Por PAULO VANNUCHI*
Alianças, frentes e federações conjugam projetos distintos em torno de algum eixo aglutinador
Até aqui, o lance de mais forte impacto na disputa presidencial de 2022 foi a união entre Lula e Geraldo Alckmin. Ela sintetiza com absoluta concretude as propostas esparsas que há, três anos, apontavam a necessidade de uma frente ampla para sepultar o ciclo de ódio que marca o bolsonarismo.
Ataques sistemáticos às instituições democráticas já tinham sido a tônica da campanha eleitoral do atual presidente em 2018. Empossado, Jair Bolsonaro cumpriu implacavelmente o prometido. Só depois do golpe fracassado no 7 de setembro e de pedir clemência a um ministro do STF, parece ter-se conformado com o caminho das urnas. Cabe vigiar.
Se reeleito, ninguém tem o direito de duvidar que persistirá na mesma sanha, com poder redobrado. Seguirá adiante na destruição voraz de todas as políticas construídas desde 1988 em áreas essenciais como direitos humanos, saúde, educação, cultura, desenvolvimento social, ciência e tecnologia, relações exteriores e muitas outras.
Ainda em Curitiba, Lula acolhia o clamor pela unidade antifascista, mas apresentava condicionantes. Era inegociável um ponto central de seu programa: os pobres devem ocupar posição angular na recuperação econômica e na reconstrução democrática. Sem isso, nenhuma unidade antifascista haverá de durar.
Daí a relevância histórica do seu convite a Alckmin e da resposta corajosa do ex-governador paulista aceitando a convocação. Mais ainda: ao deixar o terminal PSDB, Alckmin optou pela sigla mais à esquerda no leque de partidos colocado à sua disposição, o PSB, aliado do PT desde a Frente Brasil Popular, de 1989.
Inaceitável subestimar a importância do PSB na história do Brasil. O partido ostentou líderes idolatrados como Miguel Arraes, governador pernambucano por três vezes, arrancado pelos golpistas de 1964 do Palácio do Campo das Princesas para uma cela em Fernando de Noronha.
Partido também de seu neto, o governador e ministro Eduardo Campos, que Lula sonhou ver como presidente da República, com apoio do PT. Partido de João Mangabeira, cuja frase lapidar o nosso Antonio Candido tanto gostava de lembrar: “Socialismo sem liberdade, socialismo não é; liberdade sem socialismo, liberdade não pode ser”.
Comenta-se que a costura da chapa, nascida com ímpeto vencedor, remonta há mais de um ano. Seu principal arquiteto, Fernando Haddad – pela habilidade política demonstrada, além do recall positivo pelas candidaturas anteriores – desponta também como líder na pesquisa estadual em São Paulo, pódio que tende a se confirmar após o gesto também elogiável de Guilherme Boulos, que optou pela candidatura a deputado federal em nome da unidade.
É estranho que as matérias da imprensa venham abordando com frieza a união entre duas grandes lideranças políticas nacionais, que já bateram de frente em outros pleitos. O noticiário prioriza detalhes irrelevantes de candidaturas que giram muito abaixo dos 10% ou advoga, sem neutralidade jornalística, a busca de uma terceira via, que tem apenas o mês de abril para nascer ou morrer.
É estranho também que se repitam entrevistas com importantes lideranças petistas que criticam a aposta feita por Lula, falando-se pouco dos aplausos que amplas parcelas desse mesmo partido dirigem à decisão de seu líder maior – aplausos que ecoam mais forte em movimentos populares de raiz, como o MST, centrais sindicais, grupos de juventude e nas manifestações culturais de todos os âmbitos.
As críticas se concentram em dois aspectos principais. Um deles decorre da avaliação – temerária, embora respeitável –de que a vitória seria possível sem alianças tão amplas. Mesmo que esse otimismo se confirmasse, faltaria desatar um nó igualmente difícil, o da necessária maioria no Legislativo para aprovar os projetos mais centrais do novo mandato.
O outro é a condenação política dos mandatos do ex-governador, quando o PT sempre exerceu oposição tenaz. Episódios de violência policial ocorreram de fato naquele período – muitos e graves –, mas não seria honesto esquecer de ocorrências policiais graves registradas também em governos estaduais liderados por nosso partido.
Os reiterados choques com o professorado estadual também constituíram assunto sem acordo, mas vale lembrar que governos petistas também enfrentaram prolongadas greves nessa mesma área de atuação sindical combativa.
Dispensável mencionar que alianças políticas não são estabelecidas por líderes ou partidos que pensam igual e defendem programas idênticos. Alianças, frentes e federações conjugam projetos distintos em torno de algum eixo aglutinador, e Lula não tem feito segredo do que pensa.
A necessidade dessas composições e alianças oscila sempre ao sabor da velha e propalada correlação de forças, cerne de toda tática política, conforme rezavam nossos velhos manuais para formação de militantes.
Qual é essa correlação hoje? Avanço irresistível das mobilizações populares em defesa dos seus direitos? Eleitorado clamando por candidaturas sempre mais à esquerda? Uma sociedade em que a violência, os crimes de ódio, o racismo, o machismo, a homofobia e outras pragas sociais se tornaram residuais? Ou o Brasil atravessa uma apavorante onda de conservadorismo, fundamentalismo e crenças estúpidas em um ideário que rejeita os fatos da ciência, a verdade dos fatos e os próprios fatos?
Menos aceitável ainda seria condenar a chapa com Geraldo Alckmin pelo simples temor de que ele fatalmente haveria de trilhar o mesmo caminho de vileza percorrido pelo vice de Dilma Rousseff. Não é justo igualar os dois perfis.
No próprio testemunho de Lula e Haddad, Alckmin sempre foi um adversário leal e respeitoso na convivência republicana entre presidente, governador e prefeito. Aquele outro vice, temos a obrigação de reconhecer, já tinha percorrido longos caminhos obscuros antes de chegar ao Jaburu.
Acima de tudo, a disputa política e a construção democrática civilizatória não devem se pautar pela desconfiança prévia de que as trajetórias negativas haverão de superar sempre as evoluções em sentido positivo. Lembremos que Alceu Amoroso Lima e dom Helder Câmara vieram do integralismo e não condenaram a deposição de João Goulart, mas rapidamente transitaram para a condição de paladinos da liberdade e ícones dos direitos humanos.
Teotônio Vilela e Severo Gomes são dois outros gigantes que se mostraram capazes de abandonar importantes postos ocupados no regime ditatorial para meter o pé na estrada poeirenta e perigosa do desafio aberto aos tiranos, exigindo democracia.
José Alencar deixou de ser presidente da Fiemg, irmã siamesa daquela Fiesp que vomitou sapos e patos pavimentando a avenida Paulista rumo ao avanço fascista, para ser tornar um vice de Lula absolutamente leal durante oito anos. Quando esse grande empresário rompia a disciplina era apenas para atacar, com toneladas de razão, os juros altos que corroem o potencial da indústria e tornam os bancos monarcas absolutos do capitalismo brasileiro.
O convite de Lula e o gesto corajoso de Alckmin caminham muito mais nessa direção histórica progressista que no sentido de se repetirem as traições que culminaram no golpe de 2016, porta aberta, ao lado dos crimes praticados em Curitiba pelo Poder Judiciário, para que a direita extremista obtivesse uma vitória eleitoral que parecia impensável.
*Paulo Vannuchi, jornalista, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo Lula (2006-2010) e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (2014-2017).