Por LUIZ MARQUES*
Para enxergar “o avesso da história”, na expressão de Benjamin, há que desenvolver as virtudes da participação cidadã
“On ne détruit reellement que ce qu’on remplace” [Só se destrói realmente aquilo que se substitui] (Charles Baudelaire).
Entre os pensadores do século XX, Walter Benjamin tem um lugar de destaque. Nascido em 15 de julho de 1892, em Berlim, faleceu em 27 de setembro de 1940, em Port-Bou, na Catalunha. Pertencia a uma família judaica próspera, que faliu na Primeira Guerra Mundial. Viveu de colaborações jornalísticas e literárias para revistas e estações de rádio. Exilado em Paris, recebia pequena quantia financeira do Institut für Sozialforschung, origem da que ficou conhecida como a Escola de Frankfurt, berço da Teoria Crítica.
A atração que desperta atravessa diversas áreas acadêmicas e gerações de intelectuais. Aqui, são ressaltados os dois tipos-ideais de narrador estudados por Benjamin, representados pelo marinheiro que relata estórias de mares distantes e, o camponês, que relata estórias passadas nas terras que cultiva. O primeiro traz para perto experiências que vêm de longe, em termos espaciais. O segundo, experiências que aconteceram em períodos longínquos, em termos temporais. Na falta desses relatos instigantes, o próprio conceito de experiência se esvazia pela ausência de referentes que reportem a significados. Volatiza-se a “aura” que garantia a unicidade do que era contado como vivências de caráter único. Aura que, para Kothe, é “a categoria central de toda a produção de Walter Benjamin”. Como aplicar as alegorias sobre deslocamentos à política brasileira?
Um espectro ronda a humanidade
No Brasil, o tema político crucial é o fascismo, hoje. Na definição de Konder (Introdução ao Fascismo, Graal) trata-se de: “Uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo… de conteúdo social conservador… servindo-se de mitos irracionalistas… é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, anti-operário… pressupõe as condições da sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência de certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro”. Quando o livro foi publicado, o neoliberalismo ainda não havia se tornado o modelo socioeconômico hegemônico, na maioria das nações ocidentais. O Consenso de Washington, algoz de direitos, ocorreria mais tarde (1989).
A manipulação que o fascismo promoveu na opinião pública nos anos 30, na Europa, por via de emissões radiofônicas, na atualidade se processa no país por intermédio de redes sociais na internet, financiadas pelo governo federal e por empresários. Ênfase para os ruralistas ligados ao agronegócio, os fabricantes de armas, os rentistas e os investidores nas Bolsas de Valores, no apoio à versão tropical do horror – o bolsonarismo. Não à toa, Jair Bolsonaro demonstra desespero com a desmonetização desses veículos digitais pelo cerco, em curso, do Senado da República e do Supremo Tribunal Federal (STF) aos robôs que propagam mentiras, assimiladas sem metabolização por humanos robotizados.
A extrema-direita nutre-se de fake news, para manter galvanizada a base de fanáticos. Arregimenta-os com a prática do ilusionismo metódico. Não impede, às vezes, a correção de rumos. Vide o noticiário: “XP Investimentos cancela pesquisas eleitorais, por deliberação dos donos e clientes bolsonaristas”. Deu ruim. Na corrida presidencial para 2022, a performance de Lula da Silva, que resistiu à campanha de infâmias e à prisão, surpreendeu o mercado. A Antropofagia, de Oswald de Andrade, com bastante pimenta e azeite de dendê da Bahia, faria bem ao desarranjo intestinal dos insatisfeitos. Ademais, conforme a sapiência do capitão, contribuiria para conter o aquecimento global (sic).
Pena que, diante do Pinóquio do Mal, a mídia corporativa limite-se às reprimendas morais sobre o decoro e a condução genocida no (des)tratamento da pandemia. Sem soltar um pio sobre a virulenta doença neoliberal que atinge a economia e acarreta a fome, o desemprego e o sofrimento. Ao agir com seletividade, a Rede Globo cede à desconstrução do Estado de Direito Democrático. Suprime do imaginário coletivo as experiências transcorridas no território nacional à época dos governos progressistas. A mordaça, útil à lógica predatória da elite da qual a família Marinho faz parte, elide a promesse de bonheur que envolveu a ascensão social de mais de 30 milhões de cidadãos em uma década, a valorização do salário mínimo vinculada às aposentadorias, a política de cotas afirmativas, a expansão do número de universidades federais, a transposição do rio São Francisco, etc.
A história é uma ruína alegórica
Na democracia, o passado constitui o presente capaz de concretizar o futuro. No fascismo, o presente reconstitui o passado com a missão de bloquear o futuro. Então o deslocamento pende no sentido do rígido congelamento do devir, corrompe a imaginação e paralisa a ousadia na gramática da opressão. Sem rememorar a felicidade perdida, a ira dos insurgentes não reúne forças para erguer a clava da razão transformadora contra as (im)políticas alienantes e excludentes, que sequestram o bem comum. A práxis libertadora de grilhões baseia-se no desbloqueamento da memória de tudo que conseguiu escapar à fúria da colonização. Contudo, conquistar o possível requer o que Boaventura de Sousa Santos (O Futuro Começa Agora, Ed. Boitempo, 2021) denomina “ruínas”.
A saber, os elementos dos povos originários que sobreviveram, de forma material ou imaterial, à destruição dos colonizadores. Das ruínas presentificadas advêm o elã necessário e imprescindível à luta, que não remete a um desejo nostálgico para voltar atrás, senão para ir em frente no rumo de experimentos, com efeito, civilizacionais – para além do binômio da dominação e da subordinação. A consciência sobre os significantes contidos nas ruínas, por exemplo, das queimadas da Amazônia, do artesanato dos indígenas, do Quilombo dos Palmares, dos costumes dos imigrantes de várias nacionalidades, da música caipira, da capoeira ou da sede do combativo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo – serve de impulso atávico aos anseios anímicos de liberdade e igualdade, dignidade e cooperação. Como no poema benjaminiano de Paulo Leminski: “Lendas vindas / das terras lindas / de orientes findos // me façam feliz / feito esta vida não faz”.
Para alcançar os objetivos totalitários, o sufocamento das alegorias do marinheiro e do camponês é estratégico. Porque, independente dos polos, tais narrativas fundamentam as diferenças que conferem à coletividade balizas de orientação, empatia e conduta para restaurar a aura simbólica do vivido. Preservar as alegorias (etimologicamente, “dizer o outro”) através de lembranças e sinais enaltecendo o que se distingue nas evocações – é um ato de resistência às ações deletérias da necropolítica do poder, cuja ambição consiste em barrar as reminiscências de revoltas e a esperança popular, em nome de uma dimensão unitemporal que fagocita a dialética do passado, presente e futuro.
A gravura de Paul Klee (Angelus Novus, 1920), de que Benjamin muito gostava, traz um anjo que avança olhando para trás, onde ruínas se acumulam fruto do progresso. O filósofo sintetizou a imagem da seguinte maneira: “O caminho que leva o anjo (da história, decerto) para o futuro é o caminho de onde ele veio”. O futuro é o que o passado poderia ter sido, e não foi. Os resquícios, os pedaços que restaram após o genocídio são a prova que fornece as convicções para o direito ao amanhã. A máxima vale para a sociedade. A história é uma ruína alegórica, não uma sentença de condenação ao destino de zumbis no sistema de mercadorias. Por sedutoras que pareçam nos shopping centers.
Aos lutadores sociais e políticos, cabe o trabalho de colher do esquecimento a energia de antigas batalhas para vencer a distopia do fascismo no âmbito estatal e, do neoliberalismo, no âmbito sociocultural. A ave de Minerva alça voo ao entardecer quando um mundo fenece e nascem novos sonhos. As alegorias ajudam-nos a reencontrar a bússola ideopolítica que leva à utopia. Uma coisa já sabemos. Entre nós, a democracia não pode depender apenas da representação política (leia-se: Centrão). Para enxergar “o avesso da história”, na expressão de Benjamin, há que desenvolver as virtudes da participação cidadã.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.