A era dos genocídios – II

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Segunda parte de artigo sobre a conjuntura e os impactos do golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende

[Para ler a primeira parte deste artigo clique aqui]

Crise e dependência: um regime exemplar

Comecemos então pelo contexto da trama proposta por Pasolini: o da crise e da transição. A trama situa-se precisamente após o desembarque das tropas dos Aliados e a subsequente dissolução política (24.07.1943, Roma) do governo nacional do regime fascista (1922-43). Seguiu-se o resgate, por comandos nazistas, de Mussolini (1883-1945), cuja prisão fora decretada pelo novo governo, e a formação consecutiva, logo a seguir (23.09.1943) do protetorado de Salò, autointitulado República Social Italiana e sob a guarda de tropas alemãs.

Assim, o que a trama de Salò… traz à luz é o processo próprio da formação de um novo regime-títere. Vale dizer, gerado numa posição de dependência intrínseca, cuja dinâmica irá fomentar a constituição de um consórcio político dedicado, não obstante, à implementação de um programa de experimentos pedagógicos ousados e inovadores – alegoria, já veremos como, do processo de “revolução passiva”.

Para estabelecer de imediato os laços com a discussão anterior, digamos que a cena da crise,[i] na qual se deu a transição dos vinte e um anos de regime monárquico-fascista, na Itália, para o protetorado nazista da República de Salò, instalada como secessão fictícia na região norte do reino (com Roma sob controle das tropas aliadas), alude ou equivale – como alegoria dramática concebida por Pasolini – às mudanças decorrentes do esgotamento terminal, nas economias centrais,[ii] do ciclo de expansão econômica; ciclo, este, que viria a ser alcunhado postumamente na mídia de os “Trinta gloriosos” (designação à qual retornarei).

Digamos ainda, para especificar a transição em questão, que as crises político-institucionais (mas de fundo econômico) que assinalaram – desigual, mas combinadamente – o término do referido ciclo (por exemplo, a de 68 na França,[iii] no México, nos Estados Unidos etc., e, analogamente, aquela no Chile de 1973, que deu lugar ao golpe), assinalaram igualmente, no plano dos paradigmas da ordem social estrutural, a superação de um marco político regulatório.

Noutras palavras, Salò… evoca alegoricamente a transição de um regime político para outro e a imersão subsequente num ciclo político-econômico totalitário, ou, quiçá, em “uma nova razão do mundo”, como preferem dizer Dardot e Laval.

No entanto, ao revés da minimização por estes últimos do papel fundador e funcional da violência na nova ordem, a perspectiva crítica, radicalmente pessimista, inquietante e de cunho distópico, desenvolvida por Pasolini no filme Saló…, comparte certos rasgos estruturais com aquela do editor de Bilbao. Ela pode ser traduzida sinteticamente pela hipótese de que os aparatos estatais capitalistas penetraram a partir de 1968 (e principalmente a partir de 1973, com o golpe no Chile) numa fase abertamente criminal, na qual nenhum pacto democrático ou valor civilizacional bastou para deter seus programas de renovação produtiva e de rentabilização de ativos financeiros e patrimoniais.

Nova razão, novos métodos, nova pedagogia

Essa é a transição histórica que Salò… prospecta, e que cumpre discutir a contrapelo da visão corrente, segundo a qual os casos de Santiago e de la Moncloa constituiriam alternativas antitéticas. Para tanto, comecemos por retornar ao contexto histórico.

O economista francês Jean Fourastié (1907-1990) nomeou “Os Trinta Gloriosos [Les Trentes Glorieuses]” à construção do mercado de consumo massivo nas economias ocidentais, num livro cujo subtítulo era “A Revolução Invisível de 1946 a 1975 [La Révolution Invisible de 1945 a 1975]”.[iv] Não obstante, simultaneamente nos demais países – e sabemos muito bem disso no Terceiro Mundo –, o processo de expansão limitou-se a um arremedo fugaz de modernização, fictícia e truncada, muito embora os falsários de plantão, a serviço das ditaduras, insistissem em referir “milagres”, com diferentes epítetos nacionais. De um modo ou de outro e lá como cá, tal expansão, que alardeava o mito do “pleno emprego”, já se acabou para as economias do Ocidente.

Entramos, de fato, numa era distinta – a da irredutibilidade do desemprego estrutural e permanente, senão crescente, que se traduz em genocídios ou em guerras totais de classe – em que práticas de segregação e extermínio tomaram foros de racionalidade e colonizam todas as esferas da vida cotidiana. Desse modo, ainda que os processos de modernização subsistam como inerentes à expansão automática e global dos mercados financeirizados, hoje – em lugar de alegarem a integração social – os atos de modernização (calcados em raciocínios atuariais) são formulados como processos “purificadores” que apregoam sanear e extirpar práticas, categorias e grupos sociais tidos como arcaicos e ineficientes.

A assimilação como genocídio

Ante o novo quadro dado pela violência sistemática, comecemos por revisitar a noção de genocídio, invocada por Pasolini para designar o extermínio sistemático de formas sociais e antropológicas.

De início, em seu ensaio “O Genocídio”, Pasolini alegou referir-se ao Manifesto Comunista – o que, de fato e sob certo aspecto, no que se refere em particular ao termo “genocídio”, talvez não seja literalmente exato. Porém, caso se tome o termo pela acepção que Pasolini emprestava explicitamente a ele, no sentido de “assimilação ao modo e à qualidade de vida da burguesia” de “amplos estratos” (subproletários e populações de origem colonial) “que tinham permanecido, por assim dizer, fora da história”,[v] pode-se, sim, reconhecer que boa parte da secção I, “Burgueses e proletários”, do Manifesto… trate desse processo de transformações em vasta escala.[vi] Pode ser também que, além de tais fenômenos históricos, Pasolini tivesse em mente os textos de Marx sobre a guerra civil na França, que são praticamente contemporâneos ao Manifesto e que trazem várias menções ao genocídio dos insurgentes de junho de 1848…

Não importa. A precisão filológica, aqui, não vem ao caso e pode ser posta de lado. Com efeito, mais do que a questão de se estabelecer a origem do termo, o que se requer é situar o sentido e a acepção da figura ou alegoria chave de genocídio – a que Pasolini retornou várias vezes, como veremos.[vii]

Modernização tardia

De todo modo, do Manifesto… Pasolini extraiu, sim, a noção de que a burguesia e o capital reproduzem-se mediante revoluções incessantes. Incorporemos a acepção à discussão. É provável que Pasolini quisesse pelo argumento escapar à dualidade das noções polares de “reacionário” e de “progressista”, como também ao mito do progresso e da historicidade linear – adotado não só por liberais, mas inclusive por sociais-democratas e stalinistas, para grande dano da classe trabalhadora.

Sabe-se que a Itália consistia, por sua vez, para Pasolini, numa nação, sob vários aspectos, do Terceiro Mundo, engolfada numa modernização acelerada e tardia. Tal percepção estava vinculada a outras, reunidas principalmente na forma de notas e fragmentos cinematográficos elaborados a partir das viagens de Pasolini à Índia (1969) e à África (1970).[viii]

Reunindo diligentemente observações desse processo, Pasolini desenvolveu um enfoque fragmentário, mas em moldes sistemáticos, do processo acelerado e tardio, mediante o qual as economias e formações sociais periféricas vêm a ser trituradas e deglutidas pelo sistema global de produção de mercadorias.

Revoluções burguesas

O que implicava o alerta de Pasolini sobre a “revolução de direita em curso”? Trocando em miúdos, não era outra, senão essa precisamente, salvo equívoco maior meu, a “revolução da direita” em andamento à qual se referia Pasolini: a unificação acelerada e desigual do mercado mundial, e as múltiplas consequências nela implicadas, atingindo inclusive extensas camadas da população italiana, do subproletariado urbano (focalizado em Accatone [1961] e Mamma Roma [1962]) à população das regiões rurais. A assertiva implicava decerto um dos significados de “revolução” presentes no Manifesto, a saber: o de revolução nos modos de produção, como processo inerente à dinâmica capitalista.

Tal proposição diferia crucialmente da visão celebrativa corrente sobre as revoluções burguesas como uma etapa de progresso político para as formações sociais e econômicas tidas por atrasadas. Segundo Pasolini, quando tomadas substancialmente como modernizações econômicas aceleradas, as revoluções burguesas não chegam a nenhuma forma ou modo democratizante. Antes, levam precisamente a hibridações fascistas, na forma de bonapartismos ou de cesarismos, que Pasolini busca justamente examinar, no caso em pauta, via a parábola ou alegoria sinistra de Salò… e de sua revolução passiva, verticalizada e focalizada principalmente no âmbito da cultura e dos costumes.

Logo, toda aproximação efetiva da perspectiva em questão, a de Pasolini, precisa passar, de um modo ou de outro, pelo tema da revolução passiva, posto por Gramsci, como o prisma decisivo ou constructo crítico fulcral para a análise da modernização dependente ou tardia. Noutras palavras, a crítica de Pasolini do que denominava de genocídio, trazido pela expansão econômica advogada pelo PCI, era indissociável de tal noção. É hora, pois, de precisar os seus termos e esmiuçar o uso que Pasolini fez de tal constructo.

A portas fechadas

O conceito de “revolução passiva” surgiu de um estudo crítico de Vincenzo Cuoco (1770-1823) sobre as razões do malogro da revolução napolitana de 1799. Concebida esquematicamente por intelectuais jacobinos napolitanos incapazes de conseguir o apoio camponês para seu projeto, a revolução em Nápoles acabou esmagada quando os camponeses, instigados pelo bispo, invadiram a cidade.

Inversamente, na França seis anos antes, os camponeses sublevados da Vendeia, adeptos do trono e da Igreja, não haviam conseguido derrotar a República revolucionária. No exame comparativo de Cuoco dos dois casos, a ideia de revolução passiva surgiu para designar uma revolução frustrada devido à situação de dependência intrínseca (no caso napolitano, das tropas napoleônicas e do apoio da República francesa), e, mais que tudo, da insuficiência congênita de suas bases sociais.

Mais tarde, porém, nos círculos intelectuais da burguesia italiana, tal fórmula, apesar de originalmente crítica, acabou por tomar conotação oposta. Revolução passiva veio então a designar nessa nova chave algo desejável, bem entendido, para uma certa elite social caudatária: uma “revolução sem revolução”, tal uma revolução sem conteúdo popular, ou limitada (no alcance das mudanças e no tempo), enfim, congelada. Vale dizer, essencialmente nos moldes daquela revolução que os girondinos buscaram fixar antes da aclamação da República pela Convenção (21.09.1792), quando quiseram combinar o estado constitucional com o regime monárquico, à luz da solução inglesa após as duas revoluções do século XVII.

Na verdade, a ideia de uma revolução a portas fechadas e administrada por planejadores – ou de uma “revolução invisível”, para usar a expressão aproximadamente análoga, forjada cem anos depois, por Fourastié –, de fato, constituiu o modelo adotado pelos condutores da unificação italiana, no assim chamado Risorgimento, sob o comando da burguesia piemontesa em aliança com a casa monárquica de Savóia. Analogamente, esse foi também o cânon valorizado pela filosofia historicista de Benedetto Croce (1866-1952), referente intelectual crucial, mas oponente político e alvo das polêmicas filosóficas de Gramsci.

Modernização dependente

Gramsci, porém, retomou, reelaborou e aprofundou a ideia original de Cuoco, contrapondo-a ao idealismo historicista e conservador de Croce. Assim, de início, reelaborada criticamente para desvelar o caráter conservador do Risorgimento, a noção dialética de revolução passiva veio depois servir ao estabelecimento por Gramsci de um paralelo estrutural entre o liberalismo do Risorgimento e o fascismo do século vinte – cujo caráter não apenas meramente reacionário, mas também inovador, veio à luz mediado pela noção.[ix]

Por fim, desprendida por Gramsci de um contexto histórico específico – e assim depurada crítica e conceitualmente, a noção de revolução passiva veio a servir, na nova chave crítica, à decodificação da natureza específica da modernização dependente, ou seja, conduzida de cima para baixo e sem nenhuma mudança nas relações de classe, poder e propriedade.[x]

Em suma, ao fim e ao cabo da reelaboração por Gramsci, tal conceito se transformou principalmente num prisma para a avaliação crítica das reformas conservadoras que atingem as economias e sociedades periféricas, sacudidas e varridas ciclicamente pelos impulsos econômicos que vêm das economias centrais.[xi]

Revolução de direita

Enquanto conceito e parâmetro referido aos processos de modernização dependente, como a noção de revolução passiva serviria para precisar especificamente uma “revolução de direita”? Retornemos então ao início de tal discussão, proposta por Pasolini. No artigo de junho de 1973, sobre a revolução de direita em curso, Pasolini principia pela afirmativa: “Em 1971-72 teve início um dos períodos de reação mais violentos e talvez mais definitivos da história”.[xii]

Pasolini descrevia assim tal revolução como o desdobramento de um processo de genocídio,[xiii] em marcha desde 1961, ou seja, desde o assim chamado “milagre econômico (italiano)”, o qual, por sua vez, Pasolini equiparava a um processo colonial interno.

Em consequência, dois terços da população italiana, que haviam estado “fora da história”, haviam nesse curso sido arrastados para a órbita do consumo. Essa absorção brutal pressupunha “a destruição e a sustituição de valores”, argumentava Pasolini no seu texto, já referido, “O genocídio”.[xiv]

Para rematar seus argumentos, Pasolini expressou com todas as letras o que jazia no fundo do seu juízo: “Quando vejo ao meu redor que os jovens estão perdendo os antigos valores populares e absorvendo os novos modelos impostos pelo capitalismo, correndo assim o risco de uma forma de desumanização, de uma forma de afasia atroz, de uma brutal ausência de capacidade crítica, de uma facciosa passividade, me lembro de que estas eram exatamente as características típicas da SS”.[xv]

Fascismos: o velho e o novo

Esse tipo de entrecruzamento no discurso de Pasolini, combinando aspectos contemporâneos (consumo massivo) a imagens do nazismo “clássico” (a obediência cega das SS), revela, note-se desde logo, uma dificuldade real: a de definir o novo fascismo.

Pasolini respondeu a tal desafio negando inicialmente toda similitude entre o velho e o novo fascismo. Assim, destacou, com frequência, o primeiro, como “nacionalista e clerical” – ressaltando, por outro lado, a ausência de tais aspectos no novo fascismo.

Ao mesmo tempo, diante de um público incrédulo ante tais achados de Pasolini, o entrecruzamento, tal um curto circuito montado, revelava uma estratégia dialética para aclarar o novo perigo. Em Salò…, esse problema de determinação também aparece e vem a ser maximizado, para então alcançar uma formulação.

Com efeito, o filme, de 1975, encerra um palimpsesto no qual interagem signos e referências narrativas, de fontes e datações diversas. Para onde, pergunta-se, somos conduzidos pela justaposição – ou pelo curto-circuito – de um texto do século dezoito (o de Sade) com o fascismo mussoliniano – ambos igualmente permeados de alusões ao pós-68?

Simultaneamente síntese e ápice de um sistema crítico que enfoca o novo fascismo, o filme Salò… atribui lugar central às alusões à TV e à juventude como consumidora de imagens. Como os velhos Freikorps outrora (na Alemanha pós-1918),[xvi] a televisão hoje, como Pasolini aponta, prepara, de um modo ou de outro, o fascismo. Daí uma sequência do filme, com função de corolário, na qual tanto os personagens quanto o público contemporâneo de Saló… (filme) “tele-veem” as torturas (se me permitem o neologismo).

Logo, o filme exige – como qualquer síntese – uma abordagem dialética, assim como as precauções devidas às suas múltiplas camadas e temporalidades.

O conceito de revolução passiva funciona como a pedra angular de tal sistema. É só a partir dos seus signos e de sua lógica que se pode compreender a exatidão áspera e impiedosa da narrativa, capaz de repugnar (com a descrição gélida de situações e detalhes horríveis) e de desconcertar.

Desenvolvimentos tardios, sua lei geral

A trama, como na demonstração de um teorema, desenvolve-se segundo nexos lógicos e passos necessários. Desse modo, o capítulo fascista surge não como singularidade italiana, mas enquanto parte de um processo desdobrado de acordo com uma lei geral. Qual, porém?

Ante o acúmulo de traços e evidências, conclui-se que o objeto de tal teorema dificilmente poderia ser mais geral: é a lei histórica dos processos de desenvolvimento tardios, conduzidos sob revoluções passivas em economias dependentes – nas quais, antes, de fato, outras revoluções não se deram ou malograram. Nesse sentido, Pasolini conclui com um juízo histórico dialético e totalizador, de abrangência nacional (mas não só) e que supõe um diagnóstico como que de base etiológica:

“Todos os italianos podem, com efeito, tratar-se mutuamente de ‘fascistas’, pois em todos os italianos há alguns elementos de fascismo (que, como veremos, são explicados por uma revolução burguesa (…) frustrada precedentemente)”.[xvii]

Caudilhos e planejadores

(Está em questão, pois, o atraso da Itália ante outras nações mais industrializadas, vez e outra, implicadas ou evocadas de passagem: França, Alemanha, Estados Unidos.) Devemos notar que, nas lições e cenas que propõem, os caudilhos de tais revoluções (ou seja, em Salò os quatro sumo planejadores) não fazem mais do que encarnar os exemplos e pontos do Manifesto… – e particularmente aquela passagem sobre revoluções das forças produtivas e suas consequências profanadoras.

Embora sejam muito conhecidas, peço licença para recordar algumas de suas frases: “A burguesia não pode existir sem revolucionar, constantemente, os instrumentos de produção e, desse modo, as relações de produção e, com elas, todas as relações da sociedade. A conservação dos antigos modos de produção de forma inalterada era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as antigas classes industriais. A revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes distinguiram a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis foram varridas, todas as novas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo o que é sólido derrete-se no ar, tudo o que é sagrado é profanado (…)”.[xviii]

Anatomia e tarefas da modernização

Afinal, de tal dinâmica – a do regime capitalista – derivam o colonialismo, o escravismo, em suma, a exploração do trabalho sob variadas formas, e, no caso destacado por Pasolini, a sociedade de consumo. Em resumo e noutras palavras, engendra-se, enfim, a modernização do sistema produtivo. Desse processo e para o seu desenvolvimento, provêm também os tópicos dos esforços pedagógicos desenvolvidos pelas senhoras instrutoras. Estas praticam sob a supervisão e a tutoria dos quatro planejadores, todos apoiados pelas tropas nazistas que velam fora dos muros para que o experimento tenha curso. A revolução passiva em tela é, pois, executada à sombra de tal aparato e por ele condicionada.

Lá dentro, desde logo devemos notar duas coisas: uma, que os quatro membros da junta expressam alegoricamente as forças dominantes do Risorgimento – ou seja, a burguesia piemontesa, amparada pelo latifúndio, e sua associada, a casa real de Savóia –, ambas liderando um bloco que também inclui, em Saló…, representantes associados da intelectualidade, da burocracia e do alto clero.

Foram essas as forças, expressivas dos grupos sociais dominantes, que se impuseram sobre os setores populares, urbanos e rurais, liderados por Giuseppe Garibaldi (1807-1882) e Giuseppe Mazzini (1805-1872), estabelecendo, no processo e na forma da unificação nacional (da Itália), os moldes paradigmáticos daquilo que viria depois a ser denominado por Gramsci de revolução passiva.

E dois, o segundo aspecto a se notar é que os quatro caudilhos ou mestres-planejadores implementam vertical e rigorosamente as tarefas da modernização impostas às economias dependentes; tarefas que incluem, por exemplo, em exemplo ilustrativo, na villa-laboratório de Salò, a reutilização dos excrementos, sob controle contábil estrito pelo assim chamado “presidente”, cumprindo a função de um exímio Chicago-boy.

Para aqueles que aprendem a consumir os sofrimentos dos outros, a suprema recompensa será acompanhar os mestres-planejadores até a capital do regime (a cidade de Salò), vale dizer, segundo Pasolini, até a sociedade de consumo.[xix] E assim, numa cena na qual o modo rotineiro de ver tevê é invocado, o Duque tateia e apalpa – como um chef a perscrutar o ponto de sua iguaria –, o grau de excitação sexual de um jovem guarda (Umberto) e conclui: – “eri pronto (você já está pronto)!” [xx]

A pedagogia do livre-mercado

O horror, tanto político quanto ético, culmina na sequência em que as acusações irrompem, uma a uma. Elas começam com uma proposta de livre-troca, apresentada por um jovem de aparência angelical, que aborda o Monsenhor (um dos grãos-planejadores), segurando-o pelo braço. O guri soa como um vendedor ambulante numa metrópole em que a precariedade e o desemprego moldam as relações de trabalho. O horror – agravado pelo modo infantil e a tez angelical dos jovens e das jovens que propõem trocas infames, uma após a outra – vem da demonstração evidente de que tiveram êxito os esforços da pedagogia formativa da modernização.

No processo de modernização encenado em Salò…, o projeto dos mestres-planejadores supõe um acordo no qual as filhas de cada um dos quatro grandes vêm a ser oferecidas à guisa de fiança ou caução. Elas também são intercambiadas entre os membros da junta como escravas e mercadoria.

Potlatch ou capital inicial, patriarcalismo e despotismo de gênero, acumulação originária e propriedade são, pois, evocados, para descrever as bases do regime contratual dos quatro. O comércio será o motor do consórcio dos planejadores.

Na transição da economia do dom para a do mercado vem alegorizada uma etapa da revolução passiva. Jogando o jogo mundial da despossessão, do comércio e do planejamento – já sem qualquer preceito que seja do sagrado –, os infames legisladores, que protagonizam o programa educativo vigente na república de Saló, delineiam as vias do livre-mercado.

O sacrifício mortal de Ifigênia – oferecida por seu pai às divindades do vento, do tempo e do mar, segundo a trama da tragédia ateniense, Ifigênia (ca. 414 a.C.), de Eurípides (ca. 480 a.C. – 406 a.C.) – dava-se em troca de condições favoráveis à navegação da armada de Agamemnon, que devia embarcar rumo a Troia. Por sua vez, na villa situada em Salò…, a conversão das próprias filhas em objetos de dispêndio, investimento ou troca, de relações econômicas, enfim, traz os planejadores para a órbita do comércio e do livre-mercado. Tal farsa não é só didática, portanto, mas bem atual.

A revolução passiva vista de baixo

De acordo com a perspectiva dialética da narrativa, montada por Pasolini, examinemos ora, desde a perspectiva oposta (ou seja, de baixo), a demonstração da via pedagógica para o livre-mercado e o consumo. Em “Giovanni infelici [Jovens infelizes]”, um texto póstumo, escrito simultaneamente à preparação de Salò…,[xxi] Pasolini explicava o padecimento da juventude – na condição de vítima ou objeto de sacrifício, tal seu papel no andamento cênico de Salò – como ônus implicado numa revolução passiva: “Um dos temas mais misteriosos do teatro grego trágico é o da predestinação dos filhos a pagar pelos erros dos pais (…) É o coro, um coro democrático, o que clama ser depositário dessa verdade”.[xxii]

Círculo vicioso

Pasolini pôs assim a questão de um vínculo histórico de tipo coletivo. A história pesa, não se resta imune a ela. Pelo contrário, alguém pode ser condenado por antecipação, se (de modo insciente e involuntário) repetir os erros da geração precedente e seguir – sem rompê-la – uma cadeia causal da história…[xxiii]

Retomo em suas próprias palavras a explicação de Pasolini: “(…) Os filhos que não se liberam dos erros dos pais são infelizes: nenhuma outra marca de culpabilidade é tão decisiva e imperdoável quanto a infelicidade. Seria muito fácil e, num sentido político e histórico, seria imoral que os filhos fossem justificados pelos erros cometidos por seus pais, no que conservam de mal, de repulsivo, de inumano. A herança paternal negativa poderia excusá-los parcialmente, mas eles, eles próprios, são responsáveis pelo que resta. Não existem crianças inocentes. Thyestes é culpado. Mas seus filhos também o são. E é justo que eles sejam castigados também, por essa fração de delitos que eles não cometeram – porque eles não souberam como se liberar desses delitos”.[xxiv]

A grão-condenação à modernização acelerada e tardia

Outra vez, perguntemo-nos: qual é aquela cadeia de erros, cuja origem histórica aparece com o Risorgimento – e da qual a pedagogia fascista do consumo perfaz um elo?

Ao fim e ao cabo, o erro precedente, de haver falhado em fazer uma revolução efetiva,[xxv] será expiado agora pela condenação à modernização tardia – quer dizer, pela condenação de cumprir as etapas de modernização. Quais? Estas aparecem distinguidas passo a passo, na narrativa de Salò…, pelos vários círculos infernais, marcando etapas do aprendizado, igualmente evocativas do curso pedagógico e expiatório das almas em A Divina Comedia (1320/ 1420), de Dante Alighieri (1265-1321).

Tal é o teorema que Salò… demonstra: o da preparação para o mercado. Esta passa pela boa disposição para o consumo e tem por corolário a dependência e a sujeição permanentes. Passos que constituem a cristalização do processo formativo do novo fascismo, no qual a distinção é premiada pela possibilidade de acompanhar e secundar os grãos-mestres na cidade de Salò, capital do regime da revolução passiva.

Daí, no curso da demonstração, a exibição de emblemas da modernidade – a começar pela afasia dos jovens ante o monopólio colossal do discurso, prerrogativa exclusiva dos mestres planejadores – por analogia com o poder imperial dos conglomerados midiáticos atuais (1975). O cortejo traz outros emblemas modernos, notadamente a arte e a arquitetura modernistas.

A arte modernista, empregada como um álibi, constitui o signo próprio da estetização extensa, praticada no laboratório pedagógico montado pelos planejadores de Salò... Tal arte aparece nas paredes da villa, na poesia declamada por Ezra Pound (1885-1972) que chega pelo rádio, no mobiliário modernista dos ambientes, enfim, dentro de todo ambiente próprio à revolução passiva. Daí, a ênfase do filme em mostrar no andar superior da villa os quartos privativos dos grão-planejadores, repletos de signos modernistas (Desde logo, deixa-se de lado, na perspectiva posta por Saló..., toda admiração ou culto genérico à arte moderna ou ao modernismo. Não sem razões pois – diferentemente do que ocorreu no nazismo que rotulou a arte moderna, como um todo, de “arte degenerada” – na Itália, amplos setores da arte e da arquitetura modernas se deixaram abraçar ou abraçaram, tal os futuristas, o regime).

Da tragédia à farsa

Pasolini se empenhou em obter uma construção dialética. Logo, termos opostos, como os grãos-planejadores e suas jovens vítimas, ou o planejamento interveniente e a passividade do sumo consumo, ou ainda o liberalismo e o totalitarismo (todos eles, antitéticos, à primeira vista), todos vêm a se pôr explicitamente – na medida em que a trama se desenvolve dialeticamente – em estado de determinação mútua ante o seu contrário.

Paralelamente, trinta e dois anos depois do filme Salò, o livro de Naomi Klein, A Doutrina…, trouxe à luz uma conspiração neoliberal global, através de uma narrativa posta não mais, tal em Saló…, como alegoria ou parábola, de trama intrincada e não imediata, mas, no caso, posta em termos claros e objetivos, como sói ocorrer no jornalismo investigativo corrente.

Nesse sentido, os esquemas das elites financeiras, revelados por Naomi Klein, dispõem-se após as teses e cenas referidas no texto de Sade, tal como a farsa após a tragedia na fórmula célebre de Marx, que abre o 18 Brumário.

De fato, o texto de Sade, à sua época, já constituía uma farsa didática[xxvi] ante a tragédia da colonização, da escravidão e da despossessão, possíveis de serem detectadas como o avesso paródico das Luzes, já naquela altura (1785), em plena expansão mundializada do processo mercantil-colonial.

Logo, Sade antecipou efetivamente alguns passos de Marx – realizando avanços aos quais este próprio, de algum modo atestaria (por assim dizer) mediante o recurso frequente, como escritor, aos termos de vampirismo e similares, para representações metafóricas do capitalismo.[xxvii]

Concluamos, evocando Benjamin: chegar a uma concepção da história que corresponda ao “estado de exceção” no qual vivemos que, como sabemos, não é de exceção – mas antes “a mesma coisa de sempre, [porém] (…) sempre piorada” [Foucault dixit], diga-se para parafrasear o homenageado deste colóquio –, essa é, de um modo ou de outro, a condição necessária, embora insuficiente, para fortalecer nossa posição ante o fascismo – seja o velho, seja o novo, resta acrescentar.[xxviii]

Uma outra juventude

Peço licença para uma última consideração, ora dirigida especialmente aos estudantes chilenos: quando Pasolini tratou do fenômeno, hoje denominado por Dardot e Laval de “subjetivação capitalista”, ele afirmou, como vimos, acerca da juventude italiana de seu tempo, que consistiam em “jovens infelizes” – porque não souberam “se liberar dos erros de seus pais”.[xxix]

De minha parte, penso que afirmação similar não caberia em relação às legiões combativas da juventude chilena de hoje, que impuseram pela luta, além da exigência de uma educação pública, gratuita e universal, também o objetivo da refundação pública e democrática do Estado chileno, afrontando, pois, os compromissos da Concertación – concebida, tanto quanto o programa negociado da nefanda e conciliadora transição brasileira (1984-85), a partir da falácia dos pactos de la Moncloa, tomados como modelo.

Em homenagem à disposição de luta intransigente e irredutível de amplas parcelas da juventude chilena, quero lhes deixar algo que é parte do meu trabalho como historiador, isto é: sintetizar materiais de ontem com as lutas atuais.

Trata-se de recordar as palavras de um lutador social, cuja memória e palavras tenho muita honra de poder evocar aqui:

“não se detêm os processos sociais

nem com o crime, nem com a força (…)

Muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre”.[xxx]

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); e autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).

Para ler a primeira parte do artigo clique em https://aterraeredonda.com.br/a-era-dos-genocidios/

 

Referências


Pier Paolo PASOLINI, Salò o le 120 Giornate di Sodoma, 35 mm, 117 minutos, cor, v. o., em italiano, Itália e França, 1975; versão em DVD consultada: idem, cópia British Film Institute, <www.bfi.org.uk/dvd>;

________________, Scritti Corsari, Milano, Garzanti, 1975; ed. brasileira: Escritos Corsários, trad. Maria Betânia Amoroso, São Paulo, Ed. 34, 2020;

________________, Lettres Luthériennes/ Petit Traité Pédagogique (Lettere Luterane, Torino, Einaudi, 1976), trad. Anne Rocchi Pullberg, Paris, Seuil, 2000 ;

A. F. de SADE, Les 120 Journées de Sodome ou l´École du Libertinage, préface d´Annie Le Brun, Le Tripode/ Méteores, 2014.

Agradeço as deferências de todos os organizadores do evento, nas pessoas do prof. Esteban Radiszcz (Depto. de Psicologia/ Facultad de Ciencias Sociales) e Margarita Iglesias Saldaña (Cátedra Michel Foucault). Agradeço também à profa. Gabriela Pinilla (Univ. Distrital Francisco Caldas, Bogotá) a tradução do texto para o espanhol, e a colaboração para a coleta de imagens e documentos históricos de: Natalie Roth, Rafael Padial e Gustavo Motta (a quem agradeço também a revisão e a atualização bibliográfica)

 

Notas


[i] Quanto aos desdobramentos da crise econômica em curso à época da realização de Salò…, Gunder Frank apresentou na conferência já referida, de 1975, uma análise contemporânea à de Pasolini, na qual antecipou as mudanças que a crise traria, ocasionando a transição para um modelo de capitalismo distópico: “Eu suspeito que a próxima palavra de ordem será a dos governos de ‘unidade nacional’, numa tentativa de dominar politicamente a crise econômica. E penso que esses governos de unidade nacional serão destinados a preparar terreno para um ‘1984’. Nalguns lugares, quiçá, será impossível estabelecer um governo de unidade nacional e pode ocorrer simplesmente um golpe militar que imporá um ‘1984’ diretamente, sem passar por um processo longo e extenso. Na Inglaterra já se discute, inclusive na imprensa, tal perspectiva. Quer dizer, teremos uma luta de classes cada vez mais aguda, em torno da questão da reorganização da economia e da sociedade, ante a crise econômica. Como já disse antes, uma das principais formas de se buscar a superação dessa crise é mediante a introdução de novas tecnologias, mas só quando chegar o momento adequado, quando a economia tiver sido reorganizada, e a taxa de lucro se elevar de novo, é que se poderá fazê-lo. Então se introduzirá essa nova tecnologia…” Vale notar que Gundar Frank utilizou, na ausência da designação ora corrente de “neoliberalismo”, a metáfora orwelliana de “1984”, para alegorizar os traços do novo ciclo capitalista, naquela altura ainda em processo de implantação no aziago laboratório-vivo de Santiago e a propósito do qual AGF escreveria, nos meses seguintes, as duas cartas abertas, acima mencionadas (ver nota 21 acima). Cf. A. G. FRANK, “Crisis económica…”, op. cit., p. 55.

[ii] Em 1975, a crise do capitalismo convertera-se em assunto explícito das manchetes dos jornais do mundo. Para discutir diretamente a crise, os mandatários nacionais das principais economias industrializadas reuniram-se entre 15 e 17.11.1975, em Rambouillet, perto de Paris, a convite do presidente da França. A partir do sucesso do encontro, as reuniões tornaram-se anuais.

[iii] A expansão econômica (já permeada pela crise) dos ditos “anos Pompidou” (1969-74), que sucederam ao decênio De Gaulle (1958-69), corresponderam na França ao último esgar do modelo de expansão anterior. Mas nem por isso, 1968 deixou de valer como prenúncio e sinal dos limites políticos e econômicos do modelo exangue.

[iv] Ver J. FOURASTIÉ, Les Trente Glorieuses ou la Révolution Invisible de 1946 à 1975, Paris, Fayard/Pluriel, 1979.

[v] Cf. P.P. PASOLINI, « Il genocidio », op. cit., pp. 281-2; idem, “O genocídio”, op. cit., pp. 263-4.

[vi] Pasolini aludiu de passagem e genericamente ao Manifesto... A menção ocorreu durante uma intervenção oral, na festa do jornal l’Unità, e foi transcrita pela revista Rinascita, do PCI. A revista publicou o texto, sob o título “Il genocidio”, na edição de 27.09.1974. É possível que a transcrição tenha sido aproximada, imprecisa e lacunar, deixando de fora especificações e outras explicações. O livro de intervenções jornalísticas, Scritti Corsari, no qual o texto foi republicado, foi lançado algunas semanas após o assassinato de Pasolini (02.11.1975), portanto provavelmente sem a revisão do autor. Ver P.P. PASOLINI, « Il genocidio », op. cit., pp. 281-7; idem, “O genocídio”, op. cit., pp. 263-8.

[vii] Outra intervenção relevante nesse sentido foi o artigo “Il mio Accattone in Tv dopo il genocidio”, Corriere della Sera, 8.10.1975. Ver P. P. PASOLINI, “Mon Accatone à la télévision après le genocide [Meu Accatone na tevê após o genocídio]”, en idem, Lettres …, op. cit., pp. 179-87.

[viii] Ver P. P. PASOLINI, Appunti per un Film sull’India [Notas para um Filme sobre a Índia], Italia, Radiotelevisione Italiana (RAI), 1968, 25”; idem, Appunti per un’Orestiade Africana [Notas para uma Orestíade Africana], Italia, IDI Cinematografia/ I Film Dell’Orso/ RAI Radiotelevisione Italiana, 1970, 65’; idem, Carnet de notes pour une Orestie Africaine (en complément: Notes pour un film sur l’Inde), DVD et livre (nouveau master restauré, v.o./ sous-titres français), Paris/ Bologna, Carlotta-Films/ Cineteca Bologna, avril 2009, 71’.

[ix] “O fascismo não seria precisamente a forma de ‘revolução passiva’ própria ao século XX, como o liberalismo foi aquela do século XIX?” Cf. Antonio GRAMSCI, §<236>, “Points pour un essai sur Croce [Pontos para um ensaio sobre Gramsci]”, in Antonio GRAMSCI, Cahiers de Prison. Cahiers 6, 7, 8 et 9, av.-propos, notices et notes de Robert Paris, trad. Monique Aymard et Paolo Fulchignoni, Paris, Éditions Gallimard, 1983, p. 397. Para outras notas de Gramsci sobre o conceito de Cuoco, ver também §<25>, “Risorgimento”, y §<240>, “Points pour un essai sur Croce. Histoire éthico-politique ou histoire spéculative? [Pontos para um ensaio sobre Gramsci. História ético-política ou história especulativa?]”, em idem, respectivamente, p. 273 e p. 399. Para a discussão ampliada e atualizada da noção, ver também Alvaro BIANCHI, “Revolução passiva: pretérito do futuro”, in Crítica Marxista, n. 23, Campinas, 2006, pp. 34-57; e ver ainda Neil DAVIDSON, “Scotland: Birthplace of Passive Revolution?”, in idem, We Cannot Escape History: States and Revolutions, Chicago, Haymarket Books, 2015, pp. 85-102.

[x] Peter Thomas assim resumiu o resultado da transformação crítica operada por Gramsci: “… revolução passiva, como conceito, já não se refere primariamente a um evento reconhecível e particular. Antes, nesse uso final, a revolução passiva tomou uma significação mais geral, como uma lógica de um certo tipo de modernização. Em certo sentido, o conceito se converteu quase em sinônimo de modernidade, que é agora vista como uma ficção melancólica em que a massa da humanidade é reduzida a mera espectadora da história…” Cf. Peter THOMAS, “Modernity as ‘passive revolution’: Gramsci and the Fundamental Concepts of Historical Materialism [A modernidade como ‘revolução passiva’: Gramsci e os conceitos fundamentais do materialismo histórico]”, Journal of the Canadian Historical Association/ Revue de la Société historique du Canada, vol 17, nº 2, 2006, pp. 61-78; a versão on line pode ser encontrada em Érudit, URL: <http://id.erudit.org/iderudit/016590ar>, acesso en 22.01.2019, DOI: 10.7202/016590ar.

[xi] A propósito da interrelação, nos cadernos de Gramsci, entre os conceitos de “hegemonia” e “revolução passiva” – operando este último, para Gramsci, como o contrário da construção do aparato de “hegemonia proletária”, e esta, a sua vez, como conceito em convergência com aquele de “revolução permanente” – ver idem, “Hegemony, passive revolution and the modern Prince”, Thesis Eleven, URL: <http://the.sagepub.com/content/117/1/20>, acesso em 22.01.2019, DOI: 10.1177/0725513613493991. Sobre o protagonismo proletário como vetor principal da teoria da “revolução permanente”, ver León TROTSKY, La Revolución Permanente, México, Thomas Guinta/Trotsky Memorial Trust y Fundación Federico Engels México, 2006; ver também Michael LÖWY, The Politics of Combined and Uneven Development: The Theory of Permanent Revolution, Chicago, Haymarket Books, 2010. Enfim, no novo registro crítico, o conceito de revolução passiva pode ser visto em paralelo com as noções de “bonapartismo” (Marx e Trotsky) e de “cesarismo” (Gramsci). Desse modo, a noção de revolução passiva pode ser acoplada, como o correlato negativo da noção de “revolução permanente”, de Trotsky (1879-1940), como ferramenta de significação a um tempo oposta e complementar à última. A propósito, é esse precisamente o cerne da proposta interpretativa do livro de Peter Thomas, Revoluções, Passiva e Permanente, ora em processo de tradução, para lançamento em 2022 pela coleção Ideias Baratas, da editora Sundermann (São Paulo).

[xii] Cf. P.P. PASOLINI, “La prima…”, op. cit., p. 24; idem, “A primeira…”, op. cit., p. 47.

[xiii] Ver idem, “Il genocidio”, op. cit., pp. 281-2; idem, “O genocídio”, op. cit., pp. 263-4.

[xiv] “…considero que a destruição e a substituição de valores na sociedade italiana de hoje levam, mesmo sem carnicinas e fuzilamentos em massa, à supressão de largas faixas da sociedade”. Cf. idem, “Il genocidio”, op. cit., p. 281; idem, “O genocídio”, op. cit., pp. 263.

[xv] Cf. idem, “Il genocidio”, op. cit., p. 287; idem, “O genocídio”, op. cit., p. 268.

[xvi] Sobre a história, desde 1919, dos Freikorps na Alemanha e sua colaboração ativa com a juventude estudantil, para o surgimento de um movimento (de cunho racista e nacionalista) autodenominado völkisch, ver Arthur ROSENBERG, “Fascism as a mass movement”, traduzido por Jairus Banaji, em Historical Materialism/ Research in Critical Marxist Theory, 20.1, pp.144-89, <www.historicalmaterialism.org>, acesso em 22.01.2019, Leiden (Netherlands), Brill, 2012, pp. 175-9. Rosenberg situa a aparição dos comandos (Freikorps) como o primeiro signo de “uma completa desintegração do poder normal do Estado” (p. 153). Em parte baseada nas vívidas descrições de Trotsky (ao estilo do 18 B…), a análise de Rosemberg visa estabelecer as formas históricas próprias da expansão do fascismo. Assim, observa o processo desde o germe, tomando o exemplo dos pogroms, montados pelas Centúrias Negras na Rússia czarista (1905), até à sua plena eclosão como fenômeno massivo e eleitoral, nos casos da Itália e da Alemanha, ver idem, pp. 153-6, e 164.

[xvii] Cf. P.P. PASOLINI, «Chapitre deux: Comment tu dois m’imaginer [Capítulo dois : Como você deve me imaginar]», in idem, Lettres…, op. cit., p. 26.

[xviii] Cf. Karl MARX e Friedrich ENGELS, O Manifesto Comunista, trad. Maria Lucia Como, revisão André Carone, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, pp. 13-4; Karl Marx and Frederick ENGELS, The Communist Manifesto, edited by Phil Gasper, Chicago, Haymarket, 2005, p. 44.

[xix] Para aqueles que resistem, a solução dada é o extermínio programado – como antecipou Pasolini umas poucas horas antes de ser assassinado –, ao sugerir como título de sua derradeira entrevista: “Estamos todos em perigo”. Cf. Furio COLOMBO, “Nous sommes tous en danger” (L’ultima intervista di Pasolini), in F. COLOMBO & Gian Carlo FERRETTI, L’Ultima Intervista di Pasolini, trad. Hélène Frappat, Paris, Allia, 2010, p. 23.

[xx] Não por acaso o jovem guarda traz o nome próprio do último rei da Itália (maio-junho 1946), Umberto II (1904-1983), de Savóia, educado sob o fascismo e que, sob Mussolini, ascendeu ao generalato.

[xxi] Ver P. P. PASOLINI, « La jeunesse malheureuse », in idem, Lettres…, op. cit. pp. 7-17.

[xxii] Cf. idem, p. 9

[xxiii] Ver idem, p. 15.

[xxiv] Cf. idem, ib..

[xxv] O diagnóstico de Pasolini, que vem apoiado na noção gramsciana de revolução passiva, tem paralelo com o juízo de Trótski, sobre a situação da França, em 1935: “Uma situação revolucionária se forma pela ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. Se o partido do proletariado se mostra incapaz de analisar a tempo as tendências da situação pré-revolucionária, e de intervir ativamente no seu desenvolvimento, ao invés de uma situação revolucionária, surgirá inevitávelmente uma situação contrarrevolucionária”. Cf. Léon TROTSKY, “Encore une fois, où va la France? (mars 1935) », in idem Écrits, tomo II, p. 51, apud H. WEBER, op. cit., p. 15; texto “Encore une fois…” disponível em : <https://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/ouvalafrance/ovlf31.htm>, acesso em 22.01.2019.

[xxvi] Assim começa o texto de Sade: “As guerras consideráveis que Luís XIV teve que manter durante o curso do seu reino, esgotando as finanças do Estado e as faculdades do povo, permitiram não obstante o enriquecimento de uma enorme quantidade dessas sanguessugas, sempre à espreita das calamidades públicas, que elas fazem nascer em lugar de aliviar, e isso para ter a posibilidade de extrair proveitos, com mais vantagens.» Cf. D. A. F. de SADE, Les 120 Journées…, op. cit., p. 13. Ou seja, como notou, com agudeza, Pasolini, qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência, mas antes resultado da perspicácia de Sade.

[xxvii] Ver a propósito, David McNALLY, Monsters of the Market. Zombies, Vampires and Global Capitalism, Chicago (IL), Haymarket Books, 2012.

[xxviii] Ver Walter BENJAMIN, “Tesis VIII”, em Michael Löwy, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio, trad. Wanda N. C. Brandt, trad. das teses Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 83.

[xxix] Cf. P.P. PASOLINI, “La jeunesse… », op. cit., p. 15.

[xxx] Cf. Salvador ALLENDE, “Alocuciones radiales del 11 de Septiembre de 1973” [Discursos radiofônicos do 11 de setembro de 1973]. Os primeiros emitidos por Radio Corporación; o último, por Radio Magallanes/ 9:10 da manhã, in idem, Abrirán las Grandes Alamedas/ Discursos, Santiago de Chile, Libros del Ciudadano, 2013, pp. 73-5.

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