antes e as pessoas escasseiam um pouco no campo visual em que vemos Glauber, Juliet e a outra moça perambulando por ali. Mas as sobreimpressões fazem coexistir, numa mesma imagem, figuras humanas de consistência visual distinta (algumas muito diáfanas, outras mais sólidas, outras completamente fugidias), como se o cinema devesse tomar parte, em sua potência figurativa, na construção de uma comunidade possível naquela circunstância histórica, acrescentando uma promessa figurativa de sociabilidade à imagem da comunidade ameaçada. Ou como se o cinema pudesse alargar com seus espectros o campo de possibilidades da luta política no presente, ela também portadora de diversas camadas de historicidade. Seja como for, a comunidade real daquela ocupação é prolongada, duplicada, “reforçada” por uma comunidade vislumbrada na imagem sobreimpressa, que traz crianças, velhos etc [Figuras 14 a 16]. Realidade e promessa parecem se superpor, numa modalização ontológica daquela luta política.
Em algumas imagens, Glauber aparece duplicado no quadro, como se contracenasse consigo mesmo na condição de marionetista de si, atuando ao mesmo tempo como ator, observador e agenciador daquela movimentação política. De braços abertos, se apresenta frontalmente para a câmera como um agitador, um agenciador daquele happening. De perfil, parece inspecionar seu efeito, seu braço se sobrepondo às imagens superpostas dele próprio e de Juliet, como se controlasse manualmente seus respectivos movimentos [Figura 17].
Conclusão
Central nos anos 1960, a questão da História continuou a sê-lo no cinema de Glauber dos anos 1970. Nas duas décadas, o cineasta soube lidar com o “Kairós“, o momento propício, reagindo rápido às solicitações do mundo que exigiam sua intervenção, numa gradação de urgências que não seria ocioso esquematizar.
Houve as urgências mais imediatas, diante das quais era “pegar ou largar”, filmando no calor da hora ou perdendo para sempre a ocasião: as passeatas históricas de 1968 contra a Ditadura no Rio (filmadas em 1968), a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974 (As Armas e o Povo), passeatas e comícios da esquerda romana em 1975 (Claro), a morte de Di Cavalcanti em 1976 (Di).
Houve os projetos ambiciosos, mais meditados, com gestação mais longa, que nem por isso deixaram de responder a situações decisivas que solicitavam sua intervenção: a revolução socialista que se julgava iminente em 1963 no Brasil e exigia participação (Deus e o Diabo), o Golpe civil-militar de 1964 no Brasil, ainda recente, que exigia ao mesmo tempo resposta, resistência e reflexão (Terra em Transe), o ciclo dos movimentos de descolonização na África com os quais era preciso se solidarizar artisticamente (Der Leone), o vislumbre de uma abertura política no Brasil a preparar com balanços históricos de fôlego (História do Brasil), agitação democrática (o programa Abertura) e esforço de meditação histórico-antropológico (A Idade da Terra).
E houve ainda ocasiões de viabilizar projetos que de algum modo interessavam ao cineasta, permitindo-lhe tratar de temas que lhe eram caros (Barravento, Jorjamado no Cinema), ou investir em experimentos técnicos (a cor em Amazonas Amazonas, o som direto em Maranhão 66 e no Dragão, o plano-sequência em Câncer), ou ainda voltar com angulação nova a universos que já abordara (O Dragão retomando Deus e o Diabo, Cabezas Cortadas retomando Terra em Transe).
Se, assim como sua permeabilidade ao diálogo com outros cineastas,[xv] sua postura de disponibilidade para os estímulos externos permaneceu forte, ela mesma ajuda a explicar a inflexão que se tentou caracterizar aqui. Saindo do Brasil, Glauber reorientou seu universo dramatúrgico nos filmes tricontinentais, estendendo-o à África, ao mundo hispânico e a um Ocidente de cristianismo sincretizado. A preparação com Marcos Magalhães de História do Brasil, que lhe exigiu laboriosa pesquisa cobrindo quinhentos anos dessa História, e a elaboração do roteiro de O Nascimento dos deuses, que lhe exigiu alguma pesquisa também sobre a história antiga, mudaram de vez a escala de suas indagações históricas[xvi]. O alargamento espacial se fez assim acompanhar de um alargamento temporal do seu mundo, num esforço crescente de totalização que almeja o plano macro mas também desce ao micro, incluindo a esfera do sujeito em seus filmes, nos quais abre uma clivagem entre o que há de histórico na encenação e o que há de histórico na reflexão em voz alta do cineasta.
Na relação entre encenação e reflexão, diacronia e sincronia se rearranjam, esta tornando-se mais saliente, aquela tendendo a sair de cena nos filmes tardios, para sobreviver residualmente nos monólogos over do cineasta ou de seus representantes. Se ainda vigorava de Barravento ao Der Leone (apesar de transtornada em Terra em Transe, cuja narrativa trazia descontinuidades, flashbacks, idas e vindas) a diacronia se enfraquece em Cabezas Cortadas e Câncer (montado em 1972), se complexifica em História do Brasil para praticamente desaparecer em Claro e A Idade da Terra, nos quais a atuação dos atores não desenha uma cronologia clara. No entanto, nestes filmes dos anos 70, a diacronia que desaparecera das encenações reaparece nos monólogos, numa curiosa inversão de sinais, enquanto a banda imagem promove o anacronismo e acolhe uma nova figura da História sincrônica, até então inédita no cinema de Glauber: a sobreposição de imagens.
*Mateus Araújo é professor de teoria e história do cinema na Escola de Comunicação e Artes da USP. Organizou, entre outros, o livro Glauber Rocha /Nelson Rodrigues (Editora Magic Cinéma).
Texto lido em 1/12/2016, no I Colóquio Internacional “Cinema e História” (ECA-USP, 2016), e publicado em AGUIAR, Carolina A.; CARVALHO, Danielle C; MORETTIN, Eduardo; MONTEIRO, Lúcia R. e ADAMATTI, Margarida (Org.). Cinema e História: circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Sulina, 2017, p. 62-89.
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Notas
[i] Publicado primeiro em tradução francesa para o livro coletivo Le Cinéma Brésilien (Paris: Centre Pompidou, 1987), organizado por Paulo Paranaguá, e só muito depois no original português, recolhido no livrinho O Cinema Brasileiro Moderno (São Paulo: Paz e Terra, 2001). Desse texto exemplar, ao qual devem demais, minhas notas se pretendem um adendo e uma homenagem.
[ii]Deus e o Diabo condensava uma história das revoltas populares no Brasil, encenando duas de suas derrotas mais emblemáticas, a Guerra de Canudos (1897) e o fim do cangaço (1938), e vislumbrando uma revolução socialista figurada na profecia segundo a qual “O sertão vai virar mar”. Terra em Transe relatava alguns minutos ou algumas horas da deflagração, num país imaginário, de um golpe de estado (cujo referente era o de 1964 no Brasil), dilatados por flashbacks cobrindo um período de alguns anos pregressos, e remetendo a uma formação histórica colonial.
[iii] Para uma proveitosa discussão sobre as diversas versões deste roteiro de 1965-6 nunca filmado enquanto tal, e as integrações parciais de elementos seus em Terra em Transe e em filmes posteriores, ver Avellar (1981).
[iv] Em outubro de 1973, a RAI convida Glauber a fazer um filme histórico a partir da Ciropédia e da Anábasis de Xenofonte, no rastro de outros que Rossellini já vinha fazendo, dentre os quais um sobre Sócrates. Conversa vai, ajuste vem, ele estuda um pouco a história antiga e escreve nos cinco primeiros meses de 1974 um roteiro intitulado O Nascimento dos Deuses (La Nascita degli dei) para um filme de seis horas, dividido em duas partes, uma em torno de Ciro da Pérsia (“Ciro, Lua do Oriente”), a outra em torno de Alexandre da Macedônia (356-323 a. C.), “Alexandre, o Sol do Ocidente”. Numa carta saborosa de 6/1/1974 a Zelito Viana, Glauber descreve as linhas gerais do argumento inicial que esboçara, indicando ao mesmo tempo as matérias que pretendia abordar e o modo vislumbrado de abordá-las (ROCHA, 1997, p.477). Nunca filmado, seu roteiro italiano acabou publicado postumamente na Italia (Torino, ERI, 1981). Jamais traduzido fora da Itália, na qual suscitou pouquíssima discussão, salvo engano ninguém escreveu, no Brasil como na França e no mundo anglófono, sobre este roteiro, que permanece assim praticamente virgem na bibliografia mundial. Seu exame ainda espera um trabalho em colaboração entre um estudioso de Glauber e um helenista.
[v] Consultei e citarei aqui os filmes de Glauber nas cópias em DVD lançadas no mercado brasileiro pela parceria Tempo Glauber / Versátil ou, no caso de Cabezas Cortadas e Claro, naquelas telecinadas pela Cinemateca Brasileira em 2002 a partir de suas matrizes, para a pesquisa de Duvaldo Bamonte na ECA-USP.
[vi] O que não chega a ocorrer no caso, por exemplo, dos seus dois monólogos over em Câncer, que se limitavam a circunscrever e ancorar o tempo da filmagem (senão o da ficção) no ano turbulento de 1968, ou de um outro em Di que se limitava a evocar seus encontros com o pintor num período de 13 anos (de 1958 a 1971),
[vii] Radicalizando algo que se insinuara num bloco mais para o fim do Dragão da Maldade (78’12”- 91’42”), em que uma longa canção de cordel relatava, a 4 ou 5 breves intervalos, a tentativa tumultuada de Lampião de entrar no inferno após sua morte (história mítica sem relação narrativa direta com aquela encenada no filme).
[viii] A esta espécie de História subjetivada, em que as esferas coletiva e individual, política e pessoal se interpenetram, poderíamos talvez associar um neologismo que Glauber passou a usar na segunda metade dos anos 70, com a grafia peculiar adotada por ele naquela altura: “Heustórya”, ou “Heuztórya”, que vem substituir em alguns textos o substantivo “História” de modo a inscrever o Eu na sua esfera. Veja-se a este respeito sua carta de 3/1/1976 a Cacá Diegues (ROCHA, 1997, p.574) e algumas ocorrências do neologismo em textos tardios do Século do Cinema (cf. ROCHA, 2006, p.49, 150, 166, 167 e 259). Em minha tradução francesa do Século, diante da dificuldade trazida pelo neologismo e suas variantes, adotei uma solução de sabor godardiano, traduzindo-o pelo neologismo francês “Hist(m)oire”, levando em conta uma preocupação muito semelhante do Godard de então em articular a História coletiva com a experiência individual. No Episódio 1 da sua série France Tour Détour: deux enfants (1977) realizada com Anne-Marie Miéville, os autores chegam a propor uma sucessão de letreiros em que lemos “Histoire / toi / moi” [21’32”- 23’46”], dois anos depois de usarem em Numéro Deux (1975) os letreiros “Polítique / Histoire” [64’54”- 65′] no início de um longo depoimento de um velho militante sobre seu itinerário pessoal na luta política.
[ix] O leitor encontrará uma discussão mais detalhada deste e de outros aspectos de História do Brasil em CARDOSO (2007) e FONSECA (2008).
[x] Cada um a seu modo, XAVIER (2001, p. 133) e LEITE NETO (2016, p.156) já assinalavam a importância do anacronismo na poética do Dragão e não seria abusivo recuá-lo, com eles, até filmes anteriores.
[xi] Retomo aqui uma análise aguda de Ismail Xavier (1981), ainda hoje a mais lúcida já publicada sobre o filme.
[xii] Este projeto de filmar o roteiro eisensteineano no México é discutido por GOMES (1997, p.273-80) e aludido em carta de Glauber a Paulo Emilio de 15/1/1976 (cf. ROCHA, 1997, p.586). Comenteio-o brevemente noutro estudo (cf. ARAÚJO, 2014, p.212-4 e passim), em que discuto a importância maciça de Eisenstein para a obra de Glauber.
[xiii] Reproduzido em ROCHA, 1985, p.193-235, com considerações finais nas p.235-6.
[xiv] Consultada e citada aqui na versão em DVD da Continental Home Video, lançada no mercado brasileiro.
[xv] Com Godard pela inclusão de si na esfera da representação da História, com Straub e Huillet pela promoção do anacronismo em tal representação, e com Eisenstein pela visada trans-epocal na lida com a História da civilização. Para uma discussão mais circunstanciada sobre a relação de Glauber com o trabalho destes colegas, ver 4 estudos meus (ARAÚJO SILVA, 2007 e 2012; ARAÚJO, 2014 e 2015)
[xvi] Seja como for, vale assinalar uma curiosa convergência deste movimento do Glauber maduro com um outro, análogo, de um de seus colegas de maior envergadura no Brasil. O que Glauber faz com sua História Social ecoará, mutatis mutandis, naquilo que mais recentemente Júlio Bressane fez com sua história cultural, alargando o paideuma que vinha construindo das artes no Brasil (um panteão sincrônico em que conviviam Machado de Assis, Antônio Vieira, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Lamartine Babo, Noel Rosa, Caetano Veloso, Mário Reis etc) para explorar as significações de figuras marcantes da humanidade – Cleópatra, São Jerônimo e Nietszche.