A vitória de Gabriel Boric

Imagem: Osvaldo Castillo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES*

Se as diversas esquerdas latino-americanas comemoram a derrota da excrescência neo-Pinochetista encarnada por Kast, devem dar-se conta de que é delas também que a fábula fala

Com as eleições presidenciais do Chile, a América Latina fecha 2021 com um acontecimento de caráter transcendente. Gabriel Boric Font derrotou José Antonio Kast pela contundente margem de quase 12% de votos, numa eleição que bateu o recorde nacional de participação. Depois de manifestações de grande densidade na Colômbia, reviravoltas no Brasil com a anulação das condenações de Lula da Silva e a derrota do peronismo nas eleições intermediárias parlamentares argentinas, a eleição presidencial chilena coroou um processo de mobilização política de massas iniciada em 2019 que levou à convocação de uma Convenção Constitucional que enterrou de vez, pendente de aprovação em referendo em 2022 da nova Constituição, a era Pinochet. Mas a convenção constituinte e a eleição de Boric significaram também o fim de um ciclo latino-americano em que partidos vários de centro-esquerda governaram de modo bastante tradicional. Alguns querem ver na vitória de Boric simplesmente o triunfo da recusa do neoliberalismo, mas há muito mais em jogo de um ponto de vista político mais específico.

Sim, a Convenção Constitucional chilena e a eleição de Boric foram um triunfo do antineoliberalismo e de uma promessa de Estado de Bem-estar social, além de recolher as lutas dos mapuches e do movimento feminista, entre outros. Mas o questionamento às oligarquias partidárias e ao que se constitui, de uma maneira ou de outra, como seu condomínio comum do poder se destaca nessa equação. Nesse sentido, se as diversas esquerdas latino-americanas comemoram a derrota da excrescência neo-Pinochetista encarnada por Kast, devem dar-se conta de que é delas também que a fábula fala.

Boric pertence à Frente Ampla, partido oriundo do movimento estudantil que há décadas organiza a juventude chilena contra o sistema político oligárquico – oligarquizado tal qual todos aqueles que se constituem sob a democracia liberal, bem menos de resto o chileno, porém, por exemplo, que o brasileiro, ao qual a esquerda se adaptou e ao qual se incorporou. Apruebo Dignidade, coalizão no qual se somam a Frente Ampla e o Partido Comunista, excluído pela legislação daquele condomínio partidário (justiça seja feita, a mudança do sistema eleitoral começou sob a presidência de Bachelet, a presidenta mais avança da Concertación), pôs em questão exatamente esse fechamento do sistema político, democrático em certa medida, oligárquico, por outro lado. Candidatos jovens, marcadamente críticos do exclusivismo partidário e das alianças do poder, eles foram inclusive ultrapassados pelas multitudinárias manifestações que, de 2019 em diante, sacudiram o Chile e o governo de Sebastián Piñera, levando à convocação da Convenção Constituinte, com até uma lista de candidatos independentes dos partidos. O neoliberalismo e o domínio dos partidos foram ambos postos em questão. Mas, fiel a seu ideário antioligárquico e antineoliberalismo, antimachista e ambientalista, pluralista e aberto, a coalização que se cristalizou em Apruebo Dignidade foi capaz de adaptar-se à situação, juntar os movimentos sociais (sindicais, ambientais, estudantis, dos povos originários, feministas, das diversidades de gênero, coletivos de jovens das periferias) e reafirmar os compromissos e o alcance da insurgência popular dos últimos anos. Esta em larga medida teve seu espelho antecipado no Brasil de 2013 e em vários outros momentos pela América Latina. Não há porém – ainda, esperemos! – inovação institucional que garanta uma mais profunda e permanente desoligarquização do sistema político chileno. Trata-se portanto de um enorme desafio, conjuntural e da imaginação radical, voltada para o longo prazo, de criar um novo horizonte civilizacional, com um governo efetivo e, ao mesmo tempo, comprometido com a democratização da política e a participação do cidadão comum, para além do controle vertical dos partidos, de resto tão ao gosto das organizações de esquerda.

Enquanto isso seguimos, em muitos rincões de “nuestra América”, reféns dos grandes líderes infalíveis, que tanto erram, e dos aparatos político-partidários que se aferram ao poder por todos os meios. De você fala a fábula: bem que nossas esquerdas partidárias poderiam ouvir a advertência e buscar transformar-se, tomando mais a sério, como já ensaiou um dia, a democratização da democracia.

Mas é improvável que isso ocorra de cima para baixo. Como desde os antigos e sobretudo de Maquiavel se sabe, é do povo – não das oligarquias, seja do dinheiro, políticas ou supostamente do espírito – que depende a liberdade. Na democracia representativa liberal e inclusive no que a ela pode se seguir, é exatamente na alteração do peso da participação popular, dos homens e das mulheres comuns, inclusive e em boa medida caótica, em relação aos aparelhos de poder que se joga o destino da liberdade.

No início dos anos 1970, em contexto muito diferente do atual, ela se jogou com Salvador Allende e seu socialismo democrático. Perdemos. No domingo, com o Chile mais uma vez, a ganhamos. Que nos abanderemos dela, sempre buscando ampliar e aprofundar a verdadeira democracia, nos quadros da república liberal, mas pensando para além dela. Quem sabe daí saia finalmente, em algum momento futuro, um socialismo que faça justiça a seu nome.

*José Maurício Domingues é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Autor, entre outros livros, de Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades (Mauad)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Costa Luiz Eduardo Soares Luiz Renato Martins Renato Dagnino Michel Goulart da Silva Flávio R. Kothe Eliziário Andrade Elias Jabbour Antônio Sales Rios Neto Gilberto Maringoni Eleutério F. S. Prado Tadeu Valadares José Costa Júnior Antonino Infranca Francisco Fernandes Ladeira Caio Bugiato Bruno Machado Igor Felippe Santos Luis Felipe Miguel Lucas Fiaschetti Estevez Ricardo Antunes Marcelo Módolo Henri Acselrad Daniel Brazil Alysson Leandro Mascaro Ricardo Fabbrini Leda Maria Paulani Thomas Piketty Manuel Domingos Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Branco Liszt Vieira Paulo Fernandes Silveira João Paulo Ayub Fonseca Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Érico Andrade Afrânio Catani Samuel Kilsztajn Michael Roberts Chico Alencar Ronald Rocha Slavoj Žižek Plínio de Arruda Sampaio Jr. Jean Marc Von Der Weid Priscila Figueiredo Berenice Bento Kátia Gerab Baggio Henry Burnett Andrew Korybko Tales Ab'Sáber Daniel Afonso da Silva Eugênio Trivinho Gerson Almeida José Geraldo Couto Marilena Chauí Chico Whitaker Marcus Ianoni Ricardo Abramovay João Lanari Bo Alexandre Juliete Rosa Leonardo Sacramento Marcos Silva Otaviano Helene Denilson Cordeiro Francisco Pereira de Farias João Sette Whitaker Ferreira Carlos Tautz Milton Pinheiro Valerio Arcary Yuri Martins-Fontes Paulo Sérgio Pinheiro José Luís Fiori Luís Fernando Vitagliano Vanderlei Tenório Luiz Roberto Alves Manchetômetro Francisco de Oliveira Barros Júnior Dênis de Moraes Matheus Silveira de Souza Lorenzo Vitral José Raimundo Trindade Jean Pierre Chauvin Maria Rita Kehl Annateresa Fabris Tarso Genro Paulo Nogueira Batista Jr Marilia Pacheco Fiorillo Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Atilio A. Boron Carla Teixeira João Carlos Salles João Feres Júnior Rafael R. Ioris Eduardo Borges Gilberto Lopes José Dirceu José Micaelson Lacerda Morais Marcos Aurélio da Silva Fernando Nogueira da Costa Sandra Bitencourt Celso Favaretto Fábio Konder Comparato Alexandre de Freitas Barbosa Sergio Amadeu da Silveira Fernão Pessoa Ramos André Singer Leonardo Avritzer Claudio Katz Ricardo Musse Boaventura de Sousa Santos Bernardo Ricupero Anselm Jappe Airton Paschoa Paulo Capel Narvai Ronaldo Tadeu de Souza Mário Maestri Leonardo Boff Luciano Nascimento Heraldo Campos Jorge Luiz Souto Maior Vinício Carrilho Martinez Vladimir Safatle Mariarosaria Fabris Luiz Marques Bruno Fabricio Alcebino da Silva Flávio Aguiar Armando Boito Ari Marcelo Solon Bento Prado Jr. Rodrigo de Faria Lincoln Secco Marcelo Guimarães Lima Alexandre Aragão de Albuquerque Eugênio Bucci Benicio Viero Schmidt Remy José Fontana Celso Frederico Andrés del Río Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Salem Nasser André Márcio Neves Soares Luiz Carlos Bresser-Pereira José Machado Moita Neto Julian Rodrigues Dennis Oliveira João Adolfo Hansen Osvaldo Coggiola Michael Löwy Ronald León Núñez Rubens Pinto Lyra Gabriel Cohn Eleonora Albano Luiz Werneck Vianna Juarez Guimarães Antonio Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES