Roma, cidade aberta

Ester Grinspum (Jornal de Resenhas)
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Por ADOLFO CASAIS MONTEIRO*

Comentário sobre o filme de Roberto Rossellini.

Tem havido na evolução do cinema certos momentos em que se quebra o feitiço daquele realejo de cego sempre a tocar a mesma música. Momentos nos quais uma obra excepcional ataranta e decepciona os amadores do realejo, ao mesmo tempo em que entusiasma e conforta todos aqueles que deploram a raridade desses momentos, e que o curso normal do cinema dependa tão pouco das exigências da arte e tanto das imposições da indústria e do comércio, para não falar de outras.

De tais imposições resulta que não é a arte do filme aquilo que somos chamados a julgar, indo ao cinema, mas a competência comercial dos produtores, a sua habilidade para confeccionarem aquilo que as plateias consomem quotidianamente em doses maciças, seguindo passivamente as historietas feitas voluntária e involuntariamente para as reduzirem ao conveniente estado cataléptico.

Mas há momentos excepcionais, disse eu. São aqueles em que determinado concurso de circunstâncias faz coincidir os interesses em jogo e a vocação e as ambições artísticas daqueles que procuram fazer do cinema uma arte e não um realejo de cego. E então, como por encanto, onde só se produziam falsificações estupidificantes, começam a surgir obras de arte, em que a vacuidade dá lugar a uma expressão significativa, que vai ao encontro daquilo que a parte do público que não se deixou estupidificar continua esperando do cinema: a verdade, a poesia e a vida.

Noventa e nove por cento da produção cinematográfica é convencional; isto é: a quase totalidade dos filmes nada tem a ver com a arte, que é por essência e sempre, seja qual for a arte, seja qual for o gênero, anticonvencional. Isto é, é claro, entendendo-se por convencional aquela obra em que se procura apenas o entretenimento do público, a sua distração, desviando-o de encarar a sério a sua própria vida.

Nem se suponha pois que deve considerar-se convencional aquele gênero de filmes em que, como por exemplo Os trovadores malditos, ou o Orfeu, de Cocteau, se entra no domínio do “fantástico”, pois que o fantástico não é convencional – e tanto não o é, que todos os franceses perceberam com certeza que o Diabo de Os travadores malditos era a ocupação alemã. Mas é convencional qualquer desses inúmeros filmes que, dando-se como imagens da realidade, nos apresentam personagens que são simples manequins, e enredos em que só acontece o que convém ao agradável desfecho exigido pelas conveniências… nos vários sentidos desta palavra.

Há muitas maneiras de não se ser convencional. Mas para qualquer uma delas é exigência inicial, sem a qual nenhum filme será obra de arte, que o motivo e a sua expressão cinematográfica despertem no espectador o homem autêntico, interessem em cada um de nós a capacidade de pensar e de sentir, e não apenas a epiderme. Seja o filme realista ou fantástico, sentimos imediatamente a presença do artista entre nós e as imagens. A intensidade, a profundida com que “revivemos” aquilo que se passa diante dos nossos olhos diz-nos claramente se trata-se de uma obra de arte ou de uma falsificação.

A Itália foi teatro, depois da libertação, de um acontecimento de excepcional significado no desenvolvimento do cinema. Acabada de sair de uma época de falsificação oficial obrigatória, a sua seiva comprimida explodiu numa série de obras de primeira ordem, que foram como uma chicotada na depauperação do cinema europeu e americano. A sua influência não deu, contudo, todos os frutos que parecia prometer – mesmo na própria Itália; o instrumento admirável que parecia ter forjado alguns filmes de primeira ordem, embotou pela força das circunstâncias, porque lhe faltou a atmosfera de liberdade em que, momentaneamente, se situam as suas primeiras experiências.

O grande segredo desta extraordinária renovação reside essencialmente na experiência que os italianos acabavam de viver. Depois dela, não era possível ser convencional. Como podia um artista esquecer um dia a dia de trevas e angústia, de terror, de tortura, tirania e fome? Como podia essa experiência ser posta de lado, para se fazerem filmes em que, como se nada tivesse acontecido, só houvesse milionários, piscinas, corpos bonitos, facilidades e despreocupação?

Assim o cinema italiano descobriu a torpe e a heroica, a mesquinha e a grandiosa realidade. Assim o cinema italiano desprezou as imagens passadas a ferro, e preferiu a fotografia bruta da mísera realidade. Assim o cinema italiano descobriu a olhar cara a cara a tremenda verdade dos rostos sem beleza, das vidas sem tempo para artifícios, das almas postas a nu perante uma realidade que não admitia hesitações entre a heroicidade e a cobardia.

Roma, cidade aberta ficará para mim indissoluvelmente ligada à extraordinária emoção que senti – quantos milhões de homens não a terão sentido? – ao ver há seis anos pela primeira vez essa trágica história contada por Rossellini sem medo à horrível nudez e a infinita amargura da verdade. [Nesse momento, parecia que estávamos a enterrar um mundo definitivamente apagado da face da terra. Parecia-nos que aquele sangue frutificara realmente em libertação.] Aqueles heróis não tinham morrido em vão; na despedida dos seus pequeninos amigos ao padre fuzilado víamos já as vidas em formação que jamais esqueceriam o que tinham aprendido. E na junção de todas as forças reais, representadas nos heróis do filme, adivinhávamos a união sobre a qual se iria alicerçar um futuro que o medo jamais poderia recobrir com o seu manto tenebroso.

Ao rever seis anos depois Roma, cidade aberta, a angústia com que se assistia ao desenrolar das suas cenas trágicas não teve para mim a compensação que sentira da primeira vez. A sua verdade pareceu-me presente, e não passada. [Aquelas trevas são as nossas trevas.] E o filme ganha uma ressonância inesperada, pelo contraste de emoções e lembranças que estabelece.

Roma, cidade aberta não pretende ser uma síntese da resistência italiana aos alemães; não é um filme de pretensões simbólicas – o que nele há de simbólico dá-lhe precisamente a evidência com que se precipita sobre nós uma realidade fragmentada, exemplar, sim, mas que é apenas a parte mínima de um cataclismo. A maneira como este filme se nos impõe provém precisamente de ser tão simplesmente autêntico.

Poderíamos preferir, como me sucede, que a “mulher fatal” da Gestapo tivesse sido dispensada; mas ainda aí a realidade excedeu em muito o cinema, e a nossa reação será apenas uma defesa contra o que há de atroz nessa figura – porque a crueldade moral nos impressiona mais do que o sofrimento físico. [Nem sequer o discurso do oficial alemão que bebe para se atordoar e esquecer a vergonha que tem da sua “raça superior”, e tudo o que ele diz aos outros oficiais, nem isso é falso, pois outros o fizeram – outros acabaram por descobrir que eram afinal os mais escravos entre os escravos.]

Imaginemos como o cinema americano teria “cozinhado” um argumento deste gênero, e compreenderemos qual é a diferença entre a arte autêntica e as suas adulterações. Compreenderemos que para muita gente, arte é precisamente o que Hollywood teria feito de Roma, cidade aberta, enquanto filme de Rossellini será por esses mesmos considerado de “mau gosto”. Para essas pessoas a arte é um verniz para tornar as coisas agradáveis à vista. Ora, arte é exatamente o que nos oferece a obra-prima de Rossellini: uma intensidade tal, de momentos profundamente significativos, que o espectador sinta ecoar dentro de si cada cena que se passa na tela.

O verniz não mostra nada: esconde. E a arte não se faz escondendo, mas revelando, tornando visível, tornando “evidente”. Alguns poderão classificar Roma, cidade aberta, ainda para lhe negarem que seja arte, como filme documental. Ora o documental é um espelho, digamos assim, que recolhe indiferentemente tudo. Pelo contrário, onde há escolha, onde há composição, onde há arquitetura, deixamos de estar nos domínios do documental. A arte recompõe a realidade, porque só precisa dos momentos em que ela está concentrada. Assim a verdade ressurge, na arte, não como está à superfície do quotidiano, mas sim como está dentro do quotidiano.

Quando se reúnem a grande categoria como expressão de arte, e um tema de tremenda humanidade como é o de Roma, cidade aberta, todas as palavras com que o louvemos nos parecem frouxas e indignas. Os que não souberem aprender a lição que este filme nos dá, saibam ao menos senti-lo como obra de arte – e talvez acabem por compreender como uma e outra são afinal inseparáveis, indo até ao fundo da verdade profundamente amarga que ele contém.

*Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), poeta, crítico e ensaísta português, é autor, entre outros livros, de A palavra essencial – estudos sobre a poesia (Companhia Editora Nacional).

Comentário realizado na sessão de 27 de maio de 1952, no Cine Tívoli, organizada pelo Jardim Universitário de Belas Artes, recolhido por Rui Moreira Leite no volume Casais Monteiro – uma antologia (Unesp, 2012).

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