Economia socialista

Imagem: Brett Sayles
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Por EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*

Apresentação do livro recém-lançado.

A coletânea de textos Economia socialista é fruto de um projeto de pesquisas de largo alcance e em desenvolvimento. O objetivo do livro é oferecer debates e olhares alternativos à economia de mercado e ao capitalismo através de um conjunto de legados e experiências históricas. Termos recorrentes como a globalização, sociedade da informação, economias sustentáveis e de transição energética, novas tecnologias aplicadas à produção buscaram oferecer nas últimas décadas uma perspectiva ilusória de progresso e realização superior de civilização oferecida pelo capitalismo.

Na esteira dessas ideologias de matriz liberal e de defesa do capitalismo também prosperam teses e teorias sobre o fim da classe trabalhadora, sobre o fim dos sindicatos e partidos operários, sobre novos atores e novas formas de luta. Trata-se de uma onda “neo-pós-moderna” em busca de multidões e novos movimentos, novas bandeiras de luta – muitas delas importantes – porém, distantes do cotidiano de luta desesperada pela sobrevivência das centenas de milhões que vivem a realidade concreta de luta pela vida como ela é. As glamorosas tecnologias nas mãos dos grandes monopólios capitalistas transformam a vida da classe trabalhadora em um verdadeiro inferno; chamado nos dias de hoje de “uberização do trabalho” e outros adjetivos; de fato, uma regressão sistemática de direitos elementares, fim dos contratos de trabalho, das jornadas de trabalho, a fragmentação e individualização de cada trabalhador.

Essa situação alimenta a acumulação de trilhões de dólares das grandes corporações e bancos em valores de mercado, alimenta uma espiral crescente e infindável de crises financeiras, especulação e destruição de forças produtivas através de guerras, destruição do meio ambiente, narcotráfico e repressão social. O capitalismo se utilizava do enorme progresso técnico oferecido pelo desenvolvimento das ciências – que poderia hoje resolver os grandes problemas da humanidade – como a fome e a miséria de centenas de milhões de seres humanos – para aprofundar a destruição das condições de vida, para fechar hospitais, destruir redes de proteção social, privatizar e saquear bens públicos, cobrar por vacinas e remédios em plena pandemia, para atacar de maneira incessante direitos e garantias conquistados duramente pela classe trabalhadora em todos os países. A ciência não é isenta a esses dilemas e o capitalismo não é a única alternativa histórica para o futuro da humanidade, o que de fato significaria aceitar sua condenação à crescente barbárie.

Ao longo de 2020 e 2021 a pandemia foi pretexto para uma gigantesca ofensiva do capital em todo o mundo, para retirar direitos, destruir conquistas sociais históricas da classe trabalhadora e colocar o conjunto da humanidade à beira do precipício. Foi nesse contexto que a maior parte dos debates e questões deste livro foram elaboradas. Desde 2019 pelo menos, há uma conjuntura marcada por grandes mobilizações de amplitude internacional, a resistência das maiorias trabalhadoras não cessa. Na Argélia, Iraque, Líbano, Hong Kong, Chile, Equador, Bolívia, França, Estados Unidos e em muitos outros países desse amplo mundo, milhões se levantaram e construíram grandes mobilizações sociais, inclusive com elementos embrionariamente revolucionários em alguns casos. Essas mobilizações mostram a inquebrantável vontade da maioria da população de lutar por condições de vida dignas, que correspondem às possibilidades materiais que a atual produtividade do trabalho torna possível, mas que sob a lógica capitalista se tornam impossíveis.

Buscando refletir desde a história, elaborar e resgatar perspectivas para a críticas e superação do capitalismo, um grupo de docentes de cinco Universidades públicas latino-americanas e europeias elaboraram um projeto de pesquisa em torno da reflexão sobre algumas experiências históricas que expressaram iniciativas voltadas para a resistência à exploração capitalista e que lições se poderiam produzir delas. Esta pesquisa foi realizada com apoio de uma convocatória da União Ibero-americana de Universidades (UIU), que agrupa a Universitat de Barcelona (UB), a Universidad de Buenos Aires (UBA), a Universidad Complutense de Madrid (UCM), a Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) a Universidade de São Paulo (USP). O LEPHE (Laboratório de Economia Política e História Econômica) da USP através do seu grupo de pesquisas sobre planificação econômica e coletivismos (GPPEC) convidou pesquisadores do tema a se somarem ao projeto. Foram realizadas desde 2019 diversas iniciativas como cursos, eventos e debates articulando as cinco universidades. Este livro é um dos resultados parciais dessas pesquisas e atividades.

A ascensão da classe operária como protagonista da história foi capaz de construir alternativas concretas ao capitalismo desde o século XIX e deixou marcas e referências teóricas e práticas fundamentais ao longo do século XX. Se a comuna de Paris de 1871 ensaiou com suas oficinas a gestão operária da economia, encontramos na continuidade da revolução russa de 1917 e depois na formulação teórica da economia soviética e na implantação dos primeiros planos quinquenais uma referência central, ainda que marcada por polêmicas, controvérsias e contradições. Muitas experiências fundamentais de transição econômica ao socialismo, coletivização e gestão operária e planificação da propriedade social ocorreram ao longo do século XX.

A China após 1949, o leste europeu, Iugoslávia, depois Cuba, Vietnã e mesmo durante o governo Allende no Chile. Ao lado dessas experiências estatais podemos encontrar inúmeras tentativas e iniciativas parciais e revolucionárias de experiências de gestão operária da produção, algumas precursoras e outras apenas esboçadas ou teorizadas. Entre essas podemos mencionar desde as coletivizações na Espanha revolucionária da década de 1930, dos kibutzim do deserto de Israel, como também da gestão econômica elaborada pelos mineiros bolivianos após a revolução de 1952 e na comuna de La Paz de 1971.

Por fim, destacamos um terceiro grupo de iniciativas que contradizem parcialmente a lógica da economia de livre mercado e que se relacionaram com a intervenção ativa e explícita, consciente e planejadora do estado burguês para preservar o capitalismo; iniciativas em geral para fazer frente à concorrência de outras burguesias, mas principalmente frente às pressões e lutas do movimento operário. Se há exemplos clássicos como a planificação indicativa francesa do pós-guerra e o pacto sueco de desenvolvimento, também houve no Brasil no mesmo período iniciativas de planejamento central através da CEPAL inicialmente e que se chocaram com os limites da própria burguesia brasileira.

Essa rica trajetória abre todo um leque de problemas teóricos e políticos no campo do marxismo, mas também de diferentes correntes e concepções que buscavam apontar limites ou alternativas de superação do capitalismo e da democracia burguesa. As experiências de planificação centralizada e burocrática como ocorreram, entre outros, na URSS e Cuba em determinados períodos, possuem contribuições para o debate? A autogestão coletivista de fábricas e fazendas possui viabilidade sem algum tipo de centralização e articulação? A lei do valor deveria seguir sendo utilizada como referencial de articulação de uma economia de transição e mesmo socialista? De que forma assegurar a propriedade social conquistada revolucionariamente em um país, como um processo de transição socialista, sem a perspectiva da revolução mundial? A deformação burocrática da planificação soviética e o desmoronamento do “socialismo num só país” na URSS e seus satélites, que serviu de cobertura para a tirania de burocracias stalinistas, teria como alternativa a restauração capitalista sob o manto de um suposto” socialismo de mercado”?

Para além do balanço histórico do passado, há inúmeras outras questões a debater e que são atuais; como o debate sobre a transição socialista e o uso sistemático de tecnologias da gestão e planejamento econômico. Para além do salto de produtividade – irão permitir ou facilitar um salto à planificação socialista? Há certa ilusão tecnológica e midiática ou mesmo a crença no poder emancipador da ciência como substituta da produção de valor pela classe trabalhadora e que se difunde em muitos setores que buscam caminhos emancipatórios. Mas podemos afirmar que os avanços tecnológicos sob o capitalismo, por si sós, significam desenvolvimento das forças produtivas se a principal força produtiva – o trabalho humano que produz valor – regride em seus direitos sociais e condições de vida? A história tem revelado em inúmeras experiências de luta que não há atalhos ao desafio de seguir organizando os oprimidos em torno da classe trabalhadora, para organizar a resistência e a construção, a partir de suas experiências concretas, da gestão democrática da economia planificada socialista. Esse livro constrói reflexões em torno desses desafios.

Alberto Handfas analisa em A Nova Política Econômica na URSS: transição necessária, armadilhas de implementação e gargalos na industrialização o papel da planificação econômica na transição ao socialismo e as propostas da Nova Política Econômica (NEP) na Rússia soviética. Para tanto são contrastados seus objetivos originais, tal qual foram sugeridos por Lênin e aprovados nas instâncias de poder soviético no início de 1921, com as medidas efetivamente implementadas mais tarde, no avançar da década, pelo governo – em meio a grandes desproporções setoriais e gargalos industriais. Sob a luz de dados macroeconômicos e fatos históricos, são avaliados tais contrastes frente aos debates teóricos e políticos travados no período entre as várias posições que se formaram no interior do Partido Bolchevique (Comunista) – desde as elaborações iniciais (pré-1917) de Lênin, Trotsky e (o jovem) Bukhárin, sobre o conteúdo programático da Revolução na Rússia, até as contribuições econômicas desenvolvidas posteriormente pelas Oposições de Esquerda e Unida, por Preobrazhenski, por Bukhárin e seus apoiadores (incluindo Stalin) no governo.

O capítulo Mário Pedrosa: desenvolvimento e planificação econômica socialista no Brasil, de Everaldo Andrade resgata do célebre crítico de arte e militante socialista suas elaborações teóricas e políticas sobre o desenvolvimento econômico, a planificação socialista e os impasses do capitalismo e que foram redigidas no início da ditadura de 1964. Dentre os vários textos de sua vasta obra teórica e política destacam-se em particular os livros Opção Imperialista e Opção Brasileira, ambos lançados em 1966 nos quais avançou uma série de propostas e análises originais e críticas econômicas às teorias desenvolvimentistas em voga na época. Pedrosa analisa as tendências do imperialismo estadunidense, o papel exercido pelos grandes monopólios capitalistas e os compara com a alternativa da economia planificada soviética de então. Ao mesmo tempo faz uma crítica refinada e balanço crítico das políticas econômicas de planejamento econômico lideradas por Celso Furtado no Brasil pré-ditadura, buscando sacar perspectivas para a luta socialista e as possibilidades de uma economia planificada de transição ao socialismo no Brasil a partir do protagonismo das classes trabalhadoras.

O capítulo A experiência brasileira de planejamento econômico – realizações e limitações, de Roberto Vital Anav, se concentram em problematizar desde uma síntese histórica do Processo de Substituição de Importações (PSI) induzido pelo Estado, as estratégias e limites da burguesia brasileira em relação às políticas econômicas. Essa burguesia nascente, já de certa importância (embora afastada do poder) em 1930, passa a se fortalecer e a beneficiar-se da política deliberada de industrialização, seguida durante meio século. Qual a relação dessa burguesia com o Estado impulsionador dessas políticas e com a classe trabalhadora? Qual seu papel na ampliação e diversificação industrial do período? Nota-se que mesmo após o golpe de 1964, embora tenha havido uma profunda ruptura institucional, de fato muitas das políticas econômicas anteriores permaneceram. Os grupos que ascenderam ao poder em conjunto com os militares, embora tivessem derrotado os segmentos políticos, técnicos e intelectuais associados ao nacional-desenvolvimentismo, mantiveram e até reforçaram muitas de suas políticas e instrumentos. Planejamento passou a ser atividade regular, praticamente permanente, do Estado brasileiro, em especial na esfera nacional (federal), que é exemplificado por três planos econômicos aplicados durante a ditadura militar e que são analisados no texto.

O texto de Edgar Suzuki Kibutz e a “religião” do trabalho coletivo: uma breve e incerta história econômica no deserto percorre a gênese da comunidade kibutz nos territórios da Palestina e Israel e o desenvolvimento dos princípios organizadores do igualitarismo comunal; buscando-se dialogar com concepções incrustadas em textos antigos e modernos. São estudos a origem, estrutura e funcionamento dessas organizações no contexto do movimento sionista de colonização e do impacto do domínio britânico (Mandato) na geopolítica do entre guerras. O peso das concepções religiosas guarda peso significativo nas práticas econômicas e organizativas analisadas.

