A fábrica de nada

Janet Ledger, Portão da Fábrica, 1976
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Por EDU TERUKI OTSUKA & IVONE DARÉ RABELLO*

Comentário sobre o filme dirigido por Pedro Pinho

O filme A fábrica de nada narra a resposta dos operários ao anúncio de demissão na Fortileva, uma fábrica de elevadores na região de Póvoa de Santa Iria (norte de Lisboa), quando a produção deixou de ser suficientemente lucrativa para seus proprietários devido à crise na construção civil e à concorrência chinesa, que oferece preços abaixo do padrão nacional.

A progressiva construção dessa resposta em ações apresentadas no longa-metragem, assim como trechos de “Aos nossos amigos”, do Comitê Invisível, enunciados por uma voz over, e o debate entre intelectuais de esquerda, interessam à discussão de como se pode pensar os limites de uma luta pela manutenção de postos de trabalho, bem como o revigoramento da reflexão teórica sobre a possibilidade de superar um sistema social fundado no trabalho abstrato e no fetichismo da mercadoria.

Convocados no meio da noite devido ao que consideram ser uma invasão na fábrica Fortileva, os trabalhadores descobrem que as máquinas e os materiais estão sendo removidos sem saber a mando de quem. Enfrentam os carregadores que retiram seus instrumentos de trabalho e assim conseguem que nem tudo seja levado. Na manhã seguinte, a diretora da empresa (Patrícia Soso) explica que vai implementar uma reorganização da produção. São feitas promessas de realocação dos postos de trabalho, sempre para “o bem de todos”, segundo Marta (Joana Paes de Brito), a gestora de RH trazida pela diretora.

Diante da ordem para que os trabalhadores retornem a suas casas e voltem à fábrica no seu horário de trabalho no dia seguinte, e intuindo que aquela sucursal da Fortileva poderá fechar, a maioria dos empregados decide ali permanecer dia e noite para evitar que o restante dos equipamentos seja realocado e tentar garantir seus postos de trabalho, ainda sem saber o que lhes será proposto.

A ação do filme remete à experiência real ocorrida na Fateleva (a Otis portuguesa), mencionada ao final do filme num letreiro homenageando os operários que geriram com sucesso a fábrica entre 1975 e 2016. Mas o longa se ambienta na época atual,[i] quando muitas fábricas portuguesas foram sendo fechadas desde que a crise econômica atingiu o país, associada à crise estrutural do capitalismo, cujos efeitos são globais.

No enfrentamento entre proprietário – representado na figura da diretora da empresa[ii] – e trabalhadores, o foco de A fábrica de nada está na reação dos operários, nos modos pelos quais eles buscam salvaguardar seus empregos, fonte de sua sobrevivência.

No dia seguinte, cumprindo seu horário de trabalho, e não havendo produção nem definição de qual será o destino dos operários e funcionários na reorganização da empresa, eles procuram preencher com jogos o tempo vazio da espera. São instados pelo supervisor a permanecerem na frente das máquinas que restaram, para que não sejam despedidos se forem vistos através das câmeras de segurança. É quando chega a Dra. Marta, gestora do RH, que passa a convocar cada um dos trabalhadores para entrevistas individuais.

Quando, na sequência, se focaliza o retorno de um operário (Carlos Santos) depois do encontro com a gestora, torna-se claro para o espectador que a decisão da empresa é devastadora: “Querem fechar a fábrica”, “com rescisões amigáveis”, indenização e meses extras de salário. A cínica e previsível retórica de Marta é de que a crise “é também uma oportunidade”. A estratégia empresarial de chamar um a um para assinar a aceitação da quebra do contrato é a de dividir os trabalhadores, também em função das diferenças do valor das indenizações.

Só alguns operários aceitam a oferta.[iii] Outros não querem o dinheiro; querem trabalho. Os mais velhos sabem que não conseguirão outro emprego; percebem que muitas fábricas fecharam na região e os empregos escasseiam.[iv] Outros, mesmo que solidários ao grupo, hesitam e, diante da decisão da empresa, não têm certeza sobre o que fazer, dada a necessidade da sobrevivência imediata, que os impeliria a aceitar a indenização, mesmo que o dinheiro permita a sobrevivência por meses ou, no máximo, um ou dois anos.[v]

Mesmo sem clareza sobre o caminho a tomar, os trabalhadores seguem com as discussões internas, em busca de um rumo para a ação. O filme enfatiza as hesitações, temores e conflitos por eles vivenciados, focalizando, neste primeiro momento, a falta de unidade do grupo sobre as decisões a tomar. Evita-se, assim, a idealização do operariado politizado, conduzido por um líder. Aqui, operários não politizados são confrontados com uma situação que exige deles um gesto político que precisa ser inventado.[vi]

Sabendo que a proposta da empresa é a demissão, o que implica, para os operários, a impossibilidade de encontrar outro emprego, aqueles que não aceitam a rescisão do contrato decidem permanecer na fábrica, apesar da incerteza quanto às consequências disso, uma das quais é não receber o pagamento dos salários. A luta se estenderá por meses e inicialmente é movida pelo desejo comum de defender os postos de trabalho, numa atitude não orientada politicamente. Virá de Rui (Rui Ruivo), o operário mais combativo, a proposta organizativa de ação: greve, ocupação da fábrica, e impedimento da entrada dos novos administradores no local.

Um desconhecido (que depois se revelará como um militante italiano que havia acompanhado a ocupação de uma fábrica argentina) chega ao local e conversa com o operário Zé (José Smith Vargas); pergunta-lhe como entrar na Fortileva pois soube que ela está parada. Afirma estar trabalhando sobre a crise na Europa. Mas Zé não dá continuidade à conversa.

Horas depois, surgem os representantes sindicais acompanhados pelo militante italiano, que apenas observa. Esclarecendo as dúvidas dos trabalhadores, informam que a greve, legal numa fábrica parada e apoiada pelo sindicato, pressionaria os administradores a manterem os postos de trabalho; já a ocupação, sendo ilegal, não será assumida pelo sindicato, portanto os operários terão de se responsabilizar por ela. Os trabalhadores votam pela ocupação e organizam-se em turnos dia e noite.

Quando os administradores pretendem entrar na fábrica e os trabalhadores os impedem surge novo conflito. Logo depois, a polícia intervém, alegando ter recebido uma denúncia de invasão de propriedade privada. Rui afirma ter sido orientado a esperar o advogado do sindicato. Quando este chega, junto com outros representantes sindicais, informa aos policiais já ter entrado com uma medida cautelar para impedir a retirada dos ativos da empresa; portanto, não há crime de ordem pública. A polícia tem de se retirar.

O militante italiano (Daniele Incalcaterra[vii]), que tem contatos internacionais e antes apenas observava os operários ou acompanhava os sindicalistas, vai até a fábrica e, durante um turno noturno em que eles relatam suas dificuldades atuais e pregressas, pede-lhes ânimo. Quer informações sobre a assembleia organizada por eles; quer que tratem dos assuntos relacionados à ocupação. Quer o que, em sua concepção, seria a politização da luta, como se a troca das vivências de sofrimento na vida cotidiana desses operários não tivesse significado político. Mas sua voz não encontra eco junto aos trabalhadores, que querem falar de seu cotidiano enquanto ocupam a fábrica.

Ao se encontrar com Zé após um show, numa conversa de bar, o italiano sugere que os operários devem se organizar para fazer funcionar a fábrica, tal como fizeram os trabalhadores da Fasinpat. Daniele explica a Zé o funcionamento possível de uma cooperativa, como ocorrera na Fasinpa.

No entanto, no ambiente da fábrica, ainda não se sabe o que fazer, e os trabalhadores não parecem ter perspectivas de resolução favorável a eles: não basta ocupar a fábrica e preservar a existência física das instalações para que os proprietários voltem atrás em sua decisão de fechá-la. Sem produzir, os operários inventam jogos, tentando aproveitar o que raramente tem, isto é, tempo ocioso. No entanto, a indefinição quanto a seu futuro não lhes permite viver essa nova temporalidade.

A situação se modifica com um telefonema repentino, da Argentina, que encomenda a eles três mil módulos basculantes, com pagamento adiantado de metade do valor. Isso gera a possibilidade de criar uma cooperativa.

A sequência imediatamente posterior ao telefonema da Argentina rompe a representação realista do filme, ao inserir um número musical dirigido pelo militante italiano. O tom do musical é triunfante e o único momento de alegria efetiva do conjunto dos trabalhadores. O supervisor questiona a falta de sentido da cantoria, mas os outros lembram que “eles estão a fazer nada”, e, com a encomenda, é preciso escutar os ruídos das “máquinas que estão a chamar”. Cantam que, do papel até as chapas, “temos o gigante nas mãos” e são a “cabeça do gigante que temos nas mãos”. A autogestão é encenada como vitória.

Diante da perspectiva realista de voltar a produzir, surgem outras questões, como a necessidade, ou não, de especialistas em gestão, financiamento bancário para compra de máquinas, avaliação do passivo da empresa. Alguns querem desistir, afirmando que em Portugal nenhuma fábrica de autogestão, desde 1974, escapou da quebra.

Mas a isso Rui responde que eles próprios farão a experiência, aqui e agora; que a oportunidade se abriu. Outros querem levar adiante a proposta argentina, mas avaliando sua viabilidade legal. É o militante italiano quem convence que a proposta da Argentina permite experimentar a autogestão, criando uma nova fábrica. Essa, diz ele, é uma resposta política, sobretudo à esquerda europeia que, nesses anos, não deu nenhuma resposta à crise econômico-política.

Discussões continuam a respeito da nova organização da fábrica, referentes agora à administração do dinheiro, da contratação de um engenheiro de produção, da definição dos salários de profissionais especializados. A discussão, acalorada, não chega a consenso. Frustrado com a dificuldade para chegar a decisões nessa primeira assembleia de autogestão, Zé se retira da reunião, ofendendo o militante italiano, que o segue. Zé o confronta por não deixar claro aos operários que fora ele quem havia contatado a empresa argentina onde atuara. A conversa entre eles – rumo ao Tejo, num cenário tomado por ruínas de fábricas – marca as diferenças entre o homem comum e a militância dos intelectuais.

Se o centro do filme mostra a dificuldade de obter consenso entre os trabalhadores, ressalta-se que estão unidos por um anseio comum – contra o desemprego e a insegurança que produz.[viii] É esse anseio que impulsiona as ações das quais emerge uma dimensão política para a luta, que pode ultrapassar a finalidade imediata de manter os postos de trabalho. Apesar das incertezas, a cooperativa será a solução adotada por eles.

Em meio às discussões dos trabalhadores, que decidem como organizar a ocupação e mesmo antes da ideia da cooperativa, apresenta-se a cena do debate entre Anselm Jappe, o militante italiano (Daniele Incalcaterra), Roger Claustre (intelectual francês que se desterrou em Portugal nos anos 1970) e intelectuais portugueses (Matilde Gago da Silva, Isabel do Carmo, Toni, Sara Pinto), a partir da situação da Fortileva. A discussão parece ser externa ao que pensam os operários que provavelmente nem sabem dela.

Para Jappe, o discurso da autogestão pode ser uma armadilha, e é a partir de suas ideias que o debate se amplia, sem, porém, obter consenso. As falas de Anselm Jappe alinham-se às análises de Robert Kurz.[ix] O capitalismo existe para criar mais-valor, possível apenas como parte do valor criado pelo trabalho vivo. Qualquer evolução tecnológica tende a substituir a força de trabalho vivo pelas máquinas, que não criam valor. Nas últimas décadas isso tomou proporções gigantescas, e essa é a contradição de base da qual não saímos. É preciso, para Jappe, ultrapassar a ideia de que o capitalismo é o domínio de uma classe sobre outra para seu próprio lucro.

Isso é apenas um primeiro nível. Por trás, há um sistema totalmente irracional, baseado na transformação de todo trabalho humano em simples desgaste de energia humana sem qualquer relação com seu conteúdo. Por isso, Jappe, que apoia a autogestão, não a considera suficientemente radical, uma vez que os trabalhadores terão de entrar na competição, terão de produzir mais-valor. Embora a autogestão possa ser útil na imediatez da sobrevivência deles, irá obrigá-los a aplicar, contra eles mesmos, as leis do mercado. O sistema, diz ele, está colapsando lentamente de maneira catastrófica, e sua autodestruição está levando ao aumento da barbarização. Se as pessoas querem dinheiro e trabalho – e têm razão porque é nisso que se baseia o princípio da vida social – e se já não há trabalho nem dinheiro, é preciso criar alternativas à barbarização.

Os intelectuais que participam do debate questionam as concepções de Anselm Jappe. Toni afirma a luta de classes como forma de enfrentar o capitalismo, insistindo numa visão da esquerda tradicional. Para ele, lutas alternativas, como defesa do meio ambiente ou da igualdade de gênero, podem perfeitamente ser integradas ao sistema. Só ao se abolir a exploração de uma classe sobre outra o capitalismo seria derrotado. Jappe retruca: no limite, pode haver capitalismo sem capitalistas.

Outra intelectual defende a cooperativa, não como fim em si mesmo, mas como uma possibilidade efetiva de aprendizagem política do trabalhador. Diante da ameaça da perda do trabalho, e em nome da sobrevivência, ele pode continuar a fabricar mercadorias, e, resolvido o problema premente, poderia começar a perguntar-se o porquê de fazê-lo e talvez contestasse o modo de exploração capitalista e da produção de mais-valor.

Já o italiano retoma o exemplo da Fasinpa e conta como os operários não queriam cooperativa, porque isso significava tornarem-se patrões de si mesmos. Não queriam dividir igualmente os lucros. Mas não se explicita o que desejavam e realizaram esses operários[x]. De algum modo, no entanto, sua fala pode alinhar-se com a ideia de criar alternativas contra a barbarização provocada pelo colapso do sistema: uma fábrica gerida pelos próprios trabalhadores não precisaria se limitar a produzir mais-valor, competir no mercado anônimo governado pelos imperativos do dinheiro, burlar as restrições às questões ecológicas e não se importar absolutamente com o sistema como um todo.

A reunião, assim, expõe pontos de vista que, convergentes no apoio ao movimento da Fortileva, também não é consensual e indica o esforço de buscar alternativas à situação contemporânea, sem aderir acriticamente a soluções tradicionais. Os intelectuais pensam nos limites da autogestão, em como essa luta não significa de imediato transformações do sistema. Já os trabalhadores da Fortileva adotam a cooperativa como a única forma de que dispõem para a defesa do trabalho; a ruptura antissistêmica não está no horizonte deles; seu anseio é pela continuidade do que entendem ser sua forma de sobrevivência através do trabalho tal como o conhecem, pois, sem ele, só lhes restaria a miséria.

É esse confronto entre teoria antissistêmica e a prática pela defesa da sobrevivência que se recoloca nas cenas finais de A fábrica de nada. O musical que rompe a representação realista, com encenação e coreografia triunfantes são construídas pelo militante italiano, assim incitando a autoconfiança dos trabalhadores que parecem estar de fato entusiasmados com a perspectiva aberta com a encomenda. Como não há câmera em cena, a “direção” do italiano pode ser compreendida como metáfora de como foi ele quem deu novo direcionamento ao movimento dos trabalhadores, já que é o responsável pelo contato com a fábrica argentina. Para ele, a cooperativa pode contribuir para a luta antissistêmica.

No entanto, a perspectiva para a mudança de rumo das ações é aberta por ele sem consultar os operários. A direção política que julga ser a acertada e que imprime ao movimento é a peripécia decisiva criada por ele. E é justamente isso que Zé não aceita.

Tendo percebido a intervenção do italiano, Zé questiona por que ele não havia explicado aos outros que contatara a fábrica argentina. Em sua compreensão, o italiano quer valer-se da experiência real deles como referência para outros militantes na luta pela transformação social: “Vamos ser os personagens de teu musical neorrealista? Para mostrar lá para os teus amiguinhos em França? […] Ninguém aqui quer gerir uma fábrica. Precisamos de alguma coisa estável, ter dinheiro para comer, para pagar as contas, a escola dos putos. Ninguém aqui vai ser o sujeito histórico que vai derrubar o capitalismo. […] Nós somos o capitalismo. […] O discurso da esquerda é a merda mais grande que existe. […] Se queres fazer uma divisão no mundo de uns contra os outros, não é entre esquerda e direita. É de um lado os que estão de acordo com esse mundo, que aceitam isso tudo, e do outro os que estão prontos a abdicar, do conforto, dos telemóveis, das viagens à Lua, dos tupperwares. E a notícia triste que tenho para ti é que ninguém está disposto a abdicar disso. Ninguém está desse lado. E quanto menos recursos as pessoas têm, mais querem vir para o outro lado, o mais depressa possível”.

Na revolta de Zé contra o que considera estratégias do militante italiano, talvez se apreenda algo do ressentimento contra uma esquerda que, em sua visão, quer atribuir aos trabalhadores um papel político revolucionário sem levar em conta a situação deles e seus desejos; aderidos ao sistema da exploração do mais-valor, por razões de sobrevivência, querem dele participar como consumidores. Na fala de Zé, está suposto que superar a alienação seria uma questão individual e, por isso mesmo, impossível (“ninguém”, diz ele, quer romper com isso).

Zé parece não entender que a possibilidade de ruptura antissistêmica não é resultado de vontades ou atos individuais,[xi] nem resultado de um “discurso de esquerda” (tradicional). A prática em que ele se insere – na luta pelo posto de trabalho que resulta na decisão pela autogestão – parece-lhe não apontar para nada diverso do que já existe. De alguma forma, Zé confirma o que Jappe analisava[xii]. Zé não vislumbra nenhuma possibilidade fora do universo do trabalho tal como é concebido no sistema produtor e consumidor de mercadorias, mesmo vivendo o sofrimento que dele decorre.

De fato, a sequência da conversa entre Zé e o militante vai confirmar isso. O italiano lhe pergunta: “Então o que resta? A procura da felicidade? Nisso acreditas? No amor, na boa comida, preocupar-se com um de nós? nossa família?” Zé não responde. Continuam a caminhar e chegam às margens do Tejo, num cenário ruinoso de fábricas abandonadas. Zé grita: “Mundo, fizeste sempre tanto mal. Mas nós te amamos”.

O italiano inicia um jogo verbal de livres associações, e enumera substantivos abstratos para criar a imagem de uma vida mais plena (“luz, sombra, calor; alegria, tristeza, amizade, esperança”); Zé retruca com verbos (“nasces, cresces, fodes, trabalhas, morres”) que naturalizam o processo vital identificando-o à subsunção ao sistema capitalista. Em outro jogo, aos substantivos do italiano (“pão e vinho”), indicadores, na simbologia cristã, de uma vida em que a terra e o trabalho humano se aliam, Zé responde com “salsichas, leite, cabras, vacas, porcos, ratos”, que indiciam uma vida fora da cidade, em que nem tudo é aprazível. O italiano diz “doença, cura”; Zé retruca com “morte, imortalidade, ressurreição”.

Zé não se dá conta de que seus desejos e angústias são resultado de relações sociais? Ou não tem esperança alguma de transformação? Para ele, “uma aventura coletiva? agora? Nesse espaço-tempo? Ao fim de tudo, algo se vê?”. Para Zé, as relações sociais permanecem como algo oculto, e só no plano sobrenatural haveria vida plena (“ressurreição”).

No caminho de volta para casa, Zé tem de deixar a moto na estrada pois ela está sem gasolina (são meses sem salário)[xiii]. Espera o ônibus. No dia seguinte, pela manhã, entra na fábrica e bate o ponto.

O filme se encerra com um canto em defesa da resistência em tempos adversos (“Nem o voo / Do milhano / Ao vento leste / Nem a rota / Da gaivota / Ao vento norte / Nem toda / A força do pano / Todo o ano / Quebra a proa / Do mais forte / Nem a morte”[xiv]) mas o que fica ressoando nos nossos ouvidos é não apenas a confiança da vitória dos oprimidos, mas a voz que, em off, ainda no início de A fábrica de nada, apontava a necessidade de a luta antissistêmica exigir novos caminhos na contemporaneidade: “A crise presente, permanente e omnilateral, já não é a crise clássica, o momento decisivo. Pelo contrário, ela é um final sem fim, apocalipse sustentável, suspensão indefinida, diferimento eficaz do afundamento coletivo e, por tudo isso, estado de exceção permanente”[xv].

No filme, embora seu ponto de vista não se defina dogmaticamente, parece haver afinidades com a crítica do valor, do grupo em torno de Robert Kurz, mas também ao mesmo tempo – e de certa forma paradoxalmente – a defesa da experiência vivida pelo proletariado em luta pela sobrevivência. Para que a luta avance, os trabalhadores têm de viver e descobrir, na prática, se é possível mudar o sentido do trabalho, sem reproduzir a lógica da produção de mercadorias e de mais- valor (como se tentou, de algum modo, na Fasinpa). A construção da cooperativa é uma possibilidade aberta na luta, e seus resultados não podem ser determinados aprioristicamente. Mas o filme não se abre para os desdobramentos da iniciativa.

Ainda que o ponto de vista do filme seja ambíguo, o que nele se põe em cena são os enfrentamentos dos trabalhadores diante da crise que, vivida na fábrica, é resultado de uma crise mundial do sistema de produção capitalista. Esse é o centro em torno do qual orbitam as discussões das tendências mais avançadas da esquerda contemporânea. O abismo entre teoria de esquerda avançada e situação objetiva da resistência dos trabalhadores ainda nos assombra.

Antes do letreiro que homenageia esses ex-operários que se organizam em cooperativa na fábrica autogerida por eles, aparece a entrada no trabalho. Nas expressões das personagens, nada parece ter se alterado na rotina alienante: bater o ponto, ir para a máquina, produzir. Não há alegria em seus rostos.[xvi]

*Edu Teruki Otsuka é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor de Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (Ateliê).

*Ivone Daré Rabello é professora sênior do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autora, entre outros livros, de Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa (Nankim).

 

Referência


A fábrica de nada
Portugal, 2017, 117 minutos
Direção: Pedro Pinho
Roteiro: Pedro Pinho, Luisa Homem, Leonor Noivo, Tiago Hespanha.
Elenco: Carla Galvão, Dinis Gomes, Américo Silva, José Vargas, Daniele Incalcaterra, Anselm Jappe, Matilde Gago da Silva, Isabel do Carmo, Toni, Sara Pinto.

 

Notas


[i] Numa das cenas do filme, o militante radical na década de 1970, pai de um dos personagens (Zé) que ocupa a fábrica, leva-o para desenterrar armas escondidas desde a Revolução dos Cravos (de 1974). Quando o filho as vê lhe diz, indignado: “O que queres que eu faça com uma metralhadora que está aqui enterrada há quarenta anos?”. A cena, além de apresentar a militância revolucionária dos velhos combatentes que contrasta com a visão política dos trabalhadores contemporâneos, revela que a ação é ambientada por volta de 2014.

[ii] A personagem é uma brasileira, cuja estratégia, quando ela aparece na manhã seguinte à realocação das máquinas, é bem conhecida nossa: a cordialidade, que mescla o público e o privado. Na sua face afável, a diretora pergunta a um operário sobre sua saúde; a uma outra, sobre o concerto da filha. Só depois é que anuncia a decisão da administração: haverá uma reorganização da empresa, e os operários compreendem que isso significa demissões. No conflito verbal que se inicia, aparece a face violenta da cordialidade: a personagem ameaça chamar a polícia se eles não saírem da fábrica. Como se vê, a cordialidade, que já foi considerada especificidade brasileira, se mostra constitutiva do capitalismo enquanto tal e se agrava na situação contemporânea.

[iii] Bóris (Bóris Martins Nunes), um dos operários que aceita a decisão da empresa, parece desacreditar das promessas da sociedade liberal. Diz ele a Zé: “Vou embora. Estou decidido. […] Estou cansado disso. No próximo ano, estou na Ásia. Estou a curtir, no Laos. Vou aproveitar agora. O que estou aqui a fazer? Pagar aluguel, vir trabalhar todos os dias, estar aqui. E tu, o que vais fazer? Vais ficar aqui à espera?”. A ruptura com o princípio da segurança pelo trabalho e com a crença na acumulação parece sinalizar a trajetória de parcela de uma geração, que abandona a ideia de sucesso compreendido como carreira segura e estável. Essa atitude individual relaciona-se à lógica da flexibilização do trabalho. A desvantagem da insegurança se torna uma vantagem ilusória de viver de modo supostamente livre, “curtindo”.

[iv] Numa das cenas, um operário, já com 50 anos, relata que Póvoa, 20 anos antes, oferecia mais de 40.000 postos de trabalho. Agora, não há investimentos. Só quem poderia fazer algo, segundo o depoimento de um outro, são “eles”, se investissem em pontes, aeroportos, refinaria nova. O primeiro, que trabalha há mais de 31 anos, pagando contribuição ao Estado, só poderá se aposentar com 67 anos. Faltam 17 anos para isso, e, diz ele, mas aí “já morri há alguns vinte”. Importante ressaltar que nessa, como em outras cenas, o filme incorpora depoimentos de participantes do elenco, constituído em sua maioria de operários, não-atores, que contam situações por eles vividas. O enredo ficcional, assim, vale-se de elementos documentais, para, neste filme específico, dar testemunho da situação histórico-social dos trabalhadores.

[v] As indenizações oscilam de 5 mil a 37 mil euros. Hermínio (Hermínio Amaro), o operário com mais tempo de atuação na fábrica (32 anos), recebe a oferta de indenização de 123 mil euros. Ao saberem disso, os outros o questionam por que não havia dito isso ao grupo, supondo, assim, que ele aceitará a oferta. muito maior que a dos companheiros. Irritado, ele afirma enfaticamente que não quer o dinheiro; quer manter seu emprego.

[vi] Nesse sentido, seria interessante confrontar A fábrica de nada com Em guerra (2018, direção de Sthéphane Brizé), em que o operariado é conduzido por Laurent Amedeo (Vincent Lindon), liderança da CGT, ainda que encontre a oposição de dois outros sindicatos, SIPI (Sindicato Independente da Indústria Perrin) e CFTC (Confederação Francesa de Trabalhadores Cristãos), ambos conservadores. No filme de Brizé, a luta dos 1100 operários da grande empresa é encenada à maneira da esquerda tradicional (piquetes, reportagens televisivas, manifestações massivas). No entanto, as forças dissidentes e retrógradas do operariado bem como, especialmente, a inoperância do Tribunal Trabalhista no julgamento do descumprimento das leis pela Perrain (havia sido feito um acordo de não demissão dos trabalhadores desde que aceitassem a redução dos salários) e a pusilanimidade do Estado diante da empresa multinacional, acabam por revelar que as estratégias conhecidas da greve comandada por sindicatos não levam a resultados favoráveis à classe operária, no quadro do capital internacional versus lutas localizadas. No desfecho, e à maneira tradicional da criação de mitos de esquerda (a que o filme adere), Laurent Amedeo (sindicalista da CGT) imola-se e se torna o herói sacrificial da luta fracassada.

[vii] Na vida real, Daniele Incalcaterra dirigiu o documentário Fasinpat – Fábrica sin patrón, de 2014, sobre a ocupação da antiga Fábrica Zanon, em Neuquén, Argentina. Os empreendimentos de Zanon foram alavancados pela ditadura militar argentina (1979) e por Carlos Menem (de 1989 a 1999). A fábrica quebra em 2001, com dívidas e sem pagamento aos funcionários. Os trabalhadores ocuparam a fábrica em 2001 e começam a produzir em março de 2002. Com o processo impetrado por Zanon para reaver a posse da fábrica, a Justiça deu ganho de causa aos operários. Até hoje a Fasinpat é gerida por eles.

[viii] Desse ponto de vista, uma figura lateral ao enredo central é significativa. Carla (Carla Galvão), a mulher de Zé, é uma brasileira que, como tantas outras, foi para a Europa para buscar melhorar as condições de vida. Em Portugal, ela exerce funções subalternas e provavelmente terceirizadas (manicure, camareira). Quando decide retornar, em 2014, sua união com Zé está em crise, Portugal está em crise. A ilusão de voltar ao país de origem parece motivada pela situação econômica favorável do Brasil de Dilma Rousseff, num momento em que a taxa oficial de desemprego era a menor desde 2012.

[ix] Robert Kurz (1943 -2012) reinterpretou a obra de Marx, numa vertente denominada Crítica do valor. Analisou a crise da modernização. Participou do grupo e da revista Krisis. É um dos autores do “Manifesto contra o trabalho” (em 1999). Jappe desenvolve os trabalhos do grupo (desde As aventuras da mercadoria – para uma nova crítica do valor). Com a cisão do grupo Krisis, em 2004, Robert Kurz, Roswitha Scholz e Claus Peter Ortlieb criam um novo grupo, em torno da revista EXIT! – Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria. Sobre O colapso da modernização, de sua autoria, ver “O livro audacioso de Robert Kurz”, de Roberto Schwarz (in Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 182-187).

[x] Na realidade, a Fasinpa passou a atuar junto com a comunidade. Segundo Henrique T. Novaes, em “De Neuquén para o mundo: breve história dos bravos lutadores da Fasinpat Zanón” (Passapalavra, 4/12/2009), os cooperados montaram um centro médico, doaram azulejos a hospitais próximos da fábrica e a trabalhadores que perderam suas casas, utilizaram espaços da fábrica para darem aulas, iniciaram uma política de contratação de mulheres. As iniciativas faziam frente às políticas neoliberais. Contaram com a ajuda de estudantes para arrecadação de fundos e restauração das máquinas, otimização da qualidade da cerâmica e reformulação do processo de trabalho, inclusive com rotatividade dos cargos estratégicos. Em vez de lucros, a Fasinpat volta-se à produção de valores de uso, vínculos comunitários, unificação das lutas dos trabalhadores, buscando também articulá-las às dos desempregados.

[xi] Contrariamente a isso, quando Jappe alerta para a barbarização em curso na contemporaneidade, pergunta-se como as pessoas vão reagir a ela. Entrevê como possíveis as micro-decisões coletivas que criam laços de solidariedade e de ajuda mútua, para além das reações individuais.

[xii] Na reunião com intelectuais, Jappe afirma que “há pessoas cujas vidas estão arraigadas em uma concepção de felicidade e do sentido da vida que está completamente dominada pelo dinheiro, o trabalho, lazer, férias, consumismo etc […] Os indivíduos, o que eles querem? Querem dinheiro e trabalho. E eles têm razão pois os princípios da vida social estão fundamentados nisso. Eles decidirão que o que mais querem é dinheiro e uma garagem em suas casas. Lutarão por isso”. Para Jappe, é preciso sair desse sistema.

[xiii] Não é apenas a vida material que fica afetada pelos meses sem salário. Sua mulher e o filho dela abandonam a casa, pois Zé, durante todo o período da ação na fábrica, mostra-se alheio ao que ela deseja dele. A dimensão afetiva, assim, também é representada como tensão entre luta política e vida privada.

[xiv] A canção “Já o tempo se habitua”, de que se cita apenas um trecho, é de autoria de Zeca Afonso (1929-1987), autor também de Grândola, Vila Morena, que foi utilizada pelas Movimento das Forças Armadas portuguesas para confirmar que a Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974) estava em marcha.

[xv] Cf. Comitê Invisível, Aos nossos amigos. S.l.: Edições Antipáticas, 2015, p. 20.

[xvi] Este texto retoma parcialmente discussões realizadas no grupo “Formas culturais e sociais contemporâneas”, a cujos membros agradecemos pelas contribuições.

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