Por EDU TERUKI OTSUKA & IVONE DARÉ RABELLO*
Considerações sobre o romance de Itamar Vieira Júnior
1.
Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, um escritor pouco conhecido até 2018,[i] recebeu consagração com os Prêmios Leya (em 2018) e Jabuti (em 2020). Desde as primeiras leituras, a crítica e o público o acolheram com entusiasmo. O sucesso editorial se deve a razões diversas: o romance suscita a discussão sobre questões identitárias (seja das comunidades quilombolas e do valor cultural das crenças ancestrais das comunidades tradicionais, seja do feminismo, pela condução da narrativa pelas vozes femininas negras historicamente silenciadas que assumem o papel de recuperar a memória da comunidade); reelabora a temática da literatura regional, com alto grau de estilização de linguagem que mescla o vocabulário elevado ao termo local,[ii] retoma a temática da terra e narra as atrocidades cometidas contra os trabalhadores (descendentes de escravos), bem como a luta por direitos e transformações sociais empreendida por membros da comunidade de Água Negra, o que sugere a defesa dos direitos humanos.
Embora todos esses traços estejam presentes no romance, ainda está por ser feito o estudo da forma de Torto arado como resultado de uma leitura sobre o processo histórico-social brasileiro e o que se apresenta como imagem de nosso presente. Falta investigar na configuração formal o tensionamento entre as concepções autorais (que se depreendem do romance) e o que a figuração literária revela sobre aspectos da imaginação político-social atual – para além mesmo da perspectiva de Itamar Vieira Júnior.
No plano temático, a recepção favorável valoriza, no romance, a retomada da história da escravidão e da transformação do escravo em trabalhador semi-servil, sem salário e outros direitos mínimos, e da luta de parcelas dessa população para conquistar direitos. Com isso, o romance passa a ser valorizado por ser instrumento estético-político para a denúncia das formas de trabalho análogas à escravidão no Brasil de hoje, bem como para a reivindicação do reconhecimento, por parte do Estado, dessas comunidades tradicionais enquanto sujeitos de direito.[iii]
O romance abarca um arco histórico amplo que vai dos tempos da escravidão, rememorados pelas personagens, aos dias de hoje, estabelecendo continuidades e diferenças nos mecanismos de opressão, esta sempre presente. A narração por vezes assume certa tonalidade didática, que não parece ter sido comentada pela crítica. É certo que o enredo procura dar legitimidade a esse tom por razões internas, pois parte dos quilombolas desconhece sua própria história e identidade.[iv] Assim, as explicações sobre a história da origem dessa população quando narradas por Belonísia (na II Parte do romance) se integram à rememoração do que aprendera com Zeca Chapéu Grande e do que Bibiana e Severo ensinaram aos moradores, de modo que não soa artificial.
Mas, na III Parte do romance, sob a voz de Santa Rita Pescadeira, a história da escravidão é repassada como testemunho da encantada a respeito das brutalidades contra o povo negro e sobretudo contra as mulheres (cf. p. 207). Aqui, o autor parece valer-se de um artifício, quando a voz narrativa se dirige implicitamente a um leitor específico (o público bem pensante, relativamente esclarecido sobre a história brasileira, que aspira a um Estado de Direito). Esses informes avulsos mostram que Torto arado procura, ainda uma vez, “revelar o Brasil aos brasileiros” (letrados, urbanos, civilizados), o que havia sido a vocação do romance desde o século XIX. No entanto, mostrar a permanência das iniquidades “coloniais” num Brasil supostamente moderno (o “Brasil dolorosamente encalhado no próprio passado escravista”, como diz a 4ª capa da edição da Todavia) é, para certo círculo de leitores, um reconhecimento (e não “revelação”) daquilo que a teoria social vem investigando há décadas.
Isso porque hoje se rotinizaram as explicações sobre a permanência do atraso no moderno, seja por via de certa leitura da tradição crítica brasileira, seja por alguma assimilação de teorias internacionais (especialmente sobre o colonialismo). Isso não significa que o que essas teorias afirmam deixou de ter lastro na realidade brasileira, mas as expectativas a que estavam atreladas deixaram de ser plausíveis: o futuro não está no progresso com incremento tecnológico-industrial e urbanização, nem na organização e mobilização tradicional da classe trabalhadora, tampouco na universalização dos direitos pelo Estado capitalista.[v]
Desse ponto de vista, o romance apresenta elementos que indiciam o travamento da universalização dos direitos pela ação do Estado, com a manutenção dos mecanismos legais e para-legais para impedir a atuação de lideranças combativas.[vi] Talvez assim se possa entender por que Torto arado vale-se da resolução mágica com a vingança conduzida pela encantada. Tal solução, a sum só tempo, aponta a insuficiência das formas tradicionais de luta e funciona como impulso para a invenção de novas formas que a imaginação literária figura em seus próprios termos. Essa a novidade de Torto arado, como tentaremos demonstrar.
O vínculo do presente com o passado histórico tal como interpretado pela tradição crítica brasileira aparece refratado na história da família de Bibiana e Belonísia. O pai, José Alcino, o Zeca Chapéu Grande, é descendente de escravos e ex-escravos que são arregimentados por fazendeiros em condições miseráveis: vivendo amontoados em barracões, sem direito a ter casa ou a plantar roça (p. 41). Donana, a avó das irmãs, nasce e vive na Fazenda Caxangá, num momento em que os trabalhadores já podem construir suas casas de barro. Zeca Chapéu Grande, um de seus onze filhos, ainda em Caxangá, enlouquece ou é “encantado”, como contam as duas versões de sua indisposição para o trabalho e do seu desaparecimento. Ele vaga pela mata e, quando encontra a fazenda Água Negra, da família Peixoto, “pede morada”, oferecendo trabalho em troca de pouso e de poder “botar roça” para o próprio sustento (p. 185). Consegue ali se estabelecer, formar família e buscar a mãe. Com Salustiana, sua mulher, tem as filhas Bibiana, Belonísia, Domingas, e o filho Zezé.
As condições de vida dos trabalhadores de Água Negra permanecem as mesmas do tempo em que Zeca nasceu, por volta de 1918, e assim se mantêm por longo tempo (pelo menos até a década de 1980). A mentalidade servil de Zeca e dos demais trabalhadores sequer põe em causa as condições que lhes são impingidas: as casas têm de ser de barro (jamais de alvenaria, pois isso, para os patrões, poderia representar o risco de demarcar o tempo de presença das famílias na terra e assim dar-lhes o direito de usucapião, p. 41), e plantar roça só é permitido para uso próprio, embora por vezes o produto da horta seja levado pelo patrão e pelo gerente da fazenda, sem que os trabalhadores possam impedir a pilhagem ou contra ela se indispor, pois a “terra é deles” (p. 45).
Durante muitos anos, a vida em Água Negra não é inteiramente atravessada pela mercadoria. A comunidade vive apenas do que produz para ela mesma na roça de onde tira os meios de sobrevivência, ou com o que a natureza lhe dá, peixes e frutos. Sentem-se satisfeitos com a possibilidade da subsistência “concedida” pelos donos da terra, e não parecem ter aspirações para além disso; o vínculo salarial não está sequer colocado como possibilidade, numa região isolada, relativamente distante da cidade e dominada pela tradição dos coronéis.[vii] Mesmo em tempos de seca ou de cheia, quando os meios de subsistência escasseavam, “comia-se o que sobrava” (p. 246). Os moradores sabem que, fora da fazenda, o dinheiro é necessário (“Para ter qualquer coisa [na cidade] precisava de dinheiro, qualquer coisa. Na terra tinha o que colher ao alcance das mãos”, p. 246), e se percebem relativamente livres da sujeição ao dinheiro.
Com o passar dos anos, porém, a compra de mercadorias se torna um meio de diversificar a dieta restrita; por isso, e já ao tempo em que Belonísia e Bibiana são crianças, vão à feira da cidade, às escondidas (p. 45), para vender o que extraem da natureza ou fabricam (polpa de buriti e azeite de dendê) e assim obter o dinheiro de que precisam para a compra de mantimentos; quando a seca mais prolongada compromete a produção da roça, isso se torna indispensável para suprir as necessidades alimentares (p. 85).
2.
Zeca Chapéu Grande é a representação do trabalhador que aceita a condição semi-servil sem questioná-la. É respeitado por vizinhos e filhos de santo, devido a suas atividades nos jarês[viii] e como curandeiro. Seus patrões e Sutério, o gerente de Água Negra, também o respeitam, por ser trabalhador incansável, fazer tudo o que lhe é pedido, inclusive trazer novos trabalhadores para a fazenda e atenuar conflitos entre eles e entre moradores e proprietários (p. 53-54).
Os seus jarês são reconhecidos pela comunidade da fazenda e de outras regiões, bem como por brancos poderosos. Quando Zeca Chapéu Grande cura o filho do prefeito, ele exige o cumprimento da promessa de que a prefeitura contratará um professor para alfabetizar as crianças da comunidade (p. 65).
A história de Zeca é contada por suas filhas Bibiana e Belonísia, em fragmentos que vão pouco a pouco construindo sua figura de homem trabalhador que, grato pelo acolhimento na fazenda quando estava sem pouso e só tinha a oferecer sua força de trabalho, não confrontava nem permitia que ninguém afrontasse os que o haviam acolhido: os Peixoto, donos de Água Negra, que existia desde 1932, em terras obtidas pela família ao tempo das sesmarias. “Questionar o domínio das terras da fazenda seria um gesto de ingratidão” (p. 196). Com suas atitudes conciliatórias, Zeca consegue impedir “injustiças maiores que as que já existiam” (p. 196).
Essa é a vida que parece paralisada no tempo. No arco histórico do romance, o presente dá continuidade à época da escravidão nas formas do trabalho semi-servil e também na coesão fundada na sociabilidade tradicional.
Nas narrativas de Bibiana (“Fio de corte”) e de Belonísia (“Torto arado”), I e II partes do romance, a história da comunidade desde tempos pregressos, que está sendo esquecida, é recuperada em fragmentos e vai compondo a unidade da memória desse povo. Mas à continuidade da tradição vão se contrapondo as mudanças que ocorrem sobretudo a partir da década de 1980. A venda da fazenda, decorrente do desinteresse dos herdeiros e da percepção pelos Peixoto de que está havendo um avanço em relação a direitos de trabalhadores (“Os herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos não queriam continuar com a propriedade Água Negra. Os mais velhos nos conheciam, mas os mais novos nem sabiam quem éramos, embora não tivessem dúvida de que se tratava de um problema para seus negócios”, p.176), traz alterações nas condições de vida da comunidade e nas relações com o novo proprietário.
Embora a comunidade continue a morar na fazenda, os vínculos patriarcais e as relações de favor que os sustentavam são substituídos em parte por novas formas de sujeição. Salomão, o novo proprietário, de início se apresenta como benfeitor, dizendo que nada se alteraria e que nada tinha contra os negros de que ele mesmo era descendente, com orgulho (p. 210). No entanto, logo proíbe o enterro dos mortos no cemitério da comunidade, o da Viração, alegando razões ambientalistas (p. 179); para construir sua casa, porém, derruba pés de buritis e dendês, que, além de constituírem parte do bioma da região, é a fonte da produção que a comunidade vende (p. 211). Moderniza as relações de trabalho, com a instituição do regime salarial. Mas, quando Salomão instala o barracão de mantimentos, os moradores ali têm de “comprar” seus suprimentos e, assim, eles não apenas nunca recebem o salário em dinheiro como também se endividam e são obrigados a permanecer na fazenda (p. 197). As mudanças que isso traz para a comunidade são índices de um processo histórico que, dando continuidade à sujeição do trabalhador, trazem novas formas de dominação e de opressão.[ix]
3.
De maneira simbólica, a divisão do romance com a narrativa de Bibiana e a de Belonísia mostra – com alguma carga de mistério – que uma mudança começa a ocorrer na família, com a ruptura de algo. As irmãs, juntas, cometem um ato transgressor, mexendo na mala que a avó, Donana, carregava consigo há muitos anos e parecia esconder algum segredo. Descobrem uma faca com cabo de marfim e lâmina reluzente, que as encanta. Querem sentir o sabor da faca. Ambas se ferem e é Belonísia quem tem a língua amputada (o que só se esclarece nas linhas finais da I Parte)[x]. O que antes era uma fraternidade usual, com brigas e disputas infantis, torna-se quase simbiose.
“Seríamos as iguais”, diz Bibiana (p. 23), que passa a falar por Belonísia, e Belonísia se expressa através de gestos e expressões que Bibiana aprende a traduzir. A faca, então, se torna símbolo do infortúnio na família de Zeca e do mistério de um crime insabido, cometido por Donana em tempos pregressos. Horrorizada com o que aconteceu às netas, leva o “mal” para o rio (“Donana retornou com a barra da saia molhada. Disse que tinha ido à beira do rio deixar o mal por lá. Entendi por ‘mal’ a faca com cabo de marfim”, p. 25).
A união das irmãs, no entanto, começa a romper-se com a chegada do irmão de Salustiana, o tio Servó, e sua família, que se estabelecem em Água Negra como trabalhadores. Um de seus filhos, Severo, atrai a atenção das duas irmãs e se inicia um conflito entre elas[xi]. Rompendo com costumes estabelecidos, Severo deseja sair da fazenda para estudar e ter a própria terra. Bibiana relembra que “nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda” (p. 73). Já grávida dele, foge com Severo, apesar de sentir que está traindo os pais.
A ruptura da simbiose entre as irmãs, narrada nas duas primeiras partes do romance, assinala os dois caminhos que toma o enredo, os quais mostram diferentes possibilidades de atuação na comunidade de Água Negra.
Bibiana realiza um trajeto progressista, em que a educação formal (cursa supletivo e magistério na cidade) e a conscientização política a encaminham para a militância. Severo, seu mentor político, acreditava que a instrução na cidade lhe permitiria mudar de vida. Quando retorna para Água Negra, mantinha contato com “o povo que lhe ensinava as coisas, sobre a precariedade do trabalho, sobre o sofrimento do povo do campo” (p. 156)[xii]. A instrução, assim, estava articulada à sua politização.
Em Água Negra, Severo mobiliza a comunidade para criar uma Associação de Trabalhadores Rurais; Bibiana dá aulas na fazenda e, com entusiasmo, ensina às crianças a história da opressão de seu povo, os negros, desde a escravidão.
Já Belonísia, que não tem interesse pelos estudos (até porque, quando tem aulas com D. Lurdes, à época da ditadura militar, a professora, que elogiava os heróis bandeirantes e depois os militares, ensinava que o Brasil era abençoado, p. 97), segue o caminho de seu pai, mantendo vivo o saber tradicional: o cultivo da terra e o conhecimento da natureza: “Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam” (p. 99).
O silêncio a que ela havia sido condenada não a impede de tentar falar quando está só. Na primeira vez em que ela se arrisca, ainda criança, escolhe a palavra “arado”, pois se associa ao trabalho do pai, com aquele arado “troncho e velho”, como ele dizia (p. 127). Mas os sons irreconhecíveis que emite eram um “arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada”. A partir daí, só ousa falar quando está só. Nesses momentos, não se furta a dizer palavras indizíveis, “que faria[m] muitos correrem, temendo a virulência de uma língua”. As palavras carregadas de rancor “eram gritadas por minhas ancestrais, por Donana, por minha mãe, pelas avós que não conheci, e que chegavam a mim para que as repetisse com o horror de meus sons” (p. 128).
O caminho de Belonísia, assim, é guiado pelo valor dado ao trabalho com a terra, onde estão enraizadas a história de sofrimentos e as crenças ancestrais do seu povo. Sua recusa às formas “progressistas” da instrução escolar tem a contrapartida no reatamento com a memória da família e da comunidade. Esse trajeto também a conduz a atuar contra a opressão e violência masculina de seu companheiro (Tobias) e dos homens que estão à sua volta (Aparecido, o marido de Maria Cabocla que, bêbado, bate nela).
Esses dois caminhos tornam a se encontrar com o retorno de Bibiana e Severo a Água Negra. Aos poucos supera-se a distância entre as irmãs, embora os atos de uma e outra sejam diversos. Bibiana atua na formação das crianças e no apoio incondicional à militância de Severo; Belonísia, como continuadora da sabedoria paterna e como figura que, ao narrar, preserva a memória do que houve, no passado remoto e no passado próximo.
A vida e a morte de Severo são narradas por Belonísia. Rememora que ele contava aos trabalhadores que a propriedade das terras pela família Peixoto remonta à época da colonização, quando os habitantes nativos foram expulsos ou submetidos ao trabalho escravo. Nas suas falas aos moradores, Severo recompunha a história do Brasil pela perspectiva dos espoliados: [Contava] “Que chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça, porque ganhavam mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dizíamos que éramos índios. porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio” (p. 176-177).
A atuação de Severo traz mudanças na comunidade, a começar pelo fato de que ele a ensina a se reconhecer como quilombola, o que traz aos trabalhadores o sentimento de pertencer a uma identidade étnica. Em suas falas aos moradores, insiste em que eles são espoliados, que estão privados dos direitos que são reconhecidos para as comunidades tradicionais[xiii]).
Com a influência da militância de Severo junto aos moradores de Água Negra, cinde-se a ordem moral estabelecida por Zeca Chapéu Grande, para quem a atitude e as ações de Severo eram consideradas ingratidão para com aqueles que lhes haviam dado abrigo (p. 196). Zezé, irmão mais novo de Belonísia e Bibiana, acompanha Severo em seu esforço de esclarecimento e de organização dos moradores. Mas ambos não falam sobre isso com Zeca, para não desrespeitar a sua pessoa e o que ele representou, em tempos anteriores, na vida da comunidade.
4.
A mentalidade que dominara em Água Negra por décadas começa a se alterar: a subserviência vai dando lugar à consciência sobre direitos. Severo fala à comunidade que o trabalho não lhes trazia a posse de nada, senão a cova rasa no cemitério. Que o direito à indenização só era cumprido depois de muitas delongas e exigências burocráticas. Que não havia salário. Que, após a mudança dos donos da fazenda, os trabalhadores tinham de comprar os produtos em seu galpão e assim ficavam endividados (p. 196). Que a casa, de barro, tinha de ser refeita de tempos em tempos (p. 186-187). Que eles tinham o direito a casas de alvenaria.
Vários trabalhadores aderem à luta e a comunidade se move para conquistar suas reivindicações. Mas Salomão passa a ameaçar os trabalhadores engajados: “Guiavam seus animais na calada da noite para destruir nossas roças na vazante. Derrubavam cercas, e meses de trabalho viraram pasto na boca do gado. Certo dia, fomos acordados no meio da madrugada por um incêndio em nosso galinheiro. […] Outros galinheiros também foram incendiados, o que deixou claro que era uma ação organizada do fazendeiro com alguns trabalhadores” (p. 197-198). Carros de polícia já rondam a comunidade.
Nesse contexto, Severo colhe assinaturas para fundar a Associação de Trabalhadores Rurais. Quando ele e Bibiana vão se dirigir ao cartório, vários tiros ecoam: Severo é assassinado.
A morte de Severo encerra a II Parte. Na III, “Rio de sangue”, Santa Rita Pescadeira como narradora dá novo desenvolvimento à trama. O sobrenatural, que antes era um elemento da cultura de Água Negra (como aparece nos jarês ou no relato sobre a loucura de Zeca Chapéu Grande), deixa de ser apenas uma crença da comunidade[xiv] de que o olhar ilustrado poderia se distanciar – como algo próprio a esse outro, quilombola – e passa a ocupar o centro da narração. A forma do romance, portanto, assume a dimensão mágica como realidade ficcional.
A intervenção do maravilhoso e sua função na configuração de Torto arado não foram devidamente investigadas pela crítica, que tendeu a concentrar-se nos aspectos histórico-literários de Torto arado, que resgata e se filia, “de maneira própria, à tradição dos chamados romances regionalistas que durante muitos anos deram forma às reflexões sobre os caminhos e descaminhos do país”, conforme sintetiza Rodrigo Soares de Cerqueira em seu artigo “Entre a tradição e a ruptura”[xv]. Como se sabe, os romances da década de 1930 traziam para a frente da cena ficcional as mazelas do subdesenvolvimento brasileiro, marcando o que Antonio Candido chamou de “consciência catastrófica do atraso, correspondente à noção de ‘país subdesenvolvido’”[xvi].
Rodrigo Soares de Cerqueira não especifica o significado estético-político do regionalismo “da consciência catastrófica do subdesenvolvimento”, o que torna problemática a aproximação entre romances de épocas diversas. No momento histórico dos romances regionais dos anos 1930, a denúncia da miséria dá-se num quadro marcado pela expectativa então plausível de que se poderia superar o atraso e efetivar a modernidade no Brasil[xvii]. Ainda não havia, na teoria social e na imaginação literária (com exceção de Machado de Assis), a compreensão de que o atraso era constitutivo da modernidade brasileira, ou, ainda, de que o desejo de equiparação aos centros europeus não era viável no quadro da modernidade capitalista na periferia, que estruturalmente reproduz as desigualdades sociais, condenando vastos setores da população à miséria[xviii].
