Desconstrução, autoafirmação e redes sociais

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por Lucas Machado*

As mídias sociais só podem ser uma ferramenta extremamente tensa e paradoxal de desconstrução: elas giram em torno da aparência e do querer parecer

Não existe nesse mundo absolutamente ninguém desconstruído. Só existe desconstrução. E não há nada menos “desconstruído” do que, em algum momento, você se achar “o” desconstruído, como se esse fosse um processo que pode chegar a um fim. Por isso também, não há nada menos “desconstruído” do que querer passar a aparência de ser desconstruído. Precisamente porque a aparência se apoia em uma ideia de imediatez e fixidez – se quero transmitir a aparência de desconstruído, quero parecer imediata e inteiramente assim. Mas isso, justamente, contradiz a própria ideia da desconstrução como um processo, como algo que exige ir além do que somos ou do que parecemos ser imediatamente e refletirmos criticamente sobre isso.

É por isso que as mídias sociais só podem ser uma ferramenta extremamente tensa e paradoxal de desconstrução: elas giram em torno da aparência e do querer parecer. Mas a desconstrução exige irmos além da aparência, nos postarmos criticamente em relação a ela. Por isso, a desconstrução, nas mídias sociais, se transforma e se inverte, não com pouca frequência – de fato, talvez mesmo via de regra – em ferramenta de autoafirmação. A desconstrução é instrumentalizada, cooptada precisamente pelo mecanismo de autoafirmação que ela deveria colocar em xeque. Ela se solidifica na “aparência do desconstruído”, que nos esforçamos, então, para transmitir e preservar a todo custo.

Se é assim, devemos nos perguntar: será que o melhor meio de desconstruirmos a nós mesmos, e de propormos a desconstrução aos outros, é pelas mídias sociais – pelo menos na forma com que as utilizamos atualmente? Será que não devemos buscar outros meios, para não transformar a desconstrução em autopromoção? De fato, me parece importante lembrar, aqui, o papel que o silêncio e o recolhimento têm nesse processo. Para podermos realmente refletir sobre quem somos, temos de sair do burburinho das redes sociais, da preocupação constante em se afirmar e se posicionar. A exigência de expressarmos apenas opiniões “certas”, de parecermos sempre certos e, por isso, termos de nos defender a todo custo, impede, justamente, a reflexão sincera sobre nossas opiniões. Por que, então, não deixar um pouco de falar, para poder refletir em silêncio?

É preciso encontrar outros espaços de crítica e reflexão além daqueles que as nossas mídias sociais atuais, focadas na aparência e na autopromoção, podem fornecer. E, talvez, sobretudo, encontrar o espaço dentro de nós mesmos em que podemos nos questionar livremente, sem a preocupação com a aparência que esse questionamento produzirá.

Isso não quer dizer que não devamos usar de modo algum as redes sociais. Apenas, que devemos, em primeiro lugar, não apenas não tratá-las como a ferramenta privilegiada de nossa desconstrução, mas também, em segundo lugar, de alguma maneira, enquanto nos falta outras redes ou outros meios mais apropriados, subverter os seus usos. Em outras palavras: se as mídias sociais são pensadas para serem ferramentas de autopromoção e autoafirmação, devemos subvertê-las para transformá-las, contra a sua intenção originária, em ferramentas de abertura ao outro e de criação de espaços comuns de reflexão.

Isso significa, a meu ver, em primeiro lugar, parar de compartilhar simplesmente opiniões (quer as minhas diretamente, quer as de outros, que expressem indiretamente as minhas), para compartilhar debates, livros, artigos, filmes, enfim, *referências*, e não *opiniões*.

Isso não quer dizer, é importante notar, que deve ser banido todo o espaço para expressão da própria opinião, ou mesmo de autopromoção. O que deve mudar não é a presença ou não desses elementos em mídias sociais, mas sim o foco neles para o foco no debate em si. Façamos do foco das mídias sociais não o Eu, não a autoafirmação e a autopromoção, mas sim o debate, o diálogo, a reflexão a partir de referências, que permite criar o espaço comum com o outro.

Essa seria a verdadeira subversão das mídias sociais. E é ela que, acredito, deveríamos fazer, enquanto não tivermos à nossa disposição outras mídias, pensadas e arquitetadas com uma outra finalidade do que, justamente, a finalidade da autopromoção. Mídias que, acredito, são inteiramente possíveis de serem criadas, uma vez que compreendamos a importância e centralidade delas para reconfigurar o espaço atual de nossas relações sociais e de nossos modos de nos relacionarmos com o outro e com nós mesmos.

*Lucas Machado é doutor em filosofia pela USP

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES