Por FLÁVIO R. KOTHE*
O leitor de ficção aprende a exercitar a sua liberdade interior percorrendo espaços do que poderia acontecer
Por que insistimos ainda em escrever e publicar num país em que a cultura tem sido reiteradamente prejudicada por ditaduras de direita, em que foi usual perseguir intelectuais, queimar livros, torturar, exilar e matar? Cabe a nós defender a liberdade de pensamento e expressão. Somos uma minoria que busca ser esclarecida e ter espaço para expor isso.
Mas o que significa ser esclarecido? Num curto ensaio tardio, o luterano Immanuel Kant procurou responder: esclarecido é quem for capaz de questionar o dogmático que lhe foi doutrinado pela escola, pela família, pelo Estado, pela Igreja, para aprender a pensar por si, a ter fala própria, a dar normas a si mesmo. O sujeito, para ser autônomo, tem de aprender a não ser sujeitado. O que o eleva ao imperativo categórico, a liberdade interior, pode, no entanto, trair sua origem ao impor sua vontade à liberdade alheia.
Até que ponto se continua sendo, ainda, manipulado por estruturas metafísicas inconscientes, que manobram o que se sente e pensa como se a pessoa – mesmo quando pensador ou escritor – fosse marionete movida por fios invisíveis, máscara pela qual ressoa alheia voz? No palco em que se movem os bonecos, faz-se de conta que não se enxergam fios nem bonequeiro. Acredita-se na encenação como se fato fosse. É possível encenar esses bonecos com atores vestidos de negro, com o fundo do palco escuro: não muda a mecânica da encenação.
Se fácil é identificar a encenação no palco, menos fácil é ler o mundo como teatro, com um texto secreto subjacente aos discursos encenados. Há algo que encena a encenação e parece não estar em cena: a metafísica. Não se pode fugir ao palco em que se vive. A lógica do espetáculo é que se acredite nele como algo que ocorre. O palco, se é exceção ao cotidiano, deveria permitir ler a encenação do dia a dia. O poder não quer que se decifrem estruturas que agem invisíveis nos bastidores, fazendo com que se diga e se pense o que o comando virtual quer. O próprio poder faz o que quer aquilo que tem poder sobre ele. O teatro épico e do absurdo quebravam o encanto do encenado, para que se refletisse sobre o que se ia mostrando. Acreditavam que esclarecer iria libertar.
A filosofia europeia do século XX tornou central a questão de superar a duplicação metafísica do mundo, mas não ousou questionar de frente seus maiores ideólogos. O continente sul-americano tem sido dominado por essa duplicação, introduzida com a colonização. Não se tornou problema a ser proposto e discutido em público. Quem ousou foi varrido.
Se o que se tem produzido na América Latina continua aquém da consciência dessa crise e se ela realmente é decisivo turning point para a (r)evolução do pensamento, o que tem sido badalado pelo parâmetro antigo vai acabar soterrado pela marcha dita civilizatória. Se, por exemplo, um pretenso poeta afirma que no início era a palavra e a palavra gerou o verso e o universo, ele está requentando antigo pitagorismo cristão. Ignora a crítica de Aristóteles: não são os números que geram as coisas, mas são as coisas que geram os números. Fica difícil assumir o dado histórico do que é assumido como revelação sagrada.
Para Tomás de Aquino, o belo seria a aparição sensível da verdade, mas verdade era para ele a crença em Cristo à maneira dele: a verdade estaria na mente divina de acordo com a interpretação da Igreja. Um cético poderia supor que, estando em Deus, seria inacessível: nem o texto sagrado seria um mapeamento ideativo confiável. Solger e Hegel transferiram a verdade para ideia entendida como união tensa de contrários, o que revolveu o identitarismo escolástico do eterno. Heidegger, embora católico de formação, propôs retomar a noção grega de alétheia no sentido de um desencobrimento que logo leva a um encobrir, um desvelar que leva a um novo velar. Para os gregos, Alétheia era, no entanto, uma deusa, a que só tinha acesso quem tivesse uma biga para subir a montanha em que residia. Se um pesquisador propusesse um projeto de pesquisa nesse sentido, não seria aprovado num ministério controlado por pastores.
Se a obra de arte deve ser a expressão, elaboração e manifestação de verdades que não podem ser ditas de modo mais adequado de outra forma, ela não pode ser a mera demonstração de teses já expostas em tratados de sociologia, história, filosofia. Nada acrescentaria. Banalizaria o já sabido. Seria redundante.
Há um fosso entre a duplicação metafísica do mundo e aquilo que se elabora no além de sua crítica e crise. Autores de 1900 como Hofmannsthal, Musil e Thomas Mann já estão sendo estudados como superadores da definição platônica-cristã do homem como constituído por corpo e alma: ele seria corpo sem transcendência. Se for ampliado o distanciamento metafísico, não só se deverão gerar novas obras, como obras antigas terão de ser relidas e ressignificadas. Aos céticos restará estabelecer pontes entre a releitura de obras antigas e a proposição de novos territórios do pensar e do sentir.
A ficção tem a honesta coragem de dizer que é ficção: não pretende ser o real. Ela mente para sugerir verdades que de outro modo não poderiam ser ditas. A seu modo, é mais verdadeira. Não confia nos fatos. Todos eles são interpretações. Portanto, carregados de ficção e fiação. Ela não pretende ser relato de fatos como teriam ocorrido, mas isso não significa logo abdicar da verdade como busca. A partir de um ente busca dimensões ontológicas subjacentes, mas sem fazer delas meras abstrações argumentativas.
Um crente dogmático lê o seu livro sagrado como se fosse um relato de coisas que teriam ocorrido exatamente como relatado: seria uma cópia do real, uma transposição do fático para o plano verbal, identidade entre fato e palavra. Mesmo o crente que busca decifrar no texto uma dimensão simbólica não abandona a convicção de que nele está contida uma mensagem divina. Por desvios, busca a confirmação dos seus pressupostos. Neles estão os limites de sua leitura. Sua hermenêutica questiona detalhes, não fundamentos.
O termo crente pode designar aqui um grego antigo que acreditava nos deuses, um egípcio que acreditava em Hórus, um judeu ortodoxo, um católico, um evangélico, um espírita. Isso afeta a leitura literária: por exemplo, o romano que lia a Eneida aceitava como possível o encontro amoroso entre Eneias e Dido, embora tenha havida 300 anos de diferença entre ambos, mas não se preocupava em saber se a obra servia para legitimar a família Júlia no poder, como originada de Iulo, suposto filho do troiano, legitimar a guerra contra Cartago e a invasão da Grécia. Isso também não foi considerado pelos estudos clássicos, durante centenas de anos.
O leitor de ficção deve saber que está ingressando num mundo imaginário, um reino do faz de conta, em que ele vai se divertir com coisas que poderiam talvez ter ocorrido, mas que não devem ter acontecido como é narrado. Ele aprende a exercitar a sua liberdade interior percorrendo espaços do que poderia acontecer. Se o real é concreto, a ficção não é, no entanto, apenas a exploração do que poderia ser como possibilidade abstrata, ditada pela realidade como sua contrapartida. Ela é mais que isso.
O autor de ficção deve saber que, ao ingressar num mundo da fantasia, vai além da imaginação, que é uma busca no arquivo de imagens. Ele não busca apenas o retorno de lembranças, como quem busca no repositório de um depósito mental. Ele deixa imagens diversas se associarem, permite que novas advenham. Acaba se gerando uma significação nova, numa outra totalidade, que se impõe a ele, mas não é apenas reprodução de imagens pretéritas.
Escreve não porque quer, mas porque precisa domar os fantasmas que tomaram conta dele. Nele a obra se obra, usando-o como servente de pedreiro. Se quiser produzir algo que vá além dele, não pode ser nem arquiteto nem pedreiro: é apenas alguém que está aí para servir que se faça o que através dele quer existir. Ainda que faça esboços de personagens e enredos, ainda que desenhe a planta que quer implantar, ele não escolhe o que escrever nem escreve para aparecer. Algo se faz nele, através dele, para ir além dele. Algo que sobrevive sem ele.
O que para uns parece um dom dado por Deus, algo que lhe foi confiado e que ele deve cultivar e cuidar, é uma predisposição que tem também o seu lado de imposição e maldição. Escrever é transpor limites, ousar dizer para si e para o papel o que não pode ser dito por aí. É frequente entre escritores o silêncio, a não resposta a perguntas feitas. A pergunta que fica no ar pode ficar pairando por decênios, mas vai exigir ser respondida. A pessoa que a murmurou não vai ouvir a resposta. O que é sugerido deve ir além da pergunta e além da resposta imediata.
A ironia não é a mera inversão da realidade: libera espaço para o sujeito fazer comentários críticos que vão além da mera reversão: fazem raio X, desnudam o real. Embora ditadores queiram submeter o imaginário e a mídia imponha cada dia narrativas que sejam convenientes ao poder e coniventes, a fantasia constrói novos conjuntos a partir das imagens que lhe afloram e lhes dá uma significação que contém uma reflexão crítica. Não é livre a maior parte do imaginário. A mídia veicula intensa lavagem cerebral. Ela funciona na medida em que o público é incapaz de decifrar o que move aquilo que é encenado. Para não ser envenenado, é preciso reaprender a ler.
O desconstrutivismo propôs que a verdade seria mera ficção. Isso favoreceu que se tentasse apresentar como fato o que não passa de fake. É preciso decifrar essas runas, ver o texto subjacente aos textos. O que se chamava de politização era um aprendizado de leitura.
Escrever versos não gera o direito de fazer assertivas que não resistem à reflexão crítica. O conto se assume como ficção, mesmo que nele constem nomes e dados concretos. A crônica se mostra mais próxima a eventos reais, junta o grande e o pequeno, permitindo que o futuro decida sobre sua relevância. O romance pode traçar panoramas históricos, debater teses morais, rebater a tradição literária, mas não se firma como longa reportagem jornalística.
Se a ficção inventa para se tornar mais verdadeira, ela não mente simplesmente ao não tomar como referência uma suposta realidade nem pretende que se creia que aconteceu o que é narrado. Se não exige que o leitor creia no que diz como se fosse retrato fático, busca algo que está em fatos, mas os associa a outros, buscando a conjunção do ôntico com o ontológico. Induz a um percurso inverso do crente dogmático. Flaubert partiu de uma reportagem em jornal sobre uma senhora que havia se suicidado, mas o que ele faz com Ema Bovary, partindo do Don Quijote, é uma profunda crítica à fascinação das classes médias francesas pela aristocracia, e é mais que isso: narra o encanto do marido por uma esposa que o traía e se torna um estudo sobre os paradoxos do amor. Os romances são maiores que o horizonte dos seus protagonistas, mesmo quando levam seus nomes.
Que obras de primeira qualidade não sejam estudadas na escola brasileira mostra como o Estado não tem se preocupado com dar boa formação ao povo. Um povo que não aprende a pensar não está preparado a exercer bem a cidadania, embora isso seja vital para a sua sobrevivência. A arte treina sentir e pensar.
Se ainda não faz parte dos direitos da cidadania brasileira o acesso à arte, o canto das sereias fica distante, não é ouvido nos barcos escolares. Elas como que movem os lábios ao longe, fingindo que cantam, mas já desistiram de ser ouvidas porque os novos Odisseus têm os olhos voltados para uma nova amada: sua Penélope é a tecnologia, da qual se prometem conforto, prazer e poder. O jovem navegador-internauta não leu a Odisseia nem o conto de Kafka sobre o silêncio das sereias e, portanto, isso não é problema para ele: não existe.
Se o perfil médio do leitor é baixo, tende a ser baixa a densidade das obras que são geradas a partir desse público em função dele. O que é melhor não tem espaço por ser melhor. Como quase não se tem noção de como realmente são as grandes obras, aplaudem-se obras medianas como se fossem geniais. Há uma falsa cortesia no homem cordial. Não se resolve isso com a ideologia de que o cânone literário brasileiro expressa todo o povo e sua história. Ele não descende da literatura portuguesa, pois as referências dos escritores foram outras.
O pensamento colonizado caricato tem por modelo um autor europeu ou uma escola da metrópole para daí aplicar isso a coisas de cor local: finge assim que faz ciência, arte, leis, governança, moda. O europeu pensa; o sul-americano aplica. Esse modelo já está em Américo Vespúcio, que dizia, a partir de paradigmas europeus, que os aborígenes “americanos” não tinham lei, nem rei e nem fé: seriam, portanto, um não-ser em comparação com O Ser (europeu). A limitação desse modelo não era captada.
O argumento colonizado tem sido supor que os nativos deveriam imitar modelos europeus, como a Lua resplandece quando iluminada pelo Sol. Esse modelo tem perdurado por cinco séculos. Sua caricata expressão é uma índia embasbacada, Paraguaçu, sendo levada, como “rainha do Brasil”, à corte do rei francês, para casar com o herói lusitano dito Caramuru, que recebeu grande sesmaria na Bahia. Tem-se aí o projeto da oligarquia latifundiária: francofilia na mente; brasilidade no sangue luso-indígena.
O império espanhol acabou derrotado pelo inglês. Portugal tornou-se dependente da Inglaterra. O ciclo do predomínio inglês se complementou com o império norte-americano. As potências europeias perderam suas colônias e são, desde 1945, ocupadas por tropas americanas. Ficaram sem soberania efetiva. Se a violência é a parteira da história, é possível que esteja se abrindo hoje outro ciclo histórico. Haverá reorientação de parâmetros, a propiciar novos tipos de produção cultural e reavaliação dos produtos pretéritos.
Com mais de sete bilhões de pessoas – número explosivo –, estamos juntos num planeta pequeno e frágil, para o qual não temos nem teremos planetas alternativos. Ele tem sido violentado e destruído pela espécie humana, a única que foi capaz de alterar a temperatura global. Ela também é capaz, no entanto, de preservar e reconstruir. Isso demanda uma evolução de valores. Progresso não é só aumento quantitativo de produtos e gente, mas convivência do homem com a natureza e consigo mesmo. Arte e ciência serão decisivas para essa mudança.
A técnica não pensa por si. Ela é ciência aplicada e obedece aos comandos da vontade. Ela não questiona seus fins, não tem consciência da destruição que causa. O homem se entusiasma com o que supõe ser de imediato benéfico para ele. A agroindústria não se vê como extermínio de animais e plantas. O direito vigente quase não prevê direitos de seres que não sejam humanos.
Talvez um dia se encare como barbárie o que hoje parece normal. Há mudanças em curso. Não podemos prever o que há de surgir, mas temos de nos esforçar hoje para que o amanhã seja melhor que o ontem em que fomos jogados.
*Flávio R. Kothe é professor titular de estética na Universidade de Brasília. Autor, entre outros livros, de Ensaios de semiótica da cultura (UnB).