Ao dar representação aos quilombolas e a sua história de exploração, Torto arado retoma o intuito de mostrar a realidade aos brasileiros (da cidade), num momento histórico, porém, em que a perspectiva de superação não mais é materialmente plausível. Por isso, a perspectiva progressista incluída no romance (com a valorização da escolarização e da organização dos trabalhadores), embora permaneça como luta, não alcança realizar, no enquadramento temporal do enredo, transformações efetivas (mesmo no âmbito do que são direitos mínimos, como moradia, ou sindicalização, inviabilizados pelas forças autoritárias dos donos do poder, que continuam a atuar com as velhas e as novas formas de violência, por via da Lei, dos grupos para-legais e, mais recentemente, da religião evangélica)[xix].
Como se depreende disso, essa perspectiva progressiva (autoral) supõe a instituição do direito para todos como forma de superar iniquidades seculares. Supõe também que o Estado de Direito burguês pode ser alcançado, sem considerar o funcionamento efetivo da exploração capitalista, que o nega. Segundo essa suposição, o caminho seria o da organização tradicional dos trabalhadores (sindicato, presença de um líder, formação da população pela escola e pelas manifestações coletivas, abaixo-assinados etc.).
Mas o enredo do romance mostra que isso não é suficiente. Interrompida a luta por organização dos trabalhadores rurais, é somente com a divulgação pública dos assassinatos de Severo e de Salomão que o movimento por direitos pode ser retomado. Acompanhando o enredo, porém, não há de fato nenhuma conquista efetiva. Se isso vier a acontecer, será devido à intervenção de órgãos públicos (p. 257).
Essa perspectiva progressista, como dissemos, não é a única do romance e foi interrompida com o assassinato de Severo, que finaliza a II Parte do romance. A III Parte toma nova direção, quando, num momento em que as tradições da comunidade estão caindo em esquecimento, a encantada intervém para mudar o rumo dos acontecimentos.[xx]
É significativo o fato de a narrativa ser conduzida por Santa Rita Pescadeira, uma encantada já longe da memória de todos. Em sua primeira aparição (ainda na I Parte do romance), quando já ninguém a conhece, a encantada dissera que Bibiana “estava para correr o mundo a cavalo, animal que nossa família não tinha […] Que tudo iria mudar. […] que ‘de seu [de Bibiana] movimento virá sua força e sua derrota’” (p. 81).
O vaticínio de Santa Rita Pescadeira se cumpre. E a narrativa encaminhada por sua voz surge após a interrupção da luta política causada pela morte de Severo. Nesse momento, ela não tem mais “moradia”, pois seu cavalo (Dona Miúda) morrera e já não há casas de jarês. Sem rumo, vagando, é ela quem esclarece o mistério da faca: com ela Donana matara o próprio companheiro pois encontrara-o na cama com sua filha, Carmelita. A filha sumira no mundo. Donana guardava a faca, manchada de sangue, como símbolo de sua vingança e da perda do que lhe era querido. Mas, com o acidente com as irmãs, jogara-a no rio. Belonísia encontra a faca casualmente, na casa de Tobias, o companheiro violento com quem passara a morar. Dona de si, sem mais o temor e a subserviência a Tobias, já morto, pode dar livre curso àquilo que a mobiliza: cultiva a terra, produz e se forma nesse cultivo, retomando as lições paternas. É a figura que mantém viva a tradição.
Duas mulheres, com caminhos diversos – Bibiana e seu impulso progressista, Belonísia e seu amor ao saber tradicional –, serão os cavalos que Santa Rita Pescadeira escolhe para vingar a morte de Severo e livrar-se das atrocidades de Salomão, o mandante do crime. O sangue dos espoliados, que corre desde o passado, é vingado no corpo do proprietário.
Sob transe, cada uma das irmãs realiza o que a encantada comanda. Bibiana, durante o sono, é levada para encontrar uma enxada e cavar até construir uma cova, ou, mais precisamente, um fojo – armadilha para caçar animais ferozes, feita com um buraco profundo no chão e disfarçado com ramos e galhos. Belonísia, “a fúria que havia cruzado o tempo” (p. 261), assassina Salomão, degolando-o: “a onça […] caiu sobre a borda do fojo” (p. 261).
Para compreender o significado do assassinato de Salomão, é preciso lembrar que, embora a luta dos trabalhadores se torne mais débil após a morte de Severo[xxi], ganha novo ímpeto quando eles decidem construir suas casas de alvenaria. No entanto, o proprietário entra na Justiça com o pedido de reintegração de posse. A comunidade, disposta a enfrentar a decisão judicial, provavelmente favorável ao proprietário, mobiliza-se para o enfrentamento: “se tivesse a ordem de um juiz – eles acreditavam que era possível pela influência que Salomão tinha entre os ilustres cidadãos da região –, deitariam no chão diante de suas casas para impedir os tratores de demolir” (p. 256).
O confronto não chega a ocorrer: com o assassínio de Salomão, surgem novos problemas para a comunidade, pois todos, em especial Bibiana, são considerados suspeitos. No assassinato de Severo, os capangas e o mandante haviam saído impunes, e a versão oficial sobre os motivos de sua morte era a de que resultara de um conflito entre traficantes (p. 216 e 222). Já a morte do proprietário é investigada com base em relatos dos conflitos que Salomão criava com os trabalhadores de Água Negra e de outras fazendas de sua propriedade. Eram constantes as “discórdias com empregados e vizinhos. Por onde ele havia passado deixou um rastro de descontentamento e desejo de revide” (p. 256). Mas o inquérito fica inconcluso.
5.
No romance, parece nula a possibilidade de conquistar os direitos reivindicados no quadro da legalidade burguesa. No entanto, a mobilização da comunidade é reativada pela intervenção da encantada. A solução mágica seria indício da ineficácia da ação política nos termos tradicionais? As crenças e tradições da comunidade quilombola, que estão sendo esquecidas, podem impulsionar ações contra a iniquidade?
É Santa Rita Pescadeira que, no plano da construção do romance, revitaliza a ancestralidade não apenas como laço identitário étnico, mas sobretudo como vínculo com a tradição de opressão sofrida pelo povo negro. “Sou uma velha encantada, muito antiga, que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo, da África. Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a minha memória não permite esquecer o que sofri com muita gente, fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes” (p. 212).
Pela perspectiva autoral, a luta por direitos de trabalhadores e comunidades tradicionais colide com o Estado que defende a propriedade. Isso não significa que a luta dos trabalhadores, nos termos conhecidos, seja dispensável. Mas não basta.
Pelo foco do romance, a intervenção mágica implementa a ação de revide: Belonísia e Bibiana empreendem a tarefa do justiçamento, no transe que revela os desejos mais profundos de libertar-se da opressão ancestral na figura daquele que ameaça a comunidade em sua luta. Se essa luta fica limitada ao quadro da legalidade burguesa, com reivindicações para fazer cumprir o que está na letra da lei, não consegue fazer frente ao poder delinquente dos proprietários, que ameaçam e matam impunemente, em nome dos interesses econômicos. Torto arado, nas suas contradições, deixa entrever os limites da ação política que o enredo valoriza.
Contra tais limites, a ancestralidade e as crenças que estão presentes em todo o romance, na III Parte tornam-se ato que possibilita a continuidade da ação política dos moradores de Água Negra.
Com a morte de Salomão, a comunidade passa a ser conhecida publicamente: “Meses depois, a notícia dos assassinatos [de Salomão e Severo] trouxe funcionários de órgãos públicos, que ouviram moradores num processo de reintegração de posse. Aquela chegada foi celebrada com alívio. Tudo permanecia incerto, não havia prazos para a solução do problema, mas aquela movimentação indicava que a existência de Água Negra já era um fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser ignorados” (p. 257).
Numa direção oposta à defesa da ancestralidade que afirma a identidade para incorporar-se ao sistema, aqui ela é memória da opressão sofrida pelos quilombolas e resposta ativa ao sangue derramado há séculos, na vingança contra o opressor. Ainda que Torto arado pareça continuar a defender a perspectiva do reconhecimento legal dos direitos – sem a transformação do sistema econômico-social –, o ato bárbaro que responde à barbárie do sistema é legitimado no plano da figuração literária.
Não se trata de tomar a atuação de Santa Rita Pescadeira e as crenças ancestrais numa proposição literal de ação política. A imaginação literária que aí está pressuposta é a do reatamento da ancestralidade como força que impele à luta política, um caminho para criar perspectivas de transformação (e não apenas reconhecimento, pelo Estado, dos quilombolas como sujeitos de direito). Por isso, na imaginação literária, a violência é necessária – pois cumpre o pacto entre os oprimidos do presente e do passado.
No entanto, no romance também permanece a confiança no caminho progressista, tal como é pensado nos termos tradicionais. O novo movimento da comunidade se concentra no direito de morar. E, quase ao final do romance, Inácio – filho de Severo e Bibiana – despede-se de Água Negra porque quer preparar-se para entrar na Universidade e se tornar professor e, como o pai havia feito, participar dos movimentos de luta pela terra (p. 257)[xxii]. No momento em que Inácio parte, Bibiana e Belonísia, cada uma em seu trajeto – na escola e na terra – perdoam-se (p. 258), superando as mágoas.
Santa Rita Pescadeira talvez tenha agido pela última vez, porque se anuncia nova configuração social em Água Negra quando a comunidade poderá a vir a ser reconhecida como sujeito de direito. A memória da opressão histórica a que ela dá voz, porém, permanece viva, pelas vozes das narradoras Bibiana e Belonísia, e é fundamento que sustenta a continuidade da luta política por direitos.
A aposta de Torto arado, assim, parece consistir na conjunção da defesa do esclarecimento dos trabalhadores – que passam a ter consciência de seus direitos, condição primeira para reivindicá-los – e da memória política da tradição dos explorados, que na cultura afro-indígena tem nos encantados seus símbolos de proteção e de revolta contra a opressão. A dimensão da cultura assim atua como força que impele à transformação; ela, porém, não se reduz à afirmação estética ou identitária, antes tornando-se um sustentáculo para a luta emancipatória.
O sentido político da obra, assim, conjuga, não sem contradições, a perspectiva progressista – na organização trabalhista em reivindicações pelo cumprimento da Lei – e a força da ancestralidade como memória da opressão histórica. No entanto, a perspectiva autoral parece não levar em conta que essa congruência encontra obstáculos na violência da propriedade privada e do Estado burguês. A ancestralidade, nesse sentido, como impulso para a ação política, pode responder àquela violência não apenas como revide (mesmo que simbolicamente pretenda vingar-se de toda a história da opressão). Para direcionar a luta rumo à emancipação efetiva, seria preciso romper com a legalidade burguesa, sempre pronta a ceder aos interesses econômicos. Mas isso não parece estar no horizonte de Itamar Vieira Júnior, para quem a solução mágica propicia a busca pelo direito na justiça burguesa.
Mesmo assim, Torto arado, ao apresentar um ato que escapa à legalidade burguesa, questiona os caminhos já dados e deles se liberta para a invenção de novas formas de luta em que o sentido simbólico da tradição dos oprimidos (e não apenas dos quilombolas) possa trazer transformações sociais, para além da reivindicação de direitos no quadro do estado burguês.[xxiii]
*Edu Teruki Otsuka é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor de Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (Ateliê).
*Ivone Daré Rabello é professora sênior do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autora, entre outros livros, de Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa (Nankim).
Referência
Itamar Vieira Júnior. Torto arado. São Paulo, Todavia, 2019, 264 págs.
Notas
[i] O autor já havia publicado os livros de contos Dias, em 2012, e A oração do carrasco, em 2017 (finalista do 60.º Prêmio Jabuti de 2018).
[ii] Na discussão sobre a refuncionalização do regionalismo de 1930, é preciso diferenciar o sentido estético e político dessa retomada num quadro histórico diverso do daqueles anos. Cabe lembrar que a literatura regional de 1930 tematiza os traços “arcaicos” da sociedade brasileira, naquilo que Antonio Candido chamou de “consciência catastrófica do atraso”, num momento em que a denúncia de tais traços pressupunha a perspectiva de sua superação no plano da realidade político-social, hoje desacreditada. Além disso, para evitar o pitoresco e a tendência à visada “esclarecida” do narrador nos romances do XIX, a elaboração literária inovava também no plano da expressão, conferindo força artística ao ponto de vista e à cultura das populações espoliadas (basta lembrar apenas um exemplo: Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto). Como sabemos, na literatura do século XX, a inovação expressiva mais significativa de uma literatura que ultrapassa a classificação de “regional” é a de Guimarães Rosa. (Seguimos aqui argumentos de Antonio Candido, em “Literatura e subdesenvolvimento”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, especialmente p. 154.) No caso de Torto arado, Itamar Vieira Júnior está ancorado nas pesquisas que realizou como funcionário do INCRA e em seu doutorado (Trabalhar é tá na luta, Universidade Federal da Bahia, 2017) sobre a comunidade quilombola de Iuna (palavra tupi que significa “água negra”). Essas vivências lhe permitiram criar as vozes das narradoras com um tom em que predomina, porém, a estilização culta de sua fala – numa maneira bem diversa, se não oposta, daquela que consagrou Guimarães Rosa. Num, o ponto de vista dos habitantes do sertão se expressa por meio da estilização de seus próprios modos da fala (prosódia, vocabulário, sintaxe, figuração imagética); em Itamar Vieira Júnior, predomina a sintaxe da norma padrão, culta, que acomoda o léxico localista para expressar o ponto de vista da cultura dos quilombolas.
[iii] Por exemplo, o ensaio de Ezilda Melo, “Torto arado e o direito da mulher camponesa” (in Outras palavras, 21/1/2022, disponível em https://outraspalavras.net/poeticas/torto-arado-e-o-direito-da-mulher-camponesa/), destaca, a partir do romance, a importância da defesa dos direitos dos camponeses.
[iv] Um dos momentos de formação de autoconsciência político-social da comunidade ocorre quando Severo, já militante da causa dos trabalhadores rurais de Água Negra, associa o direito à terra à identidade quilombola (afirmada ali pela primeira vez para a comunidade). No romance, para Severo e Bibiana, a afirmação da identidade quilombola se articula com o enraizamento na terra e a luta por território: “Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossa família”, diz Severo (p. 187). O fato ficcional tem fundamento nas lutas das chamadas comunidades tradicionais desde finais da década de 1980. Cf.: Arguedas, Alberto Gutiérrez. “Identidade étnica, movimento social e lutas pelo território em comunidades quilombolas: O caso de Acauã (RN)”. GEOgraphia. Niterói: Universidade Federal Fluminense, vol.19, n. 39, jan.-abr. 2017, p. 71-83. Disponível em https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/13787.
[v] Como é sabido, o Estado de proteção social esgotou sua curta existência desde o fim dos anos 1970. No Brasil da “redemocratização”, a Constituição de 1988 incorporou reivindicações históricas, mas sempre sob a ameaça da intervenção militar (artigo 142 da Constituição: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”). Na era Lula, a gestão dos pobres combinou políticas sociais e encarceramento em massa.
[vi] Lembre-se que o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996, lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos, após o massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás.
[vii] Parte da ação de Torto arado se dá num período histórico anterior à mobilização pela demarcação dos territórios ocupados por quilombolas. Somente nos anos 1980 as comunidades quilombolas emergem na cena política brasileira, “constituindo-se como novos sujeitos coletivos e grupos étnicos, como parte de um processo mais amplo de mobilização de grupos autodenominados ‘comunidades tradicionais’. Uma das características distintivas da emergência etnopolítica quilombola é o caráter territorial das lutas […], relacionando três categorias profundamente imbricadas: identidade étnica, movimento social e lutas por afirmação territorial” (Arguedas, artigo citado).
[viii] A prática do jarê tem matriz africana, com mesclas de influências indígenas e kardecistas. Só se realiza na Chapada Diamantina.
[ix] Salomão é o proprietário autoritário, que desrespeita a história da comunidade, afirmando nunca ter havido quilombolas na região (p. 219). Ao tempo dos Peixoto, os conflitos se resolviam na própria comunidade; embora não deixe de haver abuso por parte dos poderosos, insinua-se no enredo que os tempos dos Peixoto eram melhores. Havia violência e espoliação, mas a aceitação das crenças e dos jarês, bem como o papel apaziguador de Zeca Chapéu Grande, criam relações em que se estabelecem vínculos cordiais do proprietário com a comunidade.
[x] O ferimento das meninas indicia a época em que os fatos ficcionais ocorrem. Pela primeira vez elas vão até a cidade numa Ford Rural, cuja fabricação ocorre no Brasil dos anos 1975 a 1977 (nos anos 1956 a 1975, quem fabricava a Rural era a Willys).
[xi] O conflito envolve a competição pelo homem. Bibiana conta à mãe que viu Belonísia e Severo juntos, acrescentando que eles haviam se beijado, o que era mentira. Belonísia é punida e passa a desprezar Bibiana. Severo tem de se afastar da casa de Zeca. Mas a atração entre Bibiana e Severo vence os obstáculos familiares e eles passam a se encontrar. (De passagem, note-se que a competição pelo homem se repete com Crispina e Crispiniana, filhas de Saturnino, com desdobramentos diversos.)
[xii] A trajetória política do casal remete aos movimentos de luta pela terra e por direitos que ocorreram por volta de final dos anos 1980.
[xiii] Essa fala corresponde historicamente ao que se estabeleceu como princípio na Constituição de 1988. Mesmo depois da promulgação de leis específicas (como o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, de outubro de 1988: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”), elas continuaram e continuam a ser descumpridas, daí o crescimento das lutas pelo reconhecimento de direitos, como faz Severo.
[xiv] As irmãs contam histórias que envolvem a presença dos encantados, mas deixam em aberto a interpretação sobre a veracidade da intervenção das entidades. A morte de Tobias, por exemplo, é bastante reveladora a esse respeito. Depois que ele ofende a encantada, duvidando de sua existência, ele morre (p. 138). Foi Santa Rita Pescadeira quem provocou a sua queda do cavalo? Ou isso se deveu a um acidente? Ou ainda: as curas de Zeca devem-se à ação sobrenatural ou ao seu conhecimento de ervas e raízes?
[xv] In: Revista Piauí, no. 180, set./2021, p 78- 81
[xvi] “Literatura e subdesenvolvimento”, cit., p. 142. Para o crítico, o que caracteriza autores como Asturias, Alegria, José Lins do Rego e tantos outros “é a superação do otimismo patriótico [próprio do regionalismo do século XIX] e a adoção de um tipo de pessimismo diferente do que ocorria na ficção naturalista. Enquanto este focalizava o homem pobre como elemento refratário ao progresso, eles desvendam a situação na sua complexidade, voltando-se contra as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma consequência da espoliação econômica, não do seu destino individual” [grifo do autor] (p.160).
[xvii] A referência aos clássicos da tradição crítica brasileira pode ser indicada sucintamente com a citação dos nomes de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e, de certa forma, Gilberto Freyre.
[xviii] As análises da relação indissolúvel entre atraso e modernidade no quadro da inserção do Brasil no capitalismo internacional podem ser lidas em Francisco de Oliveira, O ornitorrinco, e, do ponto de vista da elaboração literária da questão em Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. Na contemporaneidade, a chamada “brasilianização do mundo” (tal como Paulo Arantes investiga em A fratura brasileira do mundo) implica entender que a dinâmica do capitalismo não conduz (e nunca conduziu) à expansão de seus supostos potenciais civilizatórios, mas sim à miséria das populações vulneráveis, como mostram o recente desmantelamento do Estado de Direito e a desintegração das sociedades “desenvolvidas”.
[xix] Atualmente, recrudesceu a ligação dos grandes proprietários de terras com o Estado, por via das forças policiais e paramilitares. A esse recrudescimento, os movimentos sociais e culturais têm respondido com ações e produções, como Torto arado pode exemplificar, ao denunciar as condições de vida na área rural. Se hoje elas apresentam aspectos de “modernização”, que incluem a presença do dinheiro nas relações entre trabalhadores e patrões, e o acesso a conquistas modernas como eletricidade e também bens de consumo (v. p. 155, 179 e 205), mantêm-se porém sob rédea curta as reinvindicações dos trabalhadores (a construção de casas de alvenaria será contestada por Salomão). A cultura tradicional desses quilombolas também é esquecida, e na fazenda pastores evangélicos organizam cultos (p.226) que fomentam o conformismo, a que aderem vários moradores.
[xx] Nas representações das tradições culturais da comunidade, os encantados cumprem a função de fortalecê-la e ajudarem-na a superar as dificuldades vividas pela falta de acesso aos bens modernos (cura de doenças, ajuda no trabalho de parto, sabedoria ancestral na lida com a terra para que ela produza mais, relacionamento mais integrado entre homem e natureza etc.).
[xxi] Após o assassinato de Severo, difundiram-se mentiras sobre os autores e as razões do crime. Mesmo que Bibiana as denuncie e insista em dar continuidade ao trabalho político de Severo (p. 221) e mesmo que de início permaneça um desejo de vingança por parte dos trabalhadores e certa solidariedade também daqueles que não concordavam com os atos de Severo, a luta esmorece.
[xxii] Diferentemente de Inácio, há aqueles que se deixam seduzir pelas ilusões da vida urbana e mercantil, abandonando o vínculo com a terra e a comunidade: “Alguns jovens já não queriam permanecer na fazenda. Desejavam a vida na cidade. […] A vida na cidade, entre viajantes e comerciantes, era atraente” (p. 187).
[xxiii] O romance foi objeto de debate no grupo “Formas Culturais e Sociais Contemporâneas” a quem agradecemos sugestões e contribuições.