A farsa religiosa do fascismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

“Deus acima de todos” é o refrão predileto do Presidente que instaurou a necrofilia política, a corrupção perdoada quando é contra o “comunismo”, a defesa da tortura e reuniu no governo uma falange de insanos

Por Tarso Genro*

O fascismo falsifica Deus, a religião e a nação para mentir todos os dias. Sirvo-me novamente do meu predileto judeu-americano Philip Roth para tentar dizer algo de novo sobre o nosso inferno. Nele o nazismo já está no quotidiano e o tempo de espera – para chegarmos às portas de saída – está cada vez mais distante. No livro O avesso da vida (Companhia das Letras), o personagem Grossman, “marca passo no coração e óculos no nariz”, diz: “o dinheiro – está tudo à venda – e é isso que conta. Os jovens estão cheios de desespero. As drogas são apenas desespero. Ninguém tem vontade de se sentir assim tão bem se não estiver profundamente desesperado”. A droga pesada de cada um é uma opção, mas é mediação da desgraça da vida dentro do tempo curto que ajuda tanto a sobreviver como a matar-se. Ou matar.

A droga de Bolsonaro é a política. E a droga de grande parte da mídia tradicional é a sublimação dele, como anestésico da democracia com a cumplicidade acordada pelas reformas.“Deus acima de todos” é o refrão predileto do Presidente que instaurou a necrofilia política, a corrupção perdoada quando é contra o “comunismo”, a defesa da tortura como método de investigação (vinda do medievo) e juntou – no governo – uma falange de insanos: uns acreditam que a terra é plana, outros enxergam Cristo na Goiabeira, além dos criacionistas, dos nazistas puros, dos milicianos, dos conselheiros da abstinência sexual e dos indecentes ajoelhados perante o tacape do Império.

Alguém acha que o Presidente acredita realmente num Deus sempre presente nos seus apelos à humildade, mas um Deus que não seja ele mesmo? Spinoza dizia que se Deus é infinito “não pode existir nada que não seja Deus”. E, se encontrarmos algo “que não seja Deus”, é porque Ele não é infinito, pois “todos somos partes de Deus, mas também o são as pedras, formigas, folhas de grama e janelas” (…); “as coisas estão integradas em um todo incrivelmente complexo, mas em última instância, tudo o que existe é parte de uma única coisa: Deus”. Deus é tudo, o absoluto.

Para Spinoza, judeus, cristãos, negros, índios, homossexuais, islâmicos, a natureza, loucos, sãos, doentes, ateus e crentes, todos somos Deus. Todavia, o grande problema desta interpretação teológica de Spinoza, que aparece em Nigel Warburton, é quando os insanos radicais estão no poder e identificam a humanidade com a sua quadratura doente do mundo.

O mistério de Bolsonaro é conseguir manter coerência contra todos os mandamentos do cristianismo e avocar Deus como seu cúmplice irrestrito e ser aceito. Quem consegue fazer isso e ter uma minoritária, mas eficiente e organizada base social, é porque subsumiu Deus na sua palavra eleita e, ao invés de representar aquele que é o infinito, tornou-se – ele próprio – não a sua representação, mas a sua presença completa.

Carl Schmitt, o jurista teórico do direito nazista, que jamais pagou pelos seus crimes, quando escreveu que o “Führer comanda(va) o Direito” e estava ungindo Hitler à condição de um Deus nacional, atribuiria a ele o poder de dizer o que era um crime contra o Estado e o que era o pecado contra a sua própria condição divina.

Esta seria apenas – é verdade – uma das análises do fenômeno bolsonárico, que não será superado pelos métodos e estratégias tradicionais da política moderna, fundada na “razão dos líderes” e na “emoção das massas”. A própria razão (mercantil) é hoje um instrumento radical de poder da atual burocracia política do fascismo e a “emoção” pode responder – e cada vez mais – somente aos apelos do dinheiro. Na sociedade em que o mercado absorve o Estado (onde a emoção se faz num fluxo de informações sem destino definido pela humanidade de cada um), os instintos mais elementares de sobrevivência são processados no vórtice da dominação fascista.

Nossos líderes, atrevo-me a dizer, devem compreender que, na sociedade atual, a exploração capitalista clássica está integrada com a criação das condições para a depressão coletiva, que se faz como soma de individualidades separadas, não como sínteses de um novo espírito coletivo. Estas – ao se tornarem um fenômeno de massas – trazem consigo não o sentido coletivo da Praça, expresso como movimentos libertários de protestos comandados pela política tradicional, mas sim – como no Chile – pela solidão conjunta engendrada nas redes, que, de repente, surpreendem a política e os seus partidos clássicos da sociedade industrial.

A pluralidade isolada das lideranças da esquerda “representa” esta fragmentação, com seus “nacos” de emoções deprimidas. Por isso, enquanto elas não falarem uma linguagem comum, que responda às condições de exploração e depressão combinadas, o fascismo vai continuar vencendo, pois ele oferece a segurança e a força, nós a indeterminação sobre o futuro. Falem juntos, a partir de uma grande mesa democrática, Lula, Requião, Suplicy, Boulos, Haddad, Dino, Pimenta, Manuela, Juliano, Jandira, Roberto Amaral, pois o que importa agora não é o número de seguidores que hoje os escutarão, mas o que a palavra unitária e sensata pode reunir e programar para bloquear o futuro mortal do fascismo.

Maria Rita Kehll diz que, se o “amor” é o conjunto de laços que atam o sujeito à vida aliado a representações imaginárias que produzem sentido à existência, a depressão pode ser entendida como uma imperfeição amorosa. Só a política autêntica, unitária e democrática – impiedosa com os anti-valores da morte – pode combater esta imperfeição e transformá-la em rebeldia coletiva. Falar em separado aos dispersos é legitimar sua solidão e consolidar seu abandono. Unir as diferentes solidões exploradas com palavra unitária é reiniciar a emancipação interrompida pelo fascismo, que quer ocupar o lugar de Deus, seja ele infinito ou apenas um reflexo pensado pela nossa imperfeição humana.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES