Por PAULO CAPEL NARVAI*
As universidades estão repletas de professores que fingem defender a liberdade, mas subordinam conhecimentos científicos à ideologia neofascista
Cecília Meireles escreveu no Romanceiro da Inconfidência que, embora ninguém saiba o que é a liberdade, trata-se de “palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”. Muito se escreveu e disse sobre a liberdade, cuja palavra costuma ser acompanhada de outra, igualmente difícil de ser definida: democracia. Ambas requerem, sempre, contexto, e muito mais, para adquirirem significado e suas ressignificações são, por essa razão, feitas o tempo todo, por humanos, em todos os lugares.
Liberdade e democracia, ainda que difíceis de definir e reconhecidamente imperfeitas, são o núcleo das melhores aspirações dos homens que lutam contra a opressão e o arbítrio, e a favor da igualdade e da justiça.
As ideias de liberdade e democracia são, por isso, avessas a falsificações: ou se as reconhecem, e podem ser exercidas diariamente, ou estão ausentes. As falsificações da liberdade e da democracia deformam o exercício do poder e destroem as repúblicas, como regimes em que o poder emana do povo e deve ser por ele exercido em benefício de todos. Quando o poder não emana livremente do povo, tomado que é de algum modo por oligarcas, não há liberdade e não se reconhece a democracia. Nessas situações as instituições republicanas, capturadas, operam num faz-de-conta que não passa de mera formalidade. Sequestra-se a democracia e, com ela, a liberdade.
Nessa perspectiva, a ideia de liberdade requer não tomar como absolutos os direitos de ir e vir e de fazer o que se quer, mas considerar a necessidade de respeitar direitos de terceiros e, vivendo em sociedade, ponderar sobre o quanto o exercício de direitos individuais afetam direitos sociais, derivados de necessidades coletivas. Não se trata, decerto, de assunto simples. E parece elementar admitir o adágio popular segundo o qual o “meu” direito termina onde começa o “direito do outro”.
Mas não é assim que pensam muitas pessoas, que não admitem qualquer restrição ou relativização ao que consideram serem “seus direitos”. De ir e vir, de fazer o que lhes der na telha e de… se vacinarem.
Em acirrada polêmica com Oswaldo Cruz, há mais de um século, o liberal Ruy Barbosa posicionou-se contra a vacinação obrigatória, cuja lei era defendida por Cruz, argumentando que “a lei da vacina obrigatória é uma lei morta. Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. Para Barbosa, “não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução no meu sangue de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia e da morte”.
O século XX tratou de esclarecer que Ruy Barbosa não tinha razão ao associar vacinas com envenenamentos ou que pudessem conduzir à “moléstia e à morte”. Mas o século XX não resolveu o problema do “poder” que, “temerário, violento e tirano” estaria a praticar crimes ao transpor a epiderme de cidadãos.
Ainda que nos contextos democráticos contemporâneos não seja “temerário, violento e tirano” utilizar vacinas em intervenções programáticas de saúde pública, adotadas na execução de políticas públicas elaboradas sob o controle de variados instrumentos por instituições republicanas e representações populares, como ocorre no Brasil do século XXI, resta aos cidadãos a desconfiança das ações emanadas do poder. Há razões para essa desconfiança, mas há também canais institucionais para os quais ela pode e deve ser dirigida e processada.
Mas não são questões dessa natureza que têm levado à problematização da ideia de liberdade, no Brasil, neste momento. Aceita-se, de modo geral, que vale para a aplicação de vacinas o princípio da inviolabilidade do corpo. Portanto, se não há consentimento, não podem ser aplicadas. Ao Estado, ainda que democrático e de direito, como é o caso do Brasil, não se reconhece o direito de impor vacinas, de modo genérico e universal. Há exceções, mas fiquemos, por enquanto, no princípio que rege o tema.
Em 27/1/2022 a coordenadora do curso de graduação em Medicina da Universidade de Brasília (UnB) pediu desligamento do cargo. Justificou a decisão alegando estar em “desacordo com a gestão”, quanto à exigência, feita pelo Conselho de Administração da UnB, de comprovante de vacinação completa contra a covid-19 para a entrada em qualquer prédio da instituição. A professora, que é doutora em Ciências Médicas, admitiu não ter tomado nenhuma dose de imunizante contra o coronavírus SARS-CoV-2, que causa covid-19. No dia em que a professora pediu desligamento do cargo que ocupava na UnB, o Brasil registrou, oficialmente, 229 mil novos casos da doença, com 662 óbitos, nas últimas 24 horas. No mundo, foram 11.945 mortes por covid-19, naquele dia.
Em nota, dirigida aos “professores, técnicos e estudantes” da UnB, a professora afirmou que sua decisão “foi motivada pela recente implantação do passaporte sanitário na Faculdade de Medicina”, reconheceu que compõe “o grupo de servidores não vacinados” e que sua “posição como coordenadora ficou em desacordo com a gestão da faculdade”. Declarou “ser sensível ao momento pandêmico vivenciado por todos nós” e que, como “é sabido”, “as vacinas estão em desenvolvimento e, nessa fase, tanto a segurança quanto a eficácia suscitam inúmeros questionamentos”.
Argumentou que “as vacinas disponíveis não impedem a infecção e tampouco o contágio” e que seria “uma incongruência a imposição do passaporte sanitário, desconsiderando os indivíduos que se recuperaram da infecção pela Covid-19 e que possuem imunidade natural, bem como aqueles que não sentem segurança nas vacinas disponíveis e julgam que o risco supera o benefício”. Ponderou ser, “além disso”, uma “árdua defensora das liberdades individuais”, pediu “bom senso na tomada das decisões pelos gestores da universidade”, colocou-se “à disposição para auxiliar a todos na medida das minhas habilidades” e encerrou a nota com um “Graça e paz a todos!”.
Dentre mais de três mil instituições de ensino superior em todo o mundo, a UnB ocupou a 604ª posição, em 2021. A universidade, pública, está entre as dez melhores brasileiras e, entre as federais, é a 7ª. Seu curso de graduação em medicina ocupou, em 2019, a 12ª posição, dentre 243 cursos brasileiros.
Tais características, do curso e da universidade, e também porque a professora se dirigiu aos “professores, técnicos e estudantes”, requerem que o episódio da UnB seja analisado em seus pormenores, tendo em vista as consequências das palavras da professora, agora não apenas para a comunidade da UnB, mas para toda a sociedade, que tem na instituição uma importante referência sobre assuntos de interesse público.
Em primeiro lugar, porém, deve-se registrar que não se trata de fato isolado. Os quadros de docentes das universidades brasileiras estão repletos de professores universitários que pensam como a docente da UnB. De todas as universidades, tanto as estatais como as particulares – ou “públicas e privadas”, para os que temem o vocábulo estatal, por supostamente “comunista”.
Vale, a propósito, reafirmar que a educação é pública e que todas as universidades são públicas, de acordo com regras. A universidade não é um assunto doméstico, que diz respeito à vida privada. É assunto público, seja qual for a forma de sua propriedade: estatal ou particular.
Um motivo a mais, portanto, por sua relevância e significado, para não “deixar pra lá” o desligamento ocorrido na UnB. A nota pública da professora precisa ser questionada. Publicamente. Há muito o que questionar, e atenho-me a alguns aspectos, na expectativa de que muitos outros pontos sejam analisados por outros interessados no assunto.
Começo argumentando que, ao contrário do que a professora afirmou, não foi sua “posição” “como coordenadora” que colidiu com a posição institucional da UnB, mas sua posição pessoal, pois “como coordenadora” ela não tinha o direito de assumir, como posição da coordenação do curso, a sua posição, pessoal e anticientífica, sobre o tema.
Como lembraria Ruy Barbosa, o antivacinista precursor, a professora tem, pessoalmente, direito de não se vacinar. Nesse caso, na vigência de uma pandemia que comprovadamente mata, deve permanecer em isolamento. Como titular de cargo público, em universidade estatal, não tem o direito de, não estando vacinada, expor contactantes ao risco de contraírem a enfermidade. É simples assim. Não é obrigada a se vacinar. Mas não tem o direito de expor terceiros ao risco de serem contaminados por ela. A razão desse impedimento legal é também muito simples: como pessoa, a cidadã tem o direito de não fazer o que não quer fazer. Mas, como agente de uma instituição do Estado, está obrigada a proteger a população e não pode causar-lhe danos. Simples assim. Está em qualquer bom manual de administração pública e de direito público.
Isto posto, é incoerente que tendo reconhecido que compõe “o grupo de servidores não vacinados” seja “sensível ao momento pandêmico vivenciado por todos nós”. Isto simplesmente não faz sentido.
O mais grave, porém, da referida nota é a afirmação de que “as vacinas disponíveis não impedem a infecção e tampouco o contágio”, pois ainda que se admita o argumento para a condição de um indivíduo, há farta documentação científica, de base epidemiológica, mostrando um efeito oposto na dimensão coletiva, quanto ao contágio. Não há fundamento científico, portanto, para a afirmação de seria “uma incongruência a imposição do passaporte sanitário”.
Não há incongruência, há racionalidade nessa medida, ainda que fundada em conhecimentos que não são compartilhados pela racionalidade adotada pela professora. Não faz sentido, também, a afirmação de que “o risco supera o benefício” das vacinas, pois há, no momento, um formidável conjunto de dados, no Brasil e no mundo, mostrando, de modo cabal, que se trata do oposto: o benefício supera, amplamente, o risco eventual do uso de vacinas anti-covid-19. Por esses motivos, não há fundamento técnico-científico para a decisão da ex-coordenadora de um curso de graduação em medicina, doutora em ciências médicas, em não se vacinar.
Resta à docente o argumento de ser uma “árdua defensora das liberdades individuais”, o que é um direito, mas que não justifica sua posição, “como coordenadora” de entrar em colisão com a decisão institucional da UnB, da qual é servidora pública. É, portanto, estapafúrdio, pois despropositado, para não dizer ofensivo, seu pedido de “bom senso na tomada das decisões pelos gestores da universidade”, pois não houve, nem falta de senso, nem contrassenso, nem mau senso na decisão. Ao contrário, apoia-se a decisão da UnB nos melhores conhecimentos disponíveis sobre o assunto.
Decerto nada direi, por desnecessário, sobre colocar-se “à disposição para auxiliar a todos” na medida das suas “habilidades”, nem sobre a consigna “Graça e paz a todos!” – com ponto de exclamação e tudo, que fecha a nota pública.
Por derradeiro, cabe registrar que embora a nota pública não informe, estão acessíveis nas redes sociais digitais, fotos da ex-coordenadora de curso da UnB participando de atos públicos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, com vestes e pinturas faciais em verde-amarelo. Essa condição, de apoiadora das ideias de Bolsonaro, e não os “inúmeros questionamentos” sobre “tanto a segurança quanto a eficácia” das vacinas, é o verdadeiro fundamento da sua posição pessoal de não se vacinar. É isso o que ela deveria ter escrito em sua nota pública e não a manipulação retórica de sua posição individual, tornada a “posição como coordenadora” que teria ficado “em desacordo com a gestão da faculdade”.
A manipulação da verdade, e a transformação de opiniões em supostos fatos, no melhor estilo pós-verdade, são reconhecidamente, um traço distintivo, embora não exclusivo, do bolsonarismo, em que essa prática manipulatória é recorrente.
“Eu prefiro morrer do que perder a minha liberdade”, disse Bolsonaro, em transmissão em redes sociais digitais, em dezembro de 2021. Em 10/12/2021, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fez coro a Bolsonaro e avaliando que “o que estamos fazendo tem dado certo, porque respeitamos as liberdades individuais”, reafirmou que “às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade (…) e que o nosso compromisso é com isso, é com a vida, é com a liberdade, é com a concretização das políticas públicas de saúde”. Acuado pela imprensa nos dias seguintes, defendeu-se, citando o verso do Hino da Independência: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. O ministro, que finge ser antivacinista para agradar o chefe, parece crer que suas ações à frente da pasta da Saúde estão contribuindo para conter a pandemia no Brasil e que estaria, efetivamente, defendendo a vida. É falsificação grosseira. Mas em entrevista ao jornal O Globo, em 29 de janeiro de 2022, Queiroga disse que quer ser visto “como o homem que acabou com a pandemia da covid-19”.
A defesa de uma ideia abstrata e descontextualizada de liberdade não passa de retórica de Bolsonaro e seus seguidores, inclusive, como se pode observar pelo episódio da UnB, entre doutores da área biológica e no meio universitário. Não faltam docentes que, a pretexto de defender liberdades individuais, subordinam conhecimentos científicos à ideologia neofascista e fazem pose de libertários. Mas se a ideia de liberdade que propagam é abstrata, suas consequências são mortais, como mostra a evolução da pandemia de covid-19 no Brasil. Os números do genocídio brasileiro contemporâneo indicam se tratar de uma espécie de “necroliberdade”, pois seus adeptos brandem, às vezes ferozmente, a defesa de um tipo de liberdade que não se importa em matar. É uma estranhíssima “defesa da vida”; uma liberdade que mata.
Os versos de Cecilia Meireles sobre a liberdade estavam no texto da peça Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em produção teatral compartilhada em 1965 pelos grupos Opinião e Arena. A montagem, que tinha no elenco dentre outros Paulo Autran, Tereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho, Nara Leão e Claudio Mamberti, era um libelo contra a supressão das liberdades promovida pelo golpe civil-militar de 1964. Ainda não havia a escuridão total que viria no pós-AI-5, de 1968, mas o texto antevia o que estava por vir e percorria, pela voz de diferentes autores, distintos períodos históricos que iam da Antiguidade às revoluções burguesas e chegavam ao século XX, nos quais as liberdades eram esmagadas. A própria peça foi vítima da falta de liberdade: apesar do enorme sucesso de público, poucos meses após a estreia, a censura impediu a continuidade das apresentações.
A peça de Fernandes e Rangel falava de liberdade, mas de um tipo de liberdade que nada tem a ver com a liberdade, a necroliberdade, da qual a professora da UnB se diz uma “árdua defensora”.
Ah, liberdade! Abre as asas sobre nós.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.