Em Hipóteses de Planificação Econômica e Gestão Operária na Bolívia (1952-1971) e no Peru (1968-1975), Everaldo Andrade analisa duas experiências históricas ou alternativas teóricas de planificação, gestão ou desenvolvimento econômico socialista ocorridas na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970. Nesse período específico podemos destacar especificamente quatro países em que esses debates e ações se desenvolveram com maior intensidade: o início da planificação econômica cubana após 1961, as iniciativas econômicas no Chile durante o governo de Allende (1970-1973), a cogestão e o projeto de gestão majoritária da mineração boliviana durante a revolução de 1952 e depois em 1971, e por fim, a pouco conhecida experiência econômica peruana no governo militar do general Velasco Alvarado (1968-1975) de formação das Comunidades de Trabalho e do SINAMOS (Sistema Nacional de Mobilização Social) que permitiu um experimento de cogestão operária de empresas e fazendas no campo. Aqui se busca apresentar e analisar brevemente as duas últimas experiências ocorridas na Bolívia e Peru e a possibilidades de terem se tornado processos de transição e em ruptura com a economia de mercado e o capitalismo.

Luiz Bernardo Pericás analisa em seu texto as importantes mudanças ocorridas no sistema econômico cubano de planificação entre as décadas de 1970 e 1980. Nesse período houve uma aproximação e incorporação intensiva de métodos e técnicas de planificação principalmente da então União Soviética, além da incorporação de CUBA no Comecon. Essa nova concepção incorporava critérios e concepções de mercado à planificação e já teria sido criticada por Che Guevara no princípio da planificação socialista cubana na década de 1960. Embora tenha havido evidentes avanços na industrialização e diversificação da ilha, muitos dos limites ou características estruturais pouco se modificaram, como a exportação de açúcar e a balança comercial deficitária. A crise desse modelo no final da década de 1980 coincidiu com o fim da URSS e das economias de propriedade social do Leste europeu. A continuidade da planificação socialista pelo governo cubano buscou criticar esse período como parte de um amplo processo de reformas econômicas a partir da década de 1990.

A continuidade desse debate segue no capítulo “Do período inicial aos Lineamientos: um panorama da atualização do modelo cubano, 1990-2019 de Vitor Schincariol. Desde o fim da União Soviética e do antigo bloco socialista (Comecon – Comitê para Assistência Econômica Mútua) a economia cubana vem sendo gradualmente reformada (‘atualizada’, segundo os dirigentes) em uma série de aspectos importantes no que se refere ao funcionamento de seu sistema de planejamento socialista. Isso se traduziu particularmente em uma maior autonomia dada às empresas do estado, à aceitação e regulamentação do trabalho por conta própria (‘cuentapropismo’), à reformulação de aspectos importantes dos serviços públicos e à ênfase no turismo como fonte geradora de renda e divisas. O texto faz um balanço resumido da evolução de aspectos da planificação socialista em Cuba, com foco particularmente na fase posterior ao chamado período especial (1990 em diante).

Utiliza-se como base a literatura especializada sobre Cuba, documentos oficiais do governo cubano e dados estatísticos oficiais. O texto afirma que se levadas em conta as dificuldades econômicas postas pelo desaparecimento do mercado mundial socialista, pelo recrudescimento do embargo estadunidense durante todo o período e pela necessidade de reestruturar de forma rápida seu modelo econômico, as reformas econômicas introduzidas ao longo do chamado período especial (1990 em diante) podem ser consideradas como de relativo sucesso.

*Everaldo de Oliveira Andrade é professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Bolívia: democracia e revolução. A Comuna de La Paz de 1971 (Alameda).

Referência

Everaldo de Oliveira Andrade (org.). Economia socialista: experiências históricas de planificação econômica e debates atuais sobre a transição. São Paulo, LEPHE e Maria Antônia edições, 2022.

 

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