Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE
Um balanço histórico, sociológico e econômico das atividades do Estado brasileiro na Amazônia
Em um dos seus romances o escritor manauara Márcio Souza constrói um amplo mosaico histórico, cultural e ficcional da Amazônia brasileira e sua relação com o Mundo desnudada no último quartel do século passado. O romance O fim do terceiro mundo estabelece não poucas pontes com o tratamento sociológico e econômico da significância humana da Amazônia neste início dos XXI, mas ponto forte naquele vai e vem poético construído pelo autor é a destemperança contínua do Estado nacional agindo sobre o inclemente devir daquelas sociedades que habitam sobre os rios e palafitas das terras de Ceuci, figura mitológica indígena que toma vida pelas mãos do romancista para tratar o choque histórico e social estabelecido na Amazônia contemporânea.
Seguindo os rastros de vários autores, mas muito especialmente os trabalhos Ditadura e agricultura, de Octavio Ianni; Geopolítica da Amazônia, de Berta Becker e Sinopse histórica da Amazônia, de Aluízio Leal, buscamos tratar quatro aspectos da intervenção estatal na Amazônia: (i) qual o quadro histórico em que se observa o papel do Estado nacional na expansão da acumulação capitalista na região desde o segundo pós-guerra; (ii) como o Estado atua como fator principal da expansão extensiva e intensiva do capitalismo, dentro de uma configuração de aprofundamento da dependência brasileira ao centro capitalista; (iii) as especificidades da relação entre a sub-periferia amazônica e o centro de poder econômico e político nacional; (iv) por fim, buscamos ensaiar alguns insights sobre o papel do Estado no período mais recente, especialmente dos últimos 20 anos.
Ceuci se encontra com o Leviatã
Com a decadência da economia gomífera amazônica ainda no final da década de 1910, a região amazônica passou a ter em grande medida uma dinâmica de “economia voltada para dentro”, apresentando baixa interação com a economia nacional por mais de trinta anos, como assinalam muitos intérpretes das realidades amazônicas, inclusive com a quase inexistência de intervenção do Estado nacional durante várias décadas posteriores aos anos 20 do século passado.
A sociedade amazônica pós-ciclo da borracha herdou uma série de dificuldades originadas das características da forma econômica estabelecida no período, um deles, talvez o mais grave, foi a baixa organização institucional, seja sob o ponto de vista de organização da sociedade, seja do ponto de vista da própria logica mercantil capitalista. Outro se referiu ao tratamento dos contingentes populacionais resultantes do período de “boom” da borracha. A ausência de saídas estruturantes da economia e o colapso ruidoso do próprio ciclo determinou uma longa fase de letargia econômica e de involução da sociedade capitalista amazônica pós década de 20, o que impôs condições de subsistência para parcela considerável da população amazônica e uma economia mercantil de baixo impacto ambiental.
Com o fim do ciclo da borracha, a sociedade amazônica entrou em processo de reestruturação de seu perfil, como observou Leal (2010), havia a camada da “sub-burguesia”, formada por comerciantes, industriais regionais de pequena expressão, profissionais liberais, fazendeiros, empresários extrativistas e proprietários em geral; uma camada intermediária, composta de funcionários públicos; e a camada menos privilegiada da sociedade da região. Sobre essa última, ele enfatizou o quanto os “deserdados” e a “massa pauperizada da floresta” eram os índios e caboclos que se tornariam desde então parte daquele mistério tratado por Márcio Souza em uma terra no fim do mundo.
Grosso modo, a característica da sociedade amazônica na fase seguinte ao ciclo da borracha foi marcada por um quadro de baixo crescimento e pequena dinamicidade econômica em quase todos os setores. As exportações de borracha caíram abruptamente, principalmente na segunda metade da década de 1920. Somente a partir da década de 1940 a atenção do governo central brasileiro voltou-se para a região, seja no que se denominará erroneamente de segundo ciclo da borracha durante a Segunda Guerra Mundial, seja a partir de 1946 com a inserção do artigo 199 na Carta Constitucional brasileira.
Essa norma constitucional surgiu por conta da pressão de parlamentares da Amazônia que reivindicavam a inserção de um instrumento constitucional que garantisse maior atenção do governo federal à região. A partir daquele artigo tornava-se obrigatória a elaboração de um Plano de Valorização Econômica da Amazônia (PVEA). Diz o referido artigo constitucional 199: “Na execução do plano de valorização econômica da Amazônia, a União aplicará, durante, pelo menos, vinte anos consecutivos, quantia não inferior a três por cento da sua renda tributária”.
Em 1953 foi criada a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), constituindo-se no primeiro experimento de planejamento do desenvolvimento regional da Amazônia e quiçá na primeira experiência brasileira deste tipo,[i] estabelecendo-se desde ali uma continua intervenção estatal na região, por mais que sempre orientada sob uma lógica de favorecimento da acumulação de capital a qualquer custo e com pequena, ou nenhuma, preocupação com as populações indígenas, quilombolas ou mesmo caboclas que constituíam parcela importante das sociedades ali estabelecidas. A criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia marca o primeiro encontro de Ceuci com o Leviatã brasileiro, algo, para manter o diálogo com o romancista Marcio Souza é mostrado como a percepção original da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia já era “abrir a fronteira amazônica a empresários e empreendedores do Centro-Sul e estrangeiros” (Ianni, 1979; Becker, 2015), sendo desde então já pensada como uma “fronteira de recursos naturais”.
A Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia trazia a ideia de que a retomada econômica da região não passaria mais pela ação arbitrária dos “agentes econômicos”. A noção de planejamento enquanto condição de “ocupação” do espaço para consolidação do “desenvolvimento” nacional se estabeleceu como forte discurso ainda no período getulista, marcando indelevelmente a trajetória social e econômica regional desde então.
A experiência da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia estabeleceu de forma incisiva o necessário desiderato de intervenção estatal nas últimas seis décadas, sendo que alguns ícones dessa “reinventada” ocupação regional terão grande importância nas fases seguintes. Neste sentido, vale destacar a construção da rodovia Belém-Brasília que gerou uma enorme corrida pelas terras marginais da rodovia, concentrada em grandes propriedades, além da quase destruição das indústrias locais, principalmente aquelas que se localizavam em Belém. Assim, a rodovia Belém-Brasília estabeleceu o sentido da integração amazônica à economia nacional: consumir os produtos do Sudeste brasileiro e lhes fornecer matérias-primas.
Este papel não apenas se manteve nas décadas seguintes como foi aprofundada, particularmente com a Operação Amazônia (1966) e com a opção pelos grandes projetos minerais a partir da segunda metade dos anos 1970. Isto marcou o processo de inclusão da Amazônia na reprodução capitalista brasileira, fortemente condicionada pelas marcