Negacionismo in extremis

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Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

O capitalismo move-se pelo lucro e só pelo lucro e não pode parar de explorar os trabalhadores e a natureza

Pouca gente acredita que se vive atualmente o ocaso do capitalismo e, talvez, o fim da história. Ao ser mencionada, a tese recebe frequentemente um sorrisinho de descaso como se autor fosse apenas um órfão do socialismo que não consegue ver a pujança e a dominância do sistema realmente existente. Julga-se que a previsão apocalíptica vem de alguém que espera o colapso do capitalismo para que se realize, como um milagre, a utopia milenar de uma sociedade em que as contradições estruturais e os conflitos manifestos foram abolidos.

Será? Eis como Murray Smith, o autor de Twilight capitalism caracteriza a situação atual da humanidade: “o capitalismo vai logo terminar – seja por um esforço consciente dos trabalhadores do mundo como um todo para substituí-lo por uma ordem social e uma organização econômica mais sustentável ou o capitalismo vai destruir a humanidade”. Veja-se: essa tese esta fundamentada na própria natureza do capitalismo: ele se move pelo lucro e só pelo lucro e, para tanto, em consequência, não pode parar de explorar os trabalhadores e a natureza.

O capitalismo pode ser salvo de sua força evolutiva que se transformou já de predominantemente criativa em predominantemente destrutiva? O capital vai superar ainda as barreiras que ele própria cria como previu Marx em O capital? Reformadores keynesianos, seguidores de Karl Polanyi, marxistas, assim como outros, parecem acreditar que sim: os planos de salvamento não param de sair dos computadores para se instalar na internet e, assim, viajar pelo mundo. Ficam quase sempre aí nesse repositório do imaginário social concreto já que não podem se transformar em políticas econômicas efetivas.

Ora, atualmente, é possível argumentar que certas contradições estruturais estão se manifestando como problemas que não podem mais ser resolvidos por ações públicas e privadas que respeitam o modo de produção capitalista: os danos ecológicos, o impasse geopolítico, a crise de superacumulação etc. Aqui, o texto que se segue vai tratar da crise social e econômica provocada pela pandemia do coronavírus para mostrar essa incapacidade. Desse modo se expõe o geral na forma do particular e se mostra que a humanidade está de fato em risco.

Como se pode saber pela imprensa, o vírus Covid-19 tem sofrido mutações muito rápidas de tal modo que os sistemas de saúde, mesmo dos países mais ricos economicamente, não têm conseguido proteger as populações de que cuidam, de uma forma definitiva. Para que isso ocorresse seria necessário ter uma proporção maior de pessoas vacinadas não só nos países do centro do sistema, mas também da grande periferia que se espalha pela África, América Latina, Ásia etc. Seria necessário também que houvesse a disponibilidade de mais e de melhores vacinas de tal modo que uma grande proporção da população mundial pudesse receber esse tipo de cobertura protetora. Seria necessário, ademais, dispor de uma política mundial de teste e de isolamento dos doentes para brecar o processo de contaminação sucessiva que propaga o vírus.

Note-se que mesmo uma medida preventiva como o uso de máscara tem encontrado dificuldade – e mesmo enorme dificuldade em certos casos – já que a cultura individualista que se desenvolve sob o capitalismo cria exércitos de negacionistas “heroicos” que são contra o seu uso. Já outra medida preventiva como “evitar as aglomerações” encontra adversários ferrenhos entre os promotores da indústria cultural que se acham privados de obter lucros por meio de shows, jogos de futebol, viagens nacionais e internacionais etc.

Por outro lado, a difusão mais rápida e em maior volume das vacinas encontra barreiras tais como as patentes da indústria de medicamentos, os custos que não podem ser inteiramente cobertos pelos países mais pobres, a falta de capacitação técnica para vacinar em massa e rapidamente. Em consequência, continua a existir uma enorme população descoberta de vacinação que fica completamente exposta ao vírus, permitindo assim a sua disseminação. Como se sabe, a taxa de aparecimento de novas mutações viáveis depende positivamente do grau de difusão do vírus e, portanto, do número de infectados.

Um estudo recente chegou a uma conclusão alarmante, mas verás: “as vacinas existentes podem não ser suficientes por si mesmas para debelar a epidemia (…) Por outro lado, testes suficientemente rápidos e precisos combinados com quarentena/isolamento efetivo de pessoas com resultado positivo podem ser suficientes se aplicados adequadamente, mesmo sem vacina. As máscaras geralmente disponíveis podem não ser suficientes, a menos que combinadas com outras medidas, como vacinas existentes”.[i]

Em consequência, esse estudo recomenda a quebra de patentes, o financiamento da pesquisa com recursos públicos, a produção de vacinas a serem ofertadas gratuitamente para a população mundial, o treinamento de pessoal especializado em todos os países, a difusão de uma cultura de proteção coletiva. Após minuciosa investigação, após chegar a tais recomendações dramáticas, o estudo cai numa conclusão desesperançosa: “mudanças como essas são difíceis; eis que exigirão desafiar alguns interesses poderosos que se beneficiam da corrupção política incorporada aos atuais sistemas políticos e econômicos que gerenciam questões de saúde pública”.

A pandemia do coronavírus não é um evento ruim num contínuo de acontecimentos virtuosos que promovem o bem-estar da humanidade em geral. Ao contrário, ela se encaixa num padrão mais geral; trata-se, na verdade, de um evento singular que expressa uma tendência mais geral do capitalismo contemporâneo: o tensionamento crescente das forças envolvidas na contradição – tão acentuada por Marx – entre o caráter privado da apropriação e o caráter social da produção.

Com o desenvolvimento do capitalismo nos séculos XIX e XX, elevou-se a demanda de bens e serviços ofertados como bens públicos; eis que só assim pode ficar garantida a infraestrutura coletiva e a proteção comunitária que preserva a sociedade de fraturas cada vez maiores. E que preserva também um sistema econômico baseado tanto na competição de capitais quanto na luta de classe – ainda que essa última tenda a ser ocultada. Ora, essas condições foram garantidas de modo satisfatório, pelo menos nos países centrais, enquanto foi possível manter os chamados “estados de bem-estar social”, após o fim da Segunda Guerra Mundial, enquanto a taxa de lucro média mundial se manteve num patamar elevado.

Foi isso o que ocorreu entre 1945 e 1970, aproximadamente. No período subsequente, essa taxa cai sucessivamente até atingir um patamar mínimo em 1982 quando então a política econômica abandonou o keynesianismo para adotar doravante o neoliberalismo. Este último foi capaz de elevar moderadamente a taxa de lucro do sistema até aproximadamente 1997, quando ela passou a cair novamente, sem se recuperar decisivamente desde então. Este foi o cenário em que ocorreu o tensionamento crescente das forças sociais enredadas na contradição acima aludida.

Como se sabe, a oferta de bens públicos pesa nos orçamentos dos Estados nacionais, os quais, em última análise, são nutridos com parte maior ou menor do mais-valor gerado pelos trabalhadores. Assim, diante da queda tendencial da taxa de lucro que vem se manifestando desde os anos 1970, não restou outra opção para a gestão capitalista senão criar uma política de contenção dos gastos públicos associada a uma política de privatização, as quais tendem a tornar os bens públicos cada vez mais escassos. Ao erodir a base comum da sociedade, a opção neoliberal – decorrente da luta da burguesia para obter mais lucro – eleva a concentração da renda e da riqueza, difunde a pobreza na classe trabalhadora, espalha o niilismo e, assim, o fascismo, na classe média especialmente, sabota a democracia liberal, ou seja, certos fundamentos que dão sustentação social e política ao próprio capitalismo.

Mas essa não é o único travamento que agora abala o sistema da relação de capital que agora ocupou o mundo como um todo. Há outras: tem-se agora um sistema econômico que se tornou mundial, mas não uma administração mundial; as nações que o compõe têm interesses conflitantes, podendo chegar à guerra; há uma apropriação crescente da natureza junto com um esgotamento da capacidade de carregamento do planeta Terra; tem-se uma crise de superacumulação prosperando por décadas sem que ocorra uma destruição maciça de capital, necessária para a recuperação da taxa de lucro, mas que se tornou politicamente insustentável.

Como se sabe, Marx escreveu e está guardado no Livro III de O capital: “A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital (…). A produção capitalista procura constantemente superar essas barreiras que lhe são imanentes, mas só as supera por meios que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa”. Ora, essa tese vale apenas para a fase progressista do capitalismo que terminou no penúltimo quartel do século XX. Na fase regressiva em que entrou desde então, a produção capitalista cria barreiras que não pode superar mesmo acelerando a predação da natureza e da força de trabalho. O desgoverno Temer/Bolsonaro é apenas uma expressão no plano político da destrutividade atual de relação de capital que poderá ser minorada, mas não superada.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Desmedida do valor (Xamã).

 

Nota


[i] Graves, Spencer; Samuelson, Douglas – Externalities, public goods, and infectious diseases. In: Real-world economic review, nº 99, 2022.

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