Marxismos e cristianismos

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Por MICHAEL LÖWY*

Nota crítica sobre diversas publicações acerca da relação entre marxismo e cristianismo

Os primeiros socialistas do século XIX na Europa, seja Saint-Simon e seus seguidores, Cabet e os comunistas franceses, ou Wilhelm Weitling, o fundador da Liga dos Justos alemã, eram religiosos e reivindicavam uma herança cristã. Foi apenas com Marx e Engels que surgiu um socialismo não-religioso, ou mesmo ateu. O texto fundador desta inflexão é um artigo de Marx publicado em 1844 no Deutsch-franzözische Jahrbücher.

A tradução integral em francês dos Anais Franco-alemães acaba de ser publicada pela primeira vez; ela inclui não só os escritos de Marx e Engels, mas também toda a revista, o que permite situar os textos em seu contexto histórico e intelectual. Como é sabido, esta publicação, que apareceu em Paris em fevereiro de 1844, sob a direção de Arnold Ruge e Karl Marx, foi originalmente um projeto que visava uma aliança franco-alemã, filosófica e política. Os Jovens Hegelianos, que tiveram a iniciativa do projeto, escolheram Paris tanto para escapar da censura na Alemanha como para estabelecer uma colaboração com democratas e socialistas franceses. Mas estes últimos – Lamennais, Etienne Cabet, Pierre Leroux, Louis Blanc – recusaram educadamente o convite, reticentes com a posição ateísta dos alemães.

Além de Marx e Engels, os autores são Arnold Ruge, Johann Jacoby, Moses Hess, Lazarus Bernays, Heinrich Heine, Georg Herwegh. É impressionante que a grande maioria destes autores é de origem judaica: é o caso de Marx, Hess, Jacoby, Bernays, Heine. Cinco dos oito participantes! É claro que Marx e Bernays provêm de famílias convertidas, e não têm qualquer ligação com a tradição judaica. Eles seriam “Judeus não Judeus”, de acordo com o famoso conceito de Isaac Deutscher. Os editores não salientaram este aspecto. Em certa medida, os Anais são um episódio da longa história do radicalismo de esquerda dos intelectuais judeus, que começou no século XIX e atingiu seu auge no século XX.

Está num dos dois artigos publicados por Marx nesta revista, a “Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução”, que aparece uma pequena frase que sancionará o divórcio entre marxismo e fé religiosa: “a religião é o ópio do povo”. Considerada por apoiadores ou opositores como uma espécie de resumo da concepção marxiana da religião, esta fórmula irônica não é de modo algum específica de Marx: pode ser encontrada antes dele, com algumas nuances, em Moses Hess, Heinrich Heine, Bruno Bauer e vários outros autores deste período. Além disso, a concepção da religião que Marx tinha no início de 1844 era neohegeliana (Feuerbach) e a-histórica: a religião como alienação da essência humana. É apenas mais tarde, a partir da Ideologia Alemã (1846), que aparece a análise propriamente “marxista” da religião como uma das formas da ideologia, a ser relacionada com as classes sociais e as condições históricas.

Na verdade, Marx prestou pouca atenção aos fenômenos religiosos. Foi seu amigo Friedrich Engels que se interessaria de perto pela evolução histórica do cristianismo, especialmente em seu livro sobre as guerras sociais e religiosas na Alemanha na época da Reforma. O pequeno livro de Nicos Foufas é a primeira análise, em francês, deste texto “clássico” de Friedrich Engels, As guerras camponesas na Alemanha (1850). Trata-se, de fato, de uma série de artigos publicados por Engels na Nova Gazeta Renana (revista econômico-política) editada pelos dois amigos em Londres, onde se refugiaram após a derrota da revolução de 1848-49 na Alemanha.

Nicos Foufas esclarece, com razão, a novidade radical deste texto, que constitui de fato a primeira – e uma das mais bem sucedidas! – tentativa de aplicar o materialismo histórico a um evento do passado, a revolta dos camponeses (1524-25) no Sacro Império Romano-Germânico. O estudo de Engels, observa Nicos Foufas, é bastante original em sua tentativa de explicar os conflitos religiosos pelos conflitos de classes, mas também porque não reduz a religião a um fator de obscurantismo e conservação: ela é também, em certas condições históricas, capaz de exprimir aspirações subversivas.

Este foi o caso de diversos movimentos heréticos da Idade Média e, em particular, da revolta camponesa do século XVI, em que a fé religiosa, sob a forma da teologia revolucionária do pregador anabatista Thomas Münzer, desempenhou um papel decisivo. Se Engels achou necessário escrever sobre este evento no contexto dos anos 1848-50, é porque foi a mais importante revolta revolucionária da história da Alemanha.

A principal fraqueza da análise da Engels – na nossa opinião – foi analisar certas crenças religiosas como mero “reflexo” ou mesmo “máscara” dos interesses de classe. No entanto, em algumas passagens, que Nicos Foufas não cita, Engels ultrapassará esse tipo de reducionismo socioeconômico. Referindo-se ao comunismo de Münzer, Engels escreve: “Sua doutrina política correspondia exatamente a esta concepção religiosa revolucionária e ultrapassava as relações sociais e políticas existentes tal como sua teologia ultrapassava as concepções religiosas da época. (…) Este programa era menos a síntese das exigências dos plebeus da época do que uma antecipação genial das condições de emancipação dos elementos proletários em germe entre estes plebeus (…)”.

O que é sugerido neste parágrafo surpreendente não é apenas a função de protesto ou mesmo revolucionária de um movimento religioso, mas também sua dimensão antecipatória, sua função utópica. Estamos aqui nos antípodas da teoria do “reflexo”: longe de ser a simples “expressão” das condições existentes, a doutrina político-religiosa de Münzer aparece como uma “antecipação genial” das aspirações comunistas do futuro. Encontramos neste texto uma pista nova, que não é explorada por Engels, mas que será, mais tarde, ricamente trabalhada por Ernst Bloch, desde seu ensaio de juventude sobre Thomas Münzer até sua grande obra O princípio esperança.

Ernst Bloch representa uma importante guinada na história da reflexão marxista sobre religião: ele é o primeiro a visar menos a “crítica da alienação religiosa” – mesmo que esta dimensão não esteja ausente de seus escritos – do que o resgate do excedente utópico das tradições religiosas e particularmente do cristianismo. Seu ateísmo religioso coloca-o numa posição filosófica singular, oposta tanto às teologias institucionais como ao materialismo vulgar.

Ninguém era mais qualificado para tratar deste assunto do que o filósofo franco-alemão Arno Münster, discípulo e biógrafo de Ernst Bloch e autor de vários ensaios notáveis sobre seu pensamento. Um de seus últimos livros é um pouco desorganizado: os capítulos não seguem uma ordem cronológica, nem uma organização temática, o que resulta num certo número de repetições. A primeira parte é uma breve história da relação entre socialismo e religião, de Auguste Blanqui à URSS, passando por Jean Jaurès (mas sem Marx!), inevitavelmente um pouco esquemático. Mas a análise da filosofia da religião de Ernst Bloch proposta por Münster é uma contribuição muito importante para o debate sobre marxismo e religião.

Como lembra Münster, Bloch tornou-se marxista em 1921, sob a influência de seu amigo Georg Lukacs; companheiros de viagem no movimento comunista, exilou-se em 1933, após a tomada do poder pelos nazistas, primeiro na França e depois nos Estados Unidos. De volta à Europa depois da guerra, instalou-se na República Democrática Alemã, onde cumpriria o ofício de filósofo semioficial de 1949 a 1956. Sua oposição à intervenção soviética na Hungria levou-o a ser condenado como “revisionista” e proibido de ensinar. No momento da construção do muro em 1961, decidiu mudar-se para Tübingen na Alemanha Federal, onde se tornaria um opositor marxista, muito escutado pela juventude rebelde de 1968.

A filosofia da religião está presente em quatro momentos da obra do filósofo judeu-alemão: (a) em sua obra de juventude O Espírito da Utopia (1918), especialmente no capítulo final com o título surpreendente de “Karl Marx, a morte e o Apocalipse”; mas também num excurso “Símbolo: os Judeus”; (b) no livro Thomas Münzer, teólogo da revolução (1921), sua primeira obra comunista, que renova profundamente a abordagem marxista da religião; (c) no capítulo 53 do volume III de sua obra magna O princípio esperança, dedicada às três grandes religiões monoteístas, do ponto de vista de sua contribuição para a utopia do “Ainda-Não-Ser”; no livro O ateísmo no cristianismo (1968), uma exegese materialista da Bíblia, que provocou muitas polêmicas e controvérsias – especialmente por parte dos teólogos cristãos.

Hostil àquilo que ele chama de “ateísmo vulgar e indigente”, mas também às teologias conservadoras de todas as confissões, Bloch é fascinado pelo messianismo, apocalipse, escatologia, Cabala, misticismo, heresias; ele celebra com entusiasmo o profeta Amós, Jesus de Nazaré, Joaquim de Flora, Mestre Eckhart, Jan Huss, Thomas Münzer, Wilhelm Weitling, e… Dostoievski. Mas são Karl Marx e Friedrich Engels que lhe fornecem o fio condutor: a luta de classes, a práxis revolucionária, a utopia comunista.

Como Arno Münster mostra com grande inteligência e sensibilidade, o ateísmo religioso de Bloch manifesta-se sobretudo numa leitura crítica, heterodoxa e materialista da Bíblia, em busca de seus momentos utópicos, subversivos e emancipatórios. Uma leitura “com os olhos do Manifesto comunista”, que o levará a um diálogo crítico com a teologia protestante mais avançada: Rudolf Bultmann, Albert Schweitzer, Jürgen Moltmann e sobretudo seu amigo Paul Tillich, um socialista cristão e antifascista alemão, também exilado nos Estados Unidos. Claro que os teólogos cristãos não podem aceitar a proposição central de Bloch, paradoxal e um tanto provocadora: “só um ateu pode ser um bom cristão e só um cristão um bom ateu”.

Com Moltmann, também socialista cristão, o pomo da discórdia será a rejeição categórica por Bloch da “teologia da cruz” de Paulo e Lutero, que levou, a seus olhos, à aceitação do sofrimento como destino humano. Um dos teólogos protestantes, Carl-Heinz Ratschow, professor da Universidade de Marburg, até dedicaria um livro inteiro em 1972 à discussão das teses heréticas de Ernst Bloch. Apesar de sua simpatia por este, ele rejeitou seu engajamento marxista e opôs à esperança de Bloch, baseada no combate, a esperança cristã, baseada na certeza. Ratschow também rejeitou, como era de esperar, a interpretação polêmica de Bloch do Livro de Jó, como uma revolta contra Deus, culpado de tolerar a injustiça do mundo.

Finalmente, a recepção mais favorável de Bloch foi a dos teólogos da libertação latino-americanos (especialmente Gustavo Gutierrez); sem aceitar seu ateísmo, eles compartilharam plenamente a aposta encontrada na conclusão do livro de 1968: “A união da revolução e do cristianismo na guerra dos camponeses não será a última”.

Se os pensadores marxistas interessaram-se pelo cristianismo, não haveria também cristãos atraídos pelo marxismo? Naturalmente, podemos encontrar muitos exemplos disto na história moderna. Um livro recente publicado nos Estados Unidos fala de um caso bastante surpreendente: uma jovem católica, Grace Carlson (1906-1992), que “se converteu” ao marxismo, tornando-se uma das principais líderes do Socialist Workers Party, organização trotskista associada à Quarta Internacional!

O livro de Donna T. Haverty-Stacke é uma biografia bem documentada deste itinerário espiritual e político inusitado. Nascida numa família católica operária de origem irlandesa e criada pelas Irmãs de São José, a jovem Grace Holmes interessou-se pela condição operária, mas na perspectiva da Rerum Novarum e da doutrina social da Igreja. Estudante da Universidade de Minesotta, mobilizou-se, juntamente com seu marido Gilbert Carlson e sua irmã Dorothy, em apoio a uma grande greve operária em Minneapolis em 1934, que foi liderada – fato bastante excepcional na época – por militantes trotskistas.

Os três começaram a participar de reuniões políticas, o que não consideravam incompatível com sua fé religiosa: podiam ir à missa e a uma reunião socialista no mesmo domingo… Nos anos seguintes, as duas irmãs tornaram-se cada vez mais próximas dos trotskistas e em 1936 aderem a esta corrente comunista dissidente, que, em 1937, fundou o Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores), que se baseava em Marx, Lenin e Trotsky. Por volta de 1938, Grace deixou de ser uma católica praticante, o que levou à separação (mas não ao divórcio) de seu marido Gilbert Carlson.

Quais as razões daquilo que a autora chama “uma conversão”? Ela sugere uma hipótese interessante: a “afinidade eletiva” – no sentido weberiano da palavra – entre a consciência operária católica de Grace e o socialismo operário do SWP. Mas esta intuição não está desenvolvida no livro…

Nos anos seguintes, Grace tornou-se a única mulher no Comitê Nacional, a direção do SWP (1942). Depois de passar um ano na prisão (1945), acusada de “tentar derrubar pela força o governo dos Estados Unidos”, em 1948, ela seria candidata a vice-presidente dos Estados Unidos pelo SWP – o candidato presidencial foi um dos líderes da greve de 1934, Farrell Dobbs.

Contudo, em 1952, uma segunda conversão teria lugar: Grace Carlson decidiu deixar o Partido e voltar para a Igreja Católica… Isto levou à reconciliação com seu marido, que permaneceu católico, Gilbert Carlson, mas ao rompimento com sua irmã Dorothy, que continuou no Partido, com seu amante Ray Dunne, e com suas numerosas amigas socialistas, com as quais tinha formado uma rede de “sororidade”. James P. Cannon, fundador e principal líder do SWP, que se tornara um amigo pessoal, tentou explicar a Grace que a Igreja Católica era “a força mais reacionária e obscurantista de todo o mundo”, mas sem muito sucesso…

Perplexos, seus amigos marxistas tentaram explicar esta reviravolta pela fadiga face à repressão e caça às bruxas do Macarthismo, mas para Grace se trata de outra coisa: uma guinada espiritual, uma necessidade de Deus. “Eu mudei minha atitude religiosa, mas não minha política”, disse ela: “permaneci marxista à minha maneira”. Ela seria acolhida pelas Irmãs de São José e ensinaria numa Escola de Enfermagem no Hospital Saint Mary – não sem cooperar com Slant (Ponto de vista), um grupo marxista cristão da Inglaterra, e denunciar a Guerra do Vietnã.

No caso de Grace Carlson, tratou-se de um itinerário singular e pessoal. O que encontraríamos, uma geração mais tarde, na América Latina, seria de outra dimensão: todo um movimento social, especialmente entre a juventude católica, se apropriará de certos conceitos marxistas e formulará uma nova visão cristã – socialista. Este movimento, nascido no Brasil no início dos anos 1960 – após a Revolução Cubana, mas antes do Concílio Vaticano II –, assumiu diferentes formas, incluindo a formação, em 1962, por militantes da Juventude Universitária Católica, de um partido político socialista/humanista, a Ação Popular (AP). Só bem mais tarde, após 1971, que se desenvolverá, a partir desta experiência sociopolítica, a “teologia da libertação”, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina.

Um dos episódios mais marcantes desta convergência entre catolicismo e marxismo foi o envolvimento, por volta de 1968-70, de um grupo de frades dominicanos do Convento de Perdizes, em São Paulo, na resistência armada contra a ditadura militar estabelecida em 1964 no Brasil. O livro de Leneide Duarte-Plon é a biografia de um destes dominicanos brasileiros, Frei Tito de Alencar, que pagará com sua vida por este engajamento social e político.

Militante da Juventude Estudantil Católica, que entrou na Ordem Dominicana em 1966, Tito partilhou com seus irmãos do Convento de São Paulo, a admiração por Che Guevara e Camilo Torres, e o desejo de associar Cristo e Marx na luta pela libertação do povo brasileiro. Tito esteve próximo da Ação Popular, que foi hegemônica no movimento estudantil, e contribuiu para a organização clandestina, em 1968, do Congresso da União Nacional de Estudantes na cidade de Ibiúna. Como todos os delegados, ele foi preso pela polícia nesta ocasião, mas logo foi libertado.

Após o endurecimento da ditadura militar em 1968 e a impossibilidade de qualquer protesto legal, a ala mais radical da oposição à ditadura pegará em armas a partir deste momento. A principal organização de luta armada contra o regime foi a Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada por um líder comunista dissidente, Carlos Marighella. Um grupo de jovens dominicanos – Frei Betto, Yvo Lesbaupin, Fernando Brito e outros – juntou-se à ALN, sem pegar em armas mas dando suporte logístico. Sem pertencer àqueles que colaboraram diretamente com Marighella e seus camaradas, Tito de Alencar é solidário com o envolvimento deles. Como eles, acreditava que o Evangelho continha uma crítica radical da sociedade capitalista; e como eles, acreditava na necessidade de uma revolução. Como escreverá mais tarde, “a revolução é a luta por um novo mundo, uma forma de messianismo terreno, no qual existe a possibilidade de encontro entre cristãos e marxistas”.

Em 4 de novembro de 1969, durante a noite, o delegado de polícia Fleury invadiu o Convento de Perdizes e prendeu vários dominicanos, incluindo Frei Tito. A maioria deles foi torturada e suas confissões permitiram à polícia montar uma armadilha para Carlos Marighella e assassiná-lo. Tito não tinha qualquer contato com a ALN e respondeu negativamente a todas as perguntas. Ele foi submetido à tortura duas vezes (choques elétricos) no final de 1969 e no início de 1970, primeiro por Fleury e mais tarde nas instalações do serviço de informações do Exército – chamado pelos militares de “a sucursal do inferno”.

Para escapar de seus carrascos, ele tenta suicidar-se com uma lâmina de barbear. Internado no Hospital Militar, recebe a visita do Cardeal de São Paulo, D. Agnelo Rossi, figura conservadora, que se solidarizou com os militares e se recusou a denunciar a tortura dos dominicanos. Finalmente enviado para uma prisão “comum”, Tito escreveu um relato de seus sofrimentos que foi publicado pela revista americana Look e distribuído no Brasil por militantes da resistência, com repercussão considerável. O Papa Paulo VI finalmente condenou “um grande país que aplica métodos de interrogatório desumanos” e substituiu D. Rossi por Paulo Evaristo Arns, novo Cardeal de São Paulo, conhecido pelo seu empenho na defesa dos direitos humanos e contra a tortura.

Alguns meses depois, revolucionários raptaram o embaixador suíço e trocaram-no pela libertação de 70 prisioneiros políticos, incluindo Tito de Alencar. O jovem dominicano hesitou em aceitar, pois a ideia de deixar seu país era estranha para ele. Os 70 foram expulsos do país e proibidos de regressar. Após uma breve estadia no Chile, Frei Tito instalou-se junto aos dominicanos do Convento de Saint-Jacques em Paris. O exílio foi para ele um grande sofrimento: “É muito difícil viver longe de seu país e da luta revolucionária. Temos que suportar o exílio como suportamos a tortura”. Participou de campanhas de denúncia dos crimes da ditadura, e começou a estudar teologia e os clássicos do marxismo: “Aceito a análise marxista da luta de classes. Para quem quer mudar as estruturas da sociedade, Marx é indispensável. Mas a visão de mundo que tenho como cristão é diferente da visão de mundo marxista”. O dominicano francês Paul Blanquart, conhecido pelas suas opções “à esquerda de Cristo”, descreve-o como “o mais empenhado e o mais revolucionário dos dominicanos”.

No entanto, com o passar do tempo, Tito mostra cada vez mais sinais preocupantes de desequilíbrio psíquico. Ele acreditava estar sendo perseguido pelo seu torturador, o delegado Fleury. Em 1973, foi oferecido a ele um lugar mais tranquilo: o Convento Dominicano de l’Arbresle. Tornou-se amigo do frade dominicano Xavier Plassat, que tentou ajudá-lo, e submeteu-se a um tratamento psiquiátrico com o doutor Jean-Claude Rolland. Foi em vão. Após o golpe de estado no Chile em setembro de 1973, ele ficou cada vez mais angustiado, convencido de que Fleury ainda o perseguia, e de que os dominicanos, ou as enfermeiras do hospital psiquiátrico, eram seus acólitos. Finalmente, no limite de suas forças, desesperado, em 8 de agosto de 1974, optou pelo suicídio por enforcamento.

Por fim, seu amigo dominicano, o Frei Xavier Plassat, estabeleceu-se no Brasil, onde se tornou o organizador da campanha da Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo: segundo seu testemunho, “meu trabalho aqui é um legado deixado por Tito”.

Como é sabido, o Vaticano, sob João Paulo II e Ratzinger, rejeitou a teologia da libertação como um “erro”, sobretudo devido ao seu uso “indiscriminado” de conceitos marxistas. Com a eleição de Bergoglio, o Papa Francisco, de origem argentina, um novo período parece abrir-se. Não somente Gustavo Gutierrez foi recebido no Vaticano, como o Papa decidiu, numa reunião em 2014 com Alexis Tsipras e Walter Baier, dois líderes da Esquerda Europeia, abrir um diálogo entre marxistas e cristãos. Diálogos desse tipo ocorreram no período pós-guerra em alguns países europeus (França, Itália, Alemanha), mas uma iniciativa sob a égide do Vaticano não tem precedentes.

O Papa delegou para este diálogo o arcebispo Angelo Vincenzo Zani, secretário da Congregação do Vaticano para a Educação Católica, e o movimento Focolari, uma rede laica fundada por Chiara Lubich na Itália do pós-guerra. O livro Europe as a Common é a primeira publicação desta tentativa de explorar uma “ética social transversal”. Dois dos editores do livro, Franz Kronreif e Luisa Sello, pertencem à rede dos Focolares, e os outros dois, Walter Baier (ex-secretário geral do Partido Comunista austríaco) e Cornelia Hildebrandt, da Fundação Rosa Luxemburgo de Berlim, representam a Transform!, uma rede de fundações de pesquisa marxistas ligadas à Esquerda Europeia.

De início, o diálogo ocorreu no Instituto Universitário Sophia, do Movimento dos Focolares, no vilarejo de Loppiano, perto de Florença, onde os participantes foram recebidos pelo sociólogo belga Bernard Callebaut. Outros simpósios foram realizados em Castelgandolfo – a residência de verão do Papa! – e em Viena. Em setembro de 2018, contudo, realizou-se uma Escola de Verão conjunta na Universidade do Egeu, localizada na ilha de Siro, lar de uma comunidade católica tradicional. A maior parte dos documentos reunidos no livro Europe as a Common (primeiro volume) são apresentações feitas durante esta iniciativa. No decorrer de seus cursos, os estudantes, provenientes de ambas as correntes, redigiram conjuntamente um documento intitulado “O Manifesto de Hermópolis”, que também foi incluído no livro.

Na introdução, os quatro editores do livro lembram que o objetivo do diálogo não é a conversão mútua, nem a produção de um sincretismo, mas sim a procura do comum sem ignorar as diferenças fundamentais. Três intervenções iniciais servem como ponto de partida:

Franz Kronreif, do Movimento dos Focolares, fala de “consenso na diferença” e propõe que os parâmetros iniciais do diálogo sejam a encíclica Laudato Si do Papa Francisco e as Teses Sobre o conceito de história de Walter Benjamin. Walter Baier, da rede Transform!, lembrou da necessidade de uma reflexão autocrítica dos marxistas sobre os crimes cometidos em nome do socialismo na URSS; ele encontrou nos escritos de Karl Polanyi elementos para uma convergência entre o socialismo e o cristianismo. Finalmente, o arcebispo Zani, numa saudação à Escola de Verão de 2018, prestou homenagem aos ideais de justiça, fraternidade e solidariedade dos jovens participantes deste encontro.

Durante os diálogos e debates na Escola de Verão, houve confrontações entre pontos de vista bem opostos, como, por exemplo, entre Leonce Bekemans, professor da cadeira Jean Monnet na Universidade de Pádua, apoiador convicto da União Europeia “realmente existente”, e Luciana Castellina, ex-deputada comunista europeia, que sonha com uma “outra Europa”, não submissa aos mercados capitalistas. Algumas vezes, porém, os interlocutores de ambos os lados conseguiram elaborar um documento comum, como foi o caso de Cornelia Hildebrandt e Pal Toth, professor do Instituto Universitário Sophia, sobre “Uma estratégia não violenta num mundo plural”. O mesmo se aplica à contribuição de Petra Steinmair-Pösel, teóloga ligada aos Focolares, em colaboração com Michael Brie, da Fundação Rosa Luxemburgo de Berlim, sobre “Os Comuns: nosso terreno comum?”.

Europe as a Common também contém contribuições de Piero Coda, reitor do Instituto Universitário Sophia, Bernard Callebaut, sociólogo da mesma instituição, Spyros Syropoulos, professor da Universidade do Egeu, Alberto Lo Presti, da Universidade Católica Lumsa de Roma, José Manuel Pureza, professor da Universidade de Coimbra e deputado do Bloco de Esquerda no Parlamento português, do teólogo muçulmano Adnane Mokrani – defensor de “um Estado secular como necessidade religiosa” –, do psicólogo social Thomas Stucke, do cientista político colombiano Javier Andres Baquero (que relata sua experiência na gestão “verde” da cidade de Bogotá), e do autor desta nota. O conjunto, que testemunha a pluralidade de perspectivas envolvidas nesta iniciativa “transversal”, é completado por uma conferência do Papa Francisco sobre “A opção preferencial pelos pobres, o critério-chave da autenticidade cristã”.

O que podemos concluir deste itinerário bibliográfico bastante acidentado, que nos leva do jovem Marx ao Pontifex Maximum Bergoglio? A única conclusão é que a relação entre marxistas e cristãos continua sendo um livro aberto, cujos próximos capítulos serão escritos não tanto a partir das Escrituras Sagradas uns dos outros, mas em resposta aos desafios ecológicos, sociais e éticos do século XXI.

*Michael Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de A guerra dos deuses: religião e política na América Latina (Vozes).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente em Archives de Sciences Sociales des Religions, n°. 196, dezembro 2021.

 

Referências


Friedrich ENGELS et Karl MARX. Annales franco-allemandes, Edition complète. Préparée par Alix Bouffard et Pauline Clochec. Traduction par J-C Angaut, V.Beguin, A.Bouffard, J-M Buée, P.Clochec, C.Fradin, M. L’Homme et J.Quétier. Présentation et annotation par P.Clochec, Paris, Editions Sociales, Geme (Grande Edition Marx et Engels), 2020, 328 pages;

Nicos FOUFAS. Friedrich Engels et la Guerre des Paysans Allemands. Paris, L’Harmattan, «Ouverture Philosophique», 2020, 117 pages.

Arno MÜNSTER. Socialisme et religion au XXe Siècle. Judaisme, Christianisme et athéisme dans la philosophie de la religion d’Ernst Bloch. Paris, L’Harmattan, coll. «Ouverture Philosophique», 2018, 175 pages.

Donna T. HAVERTY-STACKE. The Fierce Life of Grace Holmes Carlson. New York, New York University Press, 2021, 289 pages.

Leneide DUARTE-PLON et Clarisse MEIRELLES. Tito de Alencar (1945-1974). Un dominicain brésilien martyr de la dictature. Paris, Karthala, Collection «Signes des Temps», 2020, 308 pages. Traduit du portugais par les auteures. Préface de Vladimir Safatle, Avant-Propos de Xavier Plassat.

Walter BAIER, Cornelia HILDEBRANDT, Franz KRONREIF, Luisa SELLO (Eds.). Europe as a Common. Exploring Transversal Social Ethics. Zürich, LIT Verlag, 2021, Vol. I, 267 pages.

 

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