A nova Guerra Fria

Imagem: George Shervashidze
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

A prevalência atual do poder cru traz consigo um péssimo presságio e um enorme desafio para a democracia liberal

A discrepância entre princípios e práticas é talvez a maior especificidade da modernidade ocidental. Qualquer que seja o tipo de relações de poder (capitalismo, colonialismo e patriarcado) e os campos do seu exercício (político, jurídico, econômico, social, religioso, cultural, interpessoal), a proclamação dos princípios e dos valores universais tende a estar em contradição com as práticas concretas do exercício do poder por parte de quem o detém. O que neste domínio é ainda mais específico da modernidade ocidental é o fato de essa contradição passar despercebida na opinião pública e ser mesmo considerada como não existente.

Domenico Losurdo lembra-nos que os primeiros presidentes dos EUA, e nomeadamente os grandes ideólogos e protagonistas da revolução norte-americana (George Washington, Thomas Jefferson e James Madison), eram donos de escravos. Na lógica do liberalismo não havia contradição alguma. Os princípios universais da liberdade, igualdade e fraternidade eram aplicáveis a todos os seres humanos e só a eles. Ora os escravos eram mercadorias, seres sub-humanos. Contradição existiria se a eles fossem aplicados os princípios apenas aplicáveis aos seres plenamente humanos. Este mecanismo de supressão das contradições reside no que designo por linha abissal, uma linha radical que desde o século XVI divide a humanidade em dois grupos: os plenamente humanos e os sub-humanos, sendo estes últimos o conjunto dos corpos colonizados, racializados e sexualizados.

Se é verdade que a contradição entre princípios e práticas sempre existiu, ela é hoje mais evidente do que nunca. Saliento quatro áreas em particular: o Ocidente na nova guerra fria; o crescimento global da extrema-direita; a luta contra a corrupção; a captura de bens públicos, comuns ou globais por atores privados. Nesta crônica refiro as duas primeiras.

As potências rivais na nova guerra fria são os EUA e a China, sendo que cada um deles conta com um aliado de peso, a União Europeia, no caso dos EUA, e a Rússia, no caso da China. Tenho defendido que a rivalidade real é entre duas economias-mundo profundamente interligadas, mas com interesses de curto e médio prazos opostos: a economia-mundo do capitalismo das empresas multinacionais promovida pelos EUA e a economia-mundo do capitalismo de Estado promovida pela China. Como se sabe, não é assim que a rivalidade se apresenta na opinião pública internacional controlada ou influenciada pelos EUA.

A rivalidade é apresentada como ocorrendo entre regimes democráticos e regimes autoritários, entre a superioridade moral dos valores cristãos ocidentais do individualismo, da tolerância, da liberdade e da diversidade e os extremismos religiosos e ideológicos do Oriente. Esta formulação não deixa de ser intrigante. Ao longo de muitos séculos, os impérios ocidentais justificaram-se com valores universais que idealmente poderiam e deveriam ser adotados por todos os países do mundo. O império norte-americano foi o que levou mais longe este expansionismo ideológico através do conceito de globalização e da doutrina do neoliberalismo. Esse expansionismo foi em boa parte responsável pela rápida integração da China na economia mundial e nas organizações internacionais. Basta recordar a deslocalização de boa parte da produção industrial dos EUA para a China nos últimos trinta anos. A lógica era, pois, a da construção de um mundo globalizado, integrado no capitalismo multinacional e servido pelo capitalismo financeiro global ciosamente controlado por empresas norte-americanas.

Houve, sem dúvida, vozes discordantes, como a de Samuel Huntington no seu livro de 1996 sobre o choque das civilizações, em que se chamava a atenção para a futura ameaça de conflitos religiosos entre o judaísmo e o cristianismo, por um lado, e o islamismo, o budismo e o hinduísmo, por outro, e para a entrada em ação de atores não estatais. Esta tese só veio a adquirir maior aceitação depois do ataque às Torres Gêmeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001, mas não alterou em nada a cooperação econômica com a China que continuou a aprofundar-se e a diversificar-se. Só em tempos recentes é que a China começou a surgir como o grande inimigo a abater ou a neutralizar.

A contradição reside entre o expansionismo globalizador das ideias no período ascendente do império norte-americano e a defesa do excepcionalismo ocidental, da especificidade ética do Ocidente contra um Oriente ameaçador. O paradoxo pode formular-se assim: a hegemonia ocidental consistiu em levar a globalização e o capitalismo a todo o mundo como prova da superioridade do Ocidente. E agora, que países não ocidentais adotaram a globalização e a promoveram segundo os seus próprios interesses, o Ocidente recua no seu impulso globalizante e entrincheira-se na defesa de uma especificidade ético-religiosa que mal disfarça a constatação de ter sido ultrapassado pelos países que seguiram com êxito a sua receita. O Ocidente globalizado defende-se agora enquanto Ocidente localizado, o que não deixa de ser uma prova de declínio à luz dos critérios que o próprio Ocidente impôs ao mundo a partir do século XVI. Lembremos que os povos indígenas da América Latina, ao defenderem os seus territórios e as suas riquezas contra os colonizadores, eram considerados pelo grande internacionalista espanhol do século XVI, Francisco de Vitória, como violadores do direito humano universal do livre comércio.

Esta contradição entre princípios e práticas – o sempre presente expediente de adaptar os princípios ao que é considerado mais conveniente ou útil pelas necessidades práticas do momento – tem na extrema-direita uma formulação particular. Tenha-se em mente que o crescimento da extrema-direita, apesar de ser um movimento global, assume especificidades muito acentuadas em diferentes contextos e países. Penso, no entanto, que os seguintes traços são bastante comuns. Por um lado, parece levar a contradição ao extremo ao defender no plano econômico o mais extremo individualismo neoliberal, enquanto no plano político, social e comportamental impõe um moralismo e um autoritarismo que mal se coadunam com a autonomia individualista. Por outro lado, detona a própria contradição entre princípios e práticas e justifica o poder cru das práticas ao demonizar os próprios princípios universais. É nesta última dimensão que a extrema-direita se afirma como corrente reacionária e não simplesmente conservadora.

É que enquanto os conservadores defendem os princípios do Iluminismo na formulação que lhes deu a Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), ainda que privilegiem o princípio da liberdade, os reacionários da extrema-direita recusam esses princípios e coerentemente defendem o colonialismo, a inferioridade de negros, indígenas, mulheres e ciganos; justificam o trabalho análogo ao trabalho escravo; recusam ver nos povos indígenas e afrodescendentes outra coisa que não comunidades de sub-humanos a ser assimilados ou eliminados; boicotam a democracia inclusiva e pretendem instaurar ditaduras ou, quando muito, democracias que se restrinjam a “nós” e imponham a servidão aos “outros”; recusam a ideia do monopólio da violência legítima por parte do Estado e promovem a distribuição e venda de armas à população civil. À luz do que referi atrás, não surpreende, embora nem por isso seja menos perturbador, que uma das principais centrais de difusão da ideologia de extrema-direita esteja sediada nos EUA e que seja neste país que mais grupos de extrema-direita existem com mais influência sobre grupos similares noutras partes do mundo.

A prevalência e a maior visibilidade do poder cru sobre o poder cozido – o crescente apelo à eliminação do inimigo interno e a hiper-discrepância entre princípios e práticas – representam um decisivo desafio para a democracia. A democracia liberal foi sempre uma das expressões fundamentais do poder cozido nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. Foi por isso que a democracia liberal se reduziu ao espaço público, deixando todos os outros espaços de relações sociais, tais como a família, a comunidade, a empresa, o mercado e as relações internacionais, entregues ao poder mais ou menos despótico do mais forte a que chamei fascismo social. Daí a minha conclusão de que, enquanto existirem capitalismo, colonialismo e patriarcado, estaremos condenados a viver em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas.

Atente-se, porém, que, apesar de limitada, a democracia liberal não é uma ilusão. Sobretudo nos últimos cem anos, a existência de democracia no espaço político possibilitou a adoção de políticas públicas de proteção social (saúde, educação, previdência pública) e direitos trabalhistas, sociais, e culturais que se traduziram em conquistas importantes e em melhorias de vida concretas para as classes populares e grupos sociais sujeitos à dominação capitalista, racista e sexista. Por outras palavras, no seu melhor, a democracia liberal tem permitido diminuir a brutalidade do poder cru do fascismo social.

A prevalência atual do poder cru traz consigo um péssimo presságio e um enorme desafio para a democracia liberal. Na raiz do poder cru contemporâneo estão o neoliberalismo e a extrema-direita, uma mistura tóxica que está a atingir o âmago da democracia liberal, os direitos cívicos e políticos, depois de ter reduzido ao mínimo a proteção social e os direitos sociais. É um processo de destruição da democracia, por vezes lento por vezes rápido, que vai injetando componentes e lógicas ditatoriais na prática concreta dos regimes democráticos. Um novo tipo de regime político está a emergir, um regime híbrido que combina discursos e práticas ditatoriais (apologia da violência, criação caótica e oportunista de inimigos, insulto impune dos órgãos de soberania eleitos, desobediência ativa de decisões judiciais, apelo à intervenção golpista das forças armadas) com práticas democráticas. Um monstro? Uma coisa é certa: a democracia liberal não é a democracia real, mas é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para se atingir a democracia real.

*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Paulo Ayub Fonseca Walnice Nogueira Galvão Sandra Bitencourt Maria Rita Kehl Caio Bugiato Rodrigo de Faria José Dirceu Yuri Martins-Fontes Luiz Eduardo Soares Gerson Almeida Eliziário Andrade Matheus Silveira de Souza José Machado Moita Neto Jean Pierre Chauvin Eduardo Borges Gabriel Cohn Michael Löwy Dênis de Moraes Igor Felippe Santos João Carlos Salles Gilberto Lopes Claudio Katz Leda Maria Paulani João Feres Júnior José Costa Júnior Thomas Piketty Annateresa Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque André Singer Lorenzo Vitral Denilson Cordeiro Ronald León Núñez Manuel Domingos Neto Anselm Jappe Michel Goulart da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Boff Ricardo Musse José Micaelson Lacerda Morais João Carlos Loebens Juarez Guimarães Liszt Vieira Marcelo Módolo Celso Frederico Lincoln Secco André Márcio Neves Soares Luiz Carlos Bresser-Pereira Mariarosaria Fabris Samuel Kilsztajn Heraldo Campos Chico Whitaker Bento Prado Jr. Daniel Brazil Ari Marcelo Solon Anderson Alves Esteves Carlos Tautz Plínio de Arruda Sampaio Jr. Atilio A. Boron Elias Jabbour Luiz Bernardo Pericás Bernardo Ricupero Jorge Luiz Souto Maior Luís Fernando Vitagliano Eleutério F. S. Prado Fábio Konder Comparato Renato Dagnino Ricardo Abramovay Rafael R. Ioris Luiz Marques Fernão Pessoa Ramos Jorge Branco Marilena Chauí Luiz Werneck Vianna Valerio Arcary José Geraldo Couto Boaventura de Sousa Santos Antonio Martins Milton Pinheiro Paulo Capel Narvai Ladislau Dowbor Bruno Machado Priscila Figueiredo Airton Paschoa Manchetômetro Otaviano Helene Marcos Silva Flávio Aguiar João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Guimarães Lima Henry Burnett Lucas Fiaschetti Estevez José Raimundo Trindade Everaldo de Oliveira Andrade Érico Andrade Chico Alencar Salem Nasser Luiz Roberto Alves Alexandre de Freitas Barbosa Henri Acselrad Francisco Fernandes Ladeira Vinício Carrilho Martinez Antonino Infranca Eleonora Albano Daniel Afonso da Silva Julian Rodrigues Berenice Bento Eugênio Trivinho Ricardo Fabbrini Marcus Ianoni Kátia Gerab Baggio Ricardo Antunes Luiz Renato Martins Carla Teixeira Luis Felipe Miguel Remy José Fontana Gilberto Maringoni Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Andrés del Río Marcos Aurélio da Silva Osvaldo Coggiola Afrânio Catani Sergio Amadeu da Silveira Andrew Korybko Antônio Sales Rios Neto Jean Marc Von Der Weid Daniel Costa Michael Roberts José Luís Fiori Ronald Rocha Paulo Fernandes Silveira João Adolfo Hansen Leonardo Sacramento Vladimir Safatle Alysson Leandro Mascaro Ronaldo Tadeu de Souza Tadeu Valadares Flávio R. Kothe Mário Maestri Benicio Viero Schmidt Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eugênio Bucci Rubens Pinto Lyra Tales Ab'Sáber Paulo Martins Marjorie C. Marona Celso Favaretto Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Nogueira Batista Jr Bruno Fabricio Alcebino da Silva Armando Boito Paulo Sérgio Pinheiro João Lanari Bo Vanderlei Tenório Luciano Nascimento Slavoj Žižek Leonardo Avritzer Dennis Oliveira

NOVAS PUBLICAÇÕES