Por LINCOLN SECCO*
No decorrer da história, o Partido Comunista tornou-se um educador político da classe trabalhadora brasileira
O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado entre 23 e 25 de março de 1922 em Niterói, então capital do Rio de Janeiro. Houve outro agrupamento de mesmo nome, mas de duração efêmera, criado em 09 de março de 1919 a partir do impacto da Revolução Russa.
O PCB buscou imediatamente o reconhecimento da Internacional Comunista (1919-1943), mas não o obteve na primeira tentativa. Em novembro de 1922 enviou como representante ao IV Congresso da Internacional Comunista Antônio Bernardo Canellas, que se encontrava na França. Foi uma personagem intrigante do partido, mas logo esquecida.
Canellas foi visto nas rápidas referências historiográficas como alguém que era despreparado e que não entendeu como funcionava o congresso. Ele não aceitava as resoluções que chegavam ao plenário decididas. Algumas teses ficaram registradas nas atas como aprovadas com o único voto contrário do “delegado brasileiro”! Foi então que Trotski o chamou ironicamente de “phenómene de L`Amerique du Sud”.
De volta ao Brasil, ele foi preso pela polícia e expulso do partido. Mais tarde, aqueles que excluíram Canellas seriam afastados também. A tentativa de elaborar uma leitura marxista autônoma da realidade brasileira não convinha ao crescente centralismo intervencionista de Moscou. Com a substituição do grupo dirigente original, em 1928, houve uma oscilação de direções instáveis até a ascensão de Luiz Carlos Prestes no final do Estado Novo.
O passado anarquista havia moldado o pensamento e a prática dos primeiros dirigentes comunistas como Astrojildo Pereira, Otávio Brandão e Canellas. Na maioria dos países europeus, os comunistas surgiram de dissidências de partidos socialistas. Em alguns casos a maioria dos socialistas aderiu à Internacional. Mesmo na América do Sul, o Chile e a Argentina tinham partidos socialistas constituídos. Não era o caso do Brasil, onde até os anos 1920 formaram-se aproximadamente 60 “partidos socialistas”, na verdade organizações locais dispersas e efêmeras. Os quadros comunistas provieram, portanto, de correntes libertárias e as fontes da história dos primeiros anos do PCB atestam a preocupação constante em combater concepções anarquistas em suas fileiras.
Depois da insurreição da Aliança Nacional Libertadora (pejorativamente tratada na historiografia como “intentona de 1935”), a repressão destroçou física e psicologicamente vários quadros comunistas. A posterior instalação do Estado Novo desmantelou o partido. As importantes leis trabalhistas, o surto industrial e a adesão posterior de Getúlio Vargas ao trabalhismo podem nos fazer esquecer seu anticomunismo. O seu regime recorreu à tortura, ao banimento e até propôs um campo de concentração para crianças filhas de comunistas.
Aquele massacre orgânico que reduziu o PCB a pequenos grupos isolados sem uma direção nacional, pôs em questão a continuidade do partido. Quando a Comissão Nacional de Organização Provisória (Cnop) realizou a Conferência da Mantiqueira em 1943 e reconstituiu o PCB, havia outras alternativas políticas como os Comitês de Ação, que tiveram sua maior força no Estado de São Paulo. O apoio de Prestes à Cnop foi decisivo.
Muitos abandonaram o PCB. Em outras ocasiões as rupturas internas levaram a novas organizações, como o Grupo Comunista Lênin, em 1930; o Partido Socialista Revolucionário em 1938; e a Corrente Renovadora do Marxismo Brasileiro em 1957. Poderíamos prosseguir e citar as organizações que aderiram à luta armada nos anos 1960 e eventos mais recentes, como a saída de Luiz Carlos Prestes, cujos seguidores atuaram no PDT e em correntes do movimento sindical e estudantil. A cisão que adquiriu permanência, contudo, foi a do Partido Comunista do Brasil (PC do B) em 1961.
PC do B
A Declaração de Março de 1958, adotada pelo PCB depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, abria a perspectiva da luta dentro da legalidade. Uma aposta arriscada numa democracia que conviveu com várias tentativas de golpe militar entre a eleição de Getúlio Vargas em 1950 e o início da ditadura em 1964.
O PC do B se insurgiu contra aquele documento e resgatou o antigo nome do PCB, que passara a se chamar Partido Comunista Brasileiro. Os documentos do PC do B tratam aquele momento como uma reorganização partidária, mas apenas cerca de 100 pessoas apoiaram o manifesto da cisão. Mais tarde outros militantes acompanharam o grupo dissidente.
O PC do B enfrentou a ditadura e se inseriu ativamente no quadro nacional. Diferentemente de cisões anteriores, estabeleceu-se no quadro político, participou de governos de todos os níveis, passou a dirigir uma central sindical e a União Nacional dos Estudantes e décadas depois ultrapassou o PCB em número de filiados.
O PCB continuou sua trajetória, reafirmou-se como o herdeiro de uma tradição, manteve-se influente na vida nacional, possuía cerca de 40 mil membros e um número muito maior de simpatizantes até 1964. Luiz Carlos Prestes continuava sendo o secretário geral e seu prestígio também consagrava a continuidade, embora tenha se desentendido paulatinamente com os demais dirigentes ao longo dos anos 1970.
Legalidade
O PCB esteve na legalidade em curtos períodos: março a junho de 1922; janeiro a agosto de 1927; e outubro de 1945 a abril de 1947. Isso foi determinante para sua cultura política. Na resistência à ditadura de 1964 o partido fez o que mais estava acostumado em sua história: sobreviver na clandestinidade e atuar nos poucos espaços legais de oposição.
O partido elegeu vereadores e deputados nos anos 1970, atuou nos movimentos de bairro e sindicais e foi um dos articuladores da abertura política. Em 1982 elegeu uma bancada maior que a do PT e muito mais diversificada geograficamente. Lembremos que se tratava de um partido clandestino que lançou candidatos pelo MDB.
No entanto, aqueles valores que orientavam sua ação demonstraram-se inadequados para o novo período de semi-legalidade em que explodiam as lutas operárias e de massas. Prestes percebeu isso na sua “Carta aos Comunistas” (1980) ao escrever que o PCB não deveria ser o “fiador de um pacto com a burguesia”. Na memória de alguns intelectuais que tinham referência no eurocomunismo, o PCB “sacrificou” sua influência de massas para garantir a democracia. Não foi essa a posição de Prestes.
A legalidade plena viria em 1985 e o fato é que o partido já era só a cauda política de um setor burguês, tanto que apoiou a candidatura do empresário Antônio Ermírio de Moraes ao governo do estado de São Paulo, sem nenhuma razão de natureza estratégica, afinal a ditadura formalmente havia chegado ao fim; e em 1989 lançou Roberto Freire à presidência. Seu desempenho foi sofrível, apesar da simpatia de parte da imprensa burguesa. Aquela agremiação já não possuía o prestígio do passado.
Recomeço
Em fevereiro de 1991 o Partido Comunista Italiano se dissolveu. Com forte influência sobre dirigentes do PCB na época, o evento representou uma segunda queda do muro de Berlim para eles. Naquele mesmo ano, em dezembro, Roberto Freire deu um passo simbólico: ele e Roberto Marinho assinaram um acordo de preservação da memória do PCB pelas organizações Globo. Na prática foi a entrega do arquivo dos comunistas a uma empresa ligada à ditadura.
Mas Freire não estava disposto a se livrar apenas dos documentos históricos. No início de 1992 ele e seu grupo copiaram o exemplo italiano, declararam extinto o PCB e fundaram o PPS. Embora sob acusação de terem uma maioria casual, o fato é que os seguidores de Freire foram vitoriosos. Uma ala discordante convocou uma Conferência Extraordinária de Reorganização do partido e conseguiu mais tarde resgatar a sigla. Iniciou-se o chamado período da reconstrução revolucionária.
Lembremos que não foi a primeira crise que colocou em questão a continuidade do partido. Como vimos, 50 anos antes o PCB fora reconstituído.
Ao abandonarem sigla, nome, programa, princípios e a teoria marxista os seguidores de Freire herdaram o patrimônio material, mas não a história comunista. O sucessor do PPS foi o Cidadania, um partido de centro com um programa neoliberal “progressista” que manteve a Fundação Astrojildo Pereira e lançou livros sobre a história do PCB e o pensamento de Gramsci. Apesar de seu transformismo, os ex-comunistas insistiram em disputar a memória pecebista.
A história e a memória têm muitos pontos de contato, mas há uma diferença crucial. A história é uma ciência, por mais que as abordagens pós-modernas a tenham reduzido a um discurso ficcional.
As disputas em torno de siglas, nomes e símbolos são mais ou menos legítimas, mas a questão mais importante que a história pode tratar é outra: por que agrupamentos políticos atuais consideram relevante defender o passado comunista?
Historiografia
As lutas presentes da esquerda e as demandas gerais da sociedade reorientam os historiadores em suas pesquisas. Não é casual a abrangência temática que tem surgido nos estudos acadêmicos. Até os anos 1980 muitas memórias e análises cobriram os momentos decisivos da direção partidária. No século XXI conhecemos melhor o PCB em outras dimensões: nas pequenas e médias cidades onde atuou; na sua relação com camponeses, escritores, parlamentares, artistas visuais, imprensa, negros e mulheres; embora seja quase inexistente o estudo sobre seus membros de base maçons, espíritas, cristãos, adeptos de religiões de matriz africana etc.
Um campo fecundo é a literatura marxista traduzida no Brasil: as edições, os circuitos que os impressos comunistas percorriam, os jornais diários que o partido possuía, relatos de viagem aos países socialistas, as gráficas etc.
A classe trabalhadora no Brasil foi historicamente marcada pela fragmentação e a informalidade. Faz todo o sentido que uma nova geração militante busque no Partido Comunista uma tradição de lutas pelo desenvolvimento, soberania nacional e direitos sociais. Mas a nova geração, marcada por uma pluralidade muito mais reconhecida, também quer encontrar na história o combate aos preconceitos que se reproduziram continuamente.
Educador político
Durante os catastróficos governos de Margareth Thatcher de 1979 a 1990, Eric Hobsbawm refletiu sobre o papel do pequeno partido comunista de seu país, naquele momento à sombra de um Partido Trabalhista esfacelado. Nos artigos reunidos em seu livro Estratégias para uma esquerda racional, ele mostrou que a diminuição da consciência de classe e da força dos sindicatos, a crise do socialismo real, as privatizações e o ataque ao Estado de bem-estar social colocavam em risco o próprio chão em que a esquerda pisara por décadas.
Numa situação assim é natural que os jovens se refugiem no extremismo, afinal eles só ingressam inicialmente na luta porque percebem que o capitalismo gera horrores insuportáveis que eles vivenciam no quotidiano. Hobsbawm recordou que no livro Esquerdismo – doença infantil do comunismo, Lênin reduziu o radicalismo de esquerda a frangalhos só depois de render um tributo ao “espírito” que animava o sectarismo dos militantes de esquerda.
Vale a pena citar o próprio Lênin: “Este estado de espírito é altamente consolador e valioso; é preciso saber apreciá-lo e apoiá-lo, porque sem ele ter-se-ia que desesperar da vitória da revolução do proletariado e em qualquer outro país. Há que conservar e dar com solicitude toda a ajuda aos homens que sabem exprimir esse estado de espírito das massas, que sabem suscitá-lo nas massas (que frequentemente permanece oculto, inconsciente, sem despertar)”.
Lênin aludiu ao “mais nobre ódio proletário” pelos políticos burgueses; um sentimento que é o “princípio de toda a sabedoria”. Claro que seu intuito era mostrar que a política é uma ciência e uma arte e que aquele espírito sozinho é insuficiente.
Contudo, Hobsbawm afirmava que os jovens não encontram mais em nenhum lugar uma escola onde possam aprender a combinar sua convicção e uma política não sectária. Os comunistas forneceram em muitos países essa escola.
O que seria da cultura italiana do pós-guerra sem o Partido Comunista? No Brasil, o PCB foi a instituição que pautou o debate historiográfico por décadas; atuou na formação política e sindical de milhares de pessoas; teve editoras e jornais diários; e incidiu no cinema, teatro, artes visuais e até na literatura brasileira.
Assim como na Europa, valem as palavras de Hobsbawm. Em seu artigo “A Retirada para o Extremismo” (1985) ele disse que “faz tempo que o partido perdeu sua posição de único centro de uma educação política como essa, mas manteve, até agora, pelo menos uma certa presença como educador político”.
Não é outro o papel de uma esquerda revolucionária. Senão por outras razões, em tempos conservadores ela existe para nos lembrar que o socialismo não é a reforma permanente do capitalismo e sim a socialização dos meios de produção. Que todas as opressões particulares devem ser combatidas, mas que só a classe trabalhadora suporta uma opressão universal e pode emancipar a humanidade. Que uma sociedade socialista não é utópica, mas uma necessidade histórica. A alternativa a ela é a extensão sem fim da barbárie na qual já vivemos.
Viva o PCB!
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).