Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Introdução do autor ao livro recém-lançado
A revolução das rotinas administrativas na ação educativo-cultural ocorrida na São Paulo de quase 1 milhão de habitantes, dirigida pelo líder modernista Mário de Andrade, realizou-se em tempo sombrio da República, mas fez-se ponte projetada para tempos democráticos, em que a cidadania importa e decide. A instituição de mudanças no serviço público da ex-pauliceia desvairada vigorou na cidade de São Paulo, 1935-1938, sob Estado Novo, responsável pelo seu desmantelamento nos primeiros meses de 1938.
O primeiro ato do desmonte sob o novo prefeito, Prestes Maia, foi a demissão do diretor Mário de Andrade. Uma administração cultural que inspirou Paris e revelou novos sujeitos da planificação cultural da metrópole excedeu, por certo, a expectativa do regime de exceção e sua rede de próceres partidários. Mas que foi uma revolução, isso foi.
A ideia do livro nasce de três leituras: a dos documentos guardados por Mário, hoje Fundo Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) e a outra, de igual importância, do Antonio Candido presente no prefácio de Mário de Andrade por ele mesmo (1971) e em Literatura e sociedade (1976).[i]
Enquanto os textos do líder Modernista apontaram para novos pensamentos e fazeres administrativos a partir da cultura e muito próximos ao povo mestiço-migrante-imigrante de São Paulo, o documento dos educadores e intelectuais, três anos antes, juntara, indissoluvelmente, educação e cultura num projeto político único para o Brasil; a educação seria cultural e a cultura educativa, o que livraria a escola da rigidez e da alienação social. Do mesmo modo, Candido revelava sua apreciação madura a respeito da década que terminaria sob a ditadura de Getúlio Vargas. Algumas citações do mestre Candido são imprescindíveis.
“O mulato e o negro são definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração e exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem. (p.120) […]Nele (Modernismo), e sobretudo na culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40), fundiram-se a libertação do academismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social; o ardor de conhecer o país” (p. 124, 1976).
Ocorre que a apreciação de Candido excede a visão sociocultural e permite compreender também o pensamento administrativo. Ele escreve o prefácio ao livro de Duarte (1971, p. XIII a XVII). Na obra em que Mário é a única personagem, sujeito da memória e do carinho de Duarte, fica patente que os objetivos modernistas se projetam em direção à administração pública. Num ponto do prefácio afirma: “Não apenas a rotinização da cultura, mas a tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas”.
Refere-se também ao intercâmbio de correspondência entre Mário de Andrade e Paulo Duarte, no qual as diretrizes do DCR ficaram patentes: “… fazer da arte e do saber um bem comum para incorporar as conquistas do Moderno à tradição que ele veio atualizar e fecundar: para extrair dos grandes ideais do decênio de 1920 as consequências no terreno da educação e da pesquisa”. Candido não deixa por menos e arremata: “E até hoje na cidade de São Paulo, a cultura assim concebida não encontrou manifestações semelhantes; o que existe é ruína ou desenvolvimento do que então se fez”. Candido labora numa pedagogia da administração pública, isto é, analisa aquela ação política de governo. Mas sua sempre brilhante crítica somente se dirige aos potenciais adversários do Departamento, os contemporâneos e os pósteros.
A conjunção das três leituras moveu a construção do livro ora apresentado. Do mesmo modo, indicou a abordagem necessária: pensar a cultura institucional do Departamento de Cultura e Recreação do prefeito Fábio da Silva Prado como valor de governo instituído pelo “aprendizado” do grupo intelectual modernista a serviço do bem-comum no Estado local. Como base deste grupo têm-se Mário, Rubens Borba de Moraes, Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Luiz Saia, Oneyda Alvarenga.
A leitura política desse grupo dirigente do Departamento de Cultura e Recreação – DCR – a respeito do serviço público na São Paulo dos anos de 1930 solidifica, nos termos dos achados da pesquisa, o que Candido tão bem esclareceu: arrancar os saberes e a fruição da posse exclusiva das elites para “transformá-la em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas” O sentido de humanização em Candido coincide com a ideia fundamental de Paulo Freire em Pedagogia do oprimido, notadamente para quem lê o livro manuscrito de 1968. A humanização não poderia existir fora de um quadro real da desumanização. Em Freire, também a humanização se dirige às maiorias.
Cabe destacar que a bibliografia da área administrativa e outros saberes aplicados foram necessários, notadamente textos de Linda Smircich (2006)[ii], Edgar Schein (2006)[iii] e Max Weber (1963)[iv], ao lado de obras que operam a crítica documental ou agregam metodologias, como Chartier (1990)[v], Creswell (2010)[vi] Orlandi (2008)[vii] e Fairclough (2008)[viii]. A forte leitura crítica dos modos de administrar no Brasil, operada por Guerreiro Ramos (1950)[ix], teve presença no pensamento organizacional que ampliou a revelação da experiência estudada.
Destarte, a natureza do trabalho construído exige que as significações daquele serviço ao público, ou ao bem-comum urbano, sejam dispostas neste ponto do texto, pois elas dialogam com os dados e fatos que se seguem, realizando, pois, uma rede maior de sentidos que tanto remete ao texto completo da análise como a uma teoria da cultura organizacional da obra cultural-educativa dirigida por Mário de Andrade.
Deste modo, o que significa, nesta obra, aquele serviço público cultural, educativo e recreativo, ou aquela cultura institucional?
(1) Revela-se uma atitude laboral e administrativa que se institui já na linguagem que a organiza e dinamiza, o ato 861 do Prefeito Fábio da Silva Prado. Os documentos performativos da administração cultural-educativa respondem a um projeto longamente mentalizado pelo grupo, e que se organiza em 1935 como um feixe linguístico, representação de uma totalidade sempre buscada nos textos que Mário escreve durante a administração. As Cinco Crônicas de Mário de Andrade (1920-1921), organizadas e introduzidas por Telê Ancona Lopez (2004) e dedicadas a São Paulo, buscam um “todo” na urbanidade da pauliceia, ainda tímida e já fragmentada. Talvez o todo somente seja possível pelo amor empenhado, interstício visível em textos do Mário. Ora, esse amor é o mesmo no diretor do Departamento daquele interregno de golpes e revoltas dos anos de 1930.
(2) Fica patente, do mesmo modo, um serviço ao bem-comum da jovem metrópole, cuja cultura administrativa não configura uma política cultural, conceito muito mais jovem, mas uma prática que revoluciona rotinas e cria uma qualidade social capaz de furar o cerco das décadas posteriores e dialogar com novas administrações da cultura e da educação dos anos de 1990 e seguintes. Tal alcance sedimenta o valor de uma administração não-modelar ou impulsionada por um marketing especial, mas um libelo contra as administrações da cultura/educação anêmicas, anômicas, partidaristas e fragmentadas pela divisão das mediocridades que as dirigem na maioria das cidades brasileiras.
(3) Vê-se ali um plano de governo matricial e integrador via educação cultural ou cultura educativa, capaz de garantir consistência ao símbolo da totalidade em movimento, ou totalidade dinâmica. Dado o nível intelectual e técnico daquela elaboração, o trabalho do DCR atraiu a atenção de várias cidades europeias, ao mesmo tempo em que desagradou a muitos próceres de partidos políticos de algum modo ligados a setores do governo. Os pontos centrais da brilhante conferência O Movimento Modernista, de 1942, permitem uma memória que se casa com os sentidos realizados no trabalho de administração pública: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional.
(4) Em consequência, a matriz de trabalho agrega ações científicas, técnicas e pedagógicas aos valores estéticos e éticos do plano maior de governo e, deste modo, cria solidez na comunicação, quer com muitas cidades brasileiras, quer com o exterior. Do mesmo modo, com o futuro democrático do Brasil.
(5) Enfim, para começar, constata-se uma política de inclusão de crianças. jovens, educadores/as, estudantes, artistas, pessoas ligadas às técnicas, trabalhadores/as da cidade e do campo e professores/as da universidade nascente, o que sugere o amadurecimento político do Modernismo e sua inscrição num devir em que os criadores e divulgadores de cultura sejam efetivos cidadãos e cidadãs.
O Acto 861, dos primeiros meses de 1935, nomeia Mário como diretor de Cultura e Recreação e assume um projeto completo de serviço a favor do universo humano composto em sua maioria por imigrantes e migrantes, sucedidos por sua descendência. Quem são eles e elas senão uma gente trabalhadora na cidade do crescente industrialismo e sua parceira, a especulação imobiliária? Nessa cidade já complexa os sujeitos da prioridade de Mário e seus colegas de trabalho são as crianças, os adolescentes e os jovens, dentro e fora dos parques e escolas, filhos e filhas dos trabalhadores da urbe que se espalhava pelas várzeas distantes do Tietê e do Tamanduateí, a formar os lugares de vida dos homens e mulheres de ofício. Não a cidade dos Bandeirantes, a terra do ir, mas a cidade de migrantes e imigrantes, terra do ir e do vir. Esse o encanto do diretor Mário.
O que também impressiona nessa administração público-social, que combina o fazer de governo e a presença ativa da sociedade organizada, é sua base científica, seu trabalho de pesquisa qualitativo-quantitativa, fenômeno estranho a governos de ontem e de hoje. Inquéritos, organizações de acervo, entrevistas, catalogação, organização de patrimônio, recolha e estudo de expressões populares diversas tanto no sertão do Brasil quando em dezenas de cidades paulistas.
A citação que segue, resultado de um “inquérito”, ajuda a compreender com quem trabalhava a equipe de Mário e o que viria a significar o serviço público: “Obtivémos informações da renda e das despesas de 221 famílias, e nem a todas foram pedidas informações sobre a nacionalidade e o analfabetismo, o que foi feito só com 151 famílias. No entanto, esse grupo de 151 famílias é provavelmente carateristico do grupo total. Oitenta familias disseram que o chefe nascera no Brasil, e das outras 53 procediam: da Italia (32), da Hespanha (12) e de Portugal (9). Foram ainda analisadas tres famílias de imigrantes japoneses, tres da Lituania e tres da Austria (provavelmente de terras austríacas conforme os limites de antes da guerra), sendo que as restantes que forneceram informações provinham da Inglaterra, da Youguslavia, da Polonia, da Alemanha, da Syria, da Russia, da Argentina e da Hungria. Se os algarismos que obtivemos sobre alfabetização, forem caraterísticos da classe operaria inteira, eles indicam que São Paulo, conseguiu um considerável progresso, desde 1920, no caminho da instrução. Entre 151 famílias que nos informaram a respeito, só eram analfabetas 21% das pessoas de 13 anos ou mais. Observamos que nas famílias hespanholas e lituanas a proporção de analfabetos era mais alta, ao passo que nas italianas, portuguesas e brasileiro-natas, oscilou entre 16,4, 18%”.
“Inquéritos” como este deram o norte da gestão público-social. Revelaram a criançada espalhada pelos bairros, mostraram a condição das famílias, suas origens, seus falares e seus envolvimentos culturais e educativos (ou a inércia e a alienação na “concentração” paulistana, nos termos de Prado Junior, 1966); assim, formaram uma base científica para a ação cultural, inclusive para o grande movimento Jardim da Infância e educação totalizada educativo-cultural. Totalidade é um termo obsessivo em Mário. Talvez aquela obsessão dos criadores de que falava Candido nas aulas de pós-graduação que frequentei na FFLCH-USP.
Outra atividade marcadamente científica foi a inclusão de Dina Dreyfus (Lévi-Strauss) no projeto etnológico e etnográfico do DCR. Dina, presente mas não plenamente no grupo de professores que trabalhou na USP nascente, fortemente estimulada por Mário orientou uma ação longa e frutífera com estudantes e não-estudantes a serviço da coleta e da gravação de narrativas, danças e demais folguedos, tanto da região paulistana quanto de cidades do interior paulista. O resultado do trabalho estruturado e acompanhado ainda é um tesouro do fazer cultural dos mundos rural e periférico das cidades.
A surpreendente equipe do DCR tinha história, qual seja, o aprendizado sensível e corajoso do Modernismo dos anos de 1920, então transformado (nas suas intermináveis conversas grupais) em princípios, teorias, pedagogia e estratégias de gestão público-social da cultura e sua rede interativa (hoje seria chamada de política integrada ou matricial de governo): educação, saúde, recreação, gastronomia, pesquisa aplicada, higiene escolar, saneamento, desenvolvimento de bibliotecas, discografia, esportes, relações internacionais, cinema, música erudita, popular, folclórica e artes poéticas. Observe-se que o primado da cultura como uma totalidade política foi o eixo do serviço integrado e integrador. A enunciação dos objetivos de trabalho para o DCR, inserto nos atos oficiais e vivido nas práticas de governo não deixam margem a dúvidas.
Cite-se, literalmente: “(a) Estimular e desenvolver todas as iniciativas destinadas a favorecer o movimento educacional, artístico e cultural; (b) promover e organizar espetáculos de arte e cooperar em um conjunto systematico de medidas, para o desenvolvimento da arte dramática, e, em geral, da musica, do canto, do theatro e do cinema; (c) pôr ao alcance de todos, pelos serviços de uma estação rádio-diffusora palestras e cursos populares de organização literária e científica, cursos e conferencias universitárias, sessões literárias e artísticas, enfim, tudo o que possa contribuir para o aperfeiçoamento e extensão da cultura; (d) crear e organizar bibliotecas públicas, de forma a contribuir efficazmente para a diffusão da cultura em todas as camadas da população; (e) organizar, installar e dirigir parques infantis, campos de athletismo, piscinas e estádio da cidade de São Paulo para certames esportivos nacionaes e internacionais; (f) fiscalizar todas as instituições recreativas e os divertimentos públicos de caracter permanente ou transitório que forem estabelecidos no município; (g) recolher, colleccionar, restaurar e publicar documentos antigos, material e dados históricos e sociaes, que facilitem as pesquizas e estudos sobre a historia da cidade de São Paulo, suas instituições e organizações, em todos os dominios da actividade”. (Acto 861)
O trabalho analítico revela, de imediato, os pilares do pensamento dos dirigentes do DCR, isto é, a totalidade e o movimento, transversalizados pela atitude científica, que porta a base epistemológica a par do plano de governo. A administração, até então dirigida a grupos selecionados, especialmente nas áreas de cultura e educação, abre-se a todos e todas, abre-se ao São Paulo humano e, a considerar as práticas propostas, dirige-se, preferencialmente, às crianças, adolescentes e jovens. Mário usa termos incomuns para o serviço público do tempo, quando propõe a prioridade ao “movimento educacional, artístico e cultural” (desenvolver todas as iniciativas, cooperar em conjunto systemático de medidas, fiscalizar as instituições privadas, publicar documentos em todos os domínios da atividade).
Leem-se duros embates de Mário contra empresas em trabalho de lobby a favor da ocupação do Teatro Municipal de São Paulo pelas operetas costumeiras ao gosto das exclusivas elites. Enquanto busca enquadrá-las, propõe a abertura de todos os equipamentos e todas as modalidades estético-culturais, recreativas e educacionais. Sua veemência sugere que o Prefeito ouvia reclamações dos lobistas de espetáculos, mas também revela a leitura política que tais intelectuais fazem de São Paulo e do Brasil. Hoje diríamos que eles realizaram a inversão de prioridades, pelo menos durante três anos.
Como decorrência, o serviço público educativo, cultural e recreativo terá de estar disponível a todos os setores da população, deverá contar com “inquéritos” que permitam compreender quem são os munícipes, inclusive suas histórias familiares e sua origem e terá de construir novos públicos e novos participantes segundo seu prazer, sua vocação e seu interesse. Aí a ideia modernista de liberdade, inclusive estética. Nos seus discursos, gravações e fotos fica evidente que a administração é vivida pelos munícipes, a grande maioria de jovens escolares, que passaram a se educar dentro e fora das escolas, isto é, na totalidade dos equipamentos públicos de São Paulo.
Sistematicamente, documentos escritos por Mário fazem ver a cultura educativa, ou a educação cultural, a qual não prescinde da arte, da saúde, das tecnologias, dos saberes desejados e necessários a uma vida também total, integral.
Os desejos e as leituras encontradas nas Crônicas, citadas, nos versos de Pauliceia Desvairada e noutros textos, nunca como relação de causa e efeito, mas sim conexão intelectual em busca de uma totalidade compreensível, saltam vivos e ativos nas práticas da gestão naquele segundo tempo modernista. “São Paulo! Comoção de minha vida”.
Além de todos os valores significados, essa totalidade confronta e ilumina o que ainda se manifesta na sociedade brasileira: o abandono da educação e da cultura em muitas cidades, a inércia, os preconceitos de classe e posição na rigidez e na ausência de estímulos e vivências culturais, o espontaneísmo do serviço público (seu desinteresse pela pesquisa e pelo conhecimento) e, pior, sua submissão à voracidade partidarista e ao privatismo como panaceia.
Mário tinha exigências em relação à educação cultural. Ele negava a escola centrada nas primeiras letras e suas carteiras enfileiradas. A alfabetização, para ele, era um ato complexo – como vivido em todas as faces daquela administração – de ações culturais, higiene, brincadeiras, livros, inquéritos, audições, diálogo, pesquisa, esportes e cadernos. Fora desse campo de significações não se entenderia o pensamento mariodeandradiano. Em consequência, os policiais dos “museus que ensinam”, abertos, barulhentos, animados, serão as pessoas do povo. A segurança do equipamento público reside na totalidade de sua dinâmica cultural. Agentes da cultura também são agentes da guarda e do cuidado. Museu barulhento é escola, é processo educativo.
Num dos muitos textos que dirige ao prefeito Fabio Prado, ele argumenta para além de São Paulo: “Ás municipalidades deverá caber mais particularmente os sistemas de cultura geral, não especificamente didáticos, mas que concorrem a facilitar, alargar e aprofundar a educação totalizada[x] de sua gente, Os esportes, a socialização da criança, a higiene mental, as bibliotecas, as artes, a observação das tradições etc., são outras tantas obras de natureza cultural, embora não especificamente didáticas, com que as municipalidades devem ajudar na educação do brasileiro. Si tal interpretação é pessoal, desta diretoria, nem por isso deixa de ser logica e baseada no espírito de toda a ação dos governos Federal e Estadual” (p. 217).
Para complementar, sua leitura específica dos museus que ensinam: “Os museus municipais devem ter outra constituição que será regulamentada pelos govêrnos centrais. Devem conter de tudo. Devem ser museus arqueológicos, folclóricos, históricos, artísticos e também de ar livre e indústria. Se num edifício central do município se guardam um tronco de escravos, umas cestas trançadas, uns desenhos-cópias de petrogrifos existentes na região, uma cadeira de jacarandá entalhado, uma bandeira da Guerra do Paraguai, um quadro de boa pintura e uma cópia de Fídias, haverá também um jardim com papiris ameríndios, taipas caipiras, pinguelas, porteiras, seriação progressiva de cultivo dos vegetais da região etc. E também não esquecer as indústrias do município”.
Mário e sua equipe em 1935 a 1938 construíram um conceito ainda não realizado na educação brasileira: cultura e educação não são um binômio, mas sim uma unidade. Ou, se quisermos, a ideia de cultura como educação totalizada, como escrito pelo líder modernista. Educa-se na cultura. Não é distinto de Freire, para quem se educa no confronto com e nas leituras do mundo. A cisão dessa totalidade, no contexto do culturalismo e do patrimonialismo brasileiro, parceiros capitalistas, representou não somente a vitória dos elitismos econômico-culturais, mas também a decadência da pedagogia e da didática, que deixaram de ser culturais.
Enfim, no limiar do ano de 1938 o Estado Novo criou as intrigas necessárias para submeter São Paulo, o estado rebelde e liquidar a experiência modernista da jovem metrópole por meio de títeres, cujo único entendimento de cultura residia nas ocasionais apresentações de óperas importadas e sonolentas para a mirrada elite de binóculos em punho em seus camarotes. Ou em matéria de educação, ter a criança na escola em função do be-a-bá e dos currículos impostos. Aliás, até hoje e talvez pior do que antes.
À guisa de interpretação, cabe dizer que a revolução das rotinas teria de ocorrer, pois a equipe dirigida por Mário trabalhava noite e dia, escrevia, produzia relações entre cidades (sejam o Rio de Janeiro, Paris, Praga, Buenos Aires e Belo Horizonte, sejam São Luiz do Paraitinga ou Araraquara), acompanhava pesquisas de opinião, financiava viagens para o sertão na recolha de canções e narrativas e buscava contratar chefe de cozinha para uma experiência de merenda escolar ao gosto das crianças provenientes de diferentes origens.
Como já posto, parte significativa do material folclórico encontrado na seção competente dos arquivos do Congresso Americano foi produzido naqueles três anos, sob a batuta de Mário e Oneyda, com apoio de Rubens Borba e Paulo Duarte. Do mesmo modo, as municipalidades de Paris e de Praga enviaram emissários para conhecer a ação cultural empreendida em São Paulo. A partir daí sucederam-se missões e intercâmbios entre a Europa e a crescente São Paulo. Mas tudo em três anos!
Os munícipes viram a instituição dos esportes coordenados por pares, grupos de adolescentes em ação de monitoramento nas várzeas, campos e barracões, mas também na região do Pacaembu. Encontrou as famílias das crianças e adolescentes sendo inquiridas sobre seus interesses culturais e educacionais, a par da avaliação do trabalho do Departamento. Experimentou as bibliotecas circulantes, sob vários formatos e, como acordo simbólico e ponto de honra da equipe introduziu-se novo público no Teatro Municipal, além da ampla circulação de livros, filmes e discos.
Viram, também, saírem a campo grupos de monitores de pesquisa folclórica, não somente de São Paulo como de dezenas de cidades do interior paulista, envolvidos em acompanhar, observar, gravar e narrar cantorias, danças e expressões religiosas diversas do então chamado “mundo caipira”. Acompanhou a ampliação das bibliotecas nos bairros e a riqueza do ensino infantil, obsessão do diretor do DCR.
Entre tantos outros, não é possível deixar de citar um dos testemunhos de Mário, em carta para Oneyda Alvarenga: “Desde uns dois dias do 5 de junho em que tomei posse nada, mas absolutamente nada mais fiz do que trabalhar, sonhar, respirar, conversar, viver Departamento. […] Mas vem cá, Oneida, pense um bocado no que é, com a burocracia nacional, ter de instalar um Departamento de enorme complexidade, em que, a bem dizer não havia nada feito!”.
A revolução de Mário e sua equipe de trabalho criava homologia entre o sonho de mudança social da década anterior e a revolução na rotina pública em solo firme, naquela São Paulo que parecia um acampamento de trabalho, de linguagens, de memórias e de saudades. Tais desejos e carências faziam-se serviços. A revolução residia na irrupção do novo consentido, investido e assumido no confronto da cultura aprisionada pelos grupinhos de poder econômico-financeiro. O autor não usa a expressão política cultural para o que descreve, analisa e narra, pois a considera ainda estranha ao fazer concreto do poder público junto à população daquele tempo. A ideia de serviço é presente em todas as manifestações do diretor Mário de Andrade. O servidor público é aquele que serve. Este foi o leit motiv dos modernistas aprendizes e operadores de governo.
Paulo Duarte, o amigo querido, confidente e correspondente contumaz, não deixou por menos diante da demissão de Mário por Prestes Maia em 1938. Para ele, tratou-se de encaminhar a morte do poeta, músico, missivista, professor, pesquisador, ativista cultural, contista, crítico de arte e tudo o mais que significasse a paixão pelos sentidos profundos da cultura na vida do mundo.
Enquanto Mário, em várias cartas, joga sobre suas costas erros administrativos (qual o erro de um demitido pelo estadonovismo autoritário depois de trabalhar dia e noite?) Paulo dirige toda a sua ira à ignorância e à má-fé dos arranjos politiqueiros assumidos pela prefeitura das avenidas, dos arruamentos e das instigantes empreiteiras. Chega a citar os horrores e a sujeira do inferno de Dante[xi] para justificar o definhamento do amigo, o qual, de fato, perambula entre São Paulo e Rio, trabalha no patrimônio histórico e na Universidade do Brasil (depois UFRJ), escreve e dirige pesquisas, mas sua “paixão” persiste, amplia-se o seu inconformismo diante do corte violento de um projeto que se cumpriria mais tarde, também via cultura, no governo da República posto nas mãos de Armando de Sales Oliveira.
O acúmulo educativo-cultural foi seccionado. Nada estranho na história cultural do Brasil, entre a ignorância, a má-fé política e o poder das elites locais e regionais. No entanto, quando o autor do livro foi Secretário de Educação, Cultura e Esportes de São Bernardo do Campo (ao tempo em que o foram Marilena Chauí e Paulo Freire em São Paulo) havia bastante informação sobre a experiência mariodeandradiana, visto que algumas teses e dissertações foram disseminadas nos encontros de secretários e secretárias de administrações municipais. A experiência de 1935-1938 fazia ponte para os tempos brasileiros da democracia, no caso da redemocratização associada à Constituição de 1988.
Nada incomum foi a releitura dos sentidos da biblioteca na vida da população, na produção musical, na interação com educação e esportes, às vezes turismo, no intercâmbio entre municipalidades para o desenvolvimento do folclore e dos folguedos comuns, bem como na busca de conhecer os interesses dos setores da população a quem sempre foram negados os direitos à formação e à criação.
Enfim, o Mário que se culpava por não ter “normalizado” o departamento na vida paulistana, de fato criara, não um modelo, mas um caminho crítico do fazer cultural diante da negação de direitos à cidade. Desse modo, ainda por várias gerações as sementes de 1935-1938 estarão presentes na sociedade cidadã, na terra de direitos garantidos, nos lugares onde se arranca o troféu exclusivista do poder de mando e o transforma em valor que cultiva e educa as novas gerações em seus percursos formativos, como pessoas autônomas, solidárias e participativas.
Além de tudo isso, este autor exige de si mesmo a memória. Em uma das aulas de pós-graduação da FFLCH-USP, anos de 1970, o mestre Antonio Candido afirmara “que se incomodava com o fato de que gerações vindouras pudessem pensar que Mário de Andrade fora o nome de um cometa que havia passado por São Paulo há muitos anos atrás”.
O “cometa” não cessa de passar.
Ah, se a equipe modernista liderada por Mário tivesse mais tempo… Bem, mas não haveria Estado Novo.
*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e participante das atividades da Cátedra Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Referência
Luiz Roberto Alves. Administrar via cultura (revolução educativo-cultural na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938). São Paulo, Alameda, 2022, 220 págs.
Notas
[i] Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 5.ed. São Paulo: Editora Nacional.
[ii] L’étude des organisations envisagées sous l’angle d’une culture. Auteurs et textes classiques de la théorie des organisations. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2006.
[iii] Playdoyer pour une conscience renouvelée de ce qu’e st la culturer organisationnelle. Auteurs et textes classiques de la théorie des organisations. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2006.
[iv] A Política como Vocação. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1963.
[v] CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
[vi] CRESWELL, John W. Projeto de Pesquisa. Métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2010.
[vii] ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Texto. Formulação e Circulação dos Sentidos. 3.ed. Campinas: Edição Pontes Editores, 2008.
[viii] FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília, Editora da UNB, 2008.
[ix] GUERREIRO RAMOS, A. Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950.
5.Grifo do diretor do DCR. Na sequência desta obra duas grandes categorias de pensamento se destacam, a ideia de totalidade e seu processo de comunicação. Mário quer construir uma totalidade e o móvel de sua insistência e de seus argumentos inovadores se realiza em atos recorrentes e persistentes de comunicação. Comunicação em Mário é pulsão de vida, na qual poética e intercâmbio de correspondência trançam os elos.
[xi] “gente attuffata in uno sterco/che da li uman privadi parea mosso”. O excerto completo no Canto XVIII, Inferno, Dante Alighieri, linhas 112-114, reza: “Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso/ vidi gente attuffata in uno sterco/che da li uman privadi parea mosso…”. Uma entre tantas traduções: “Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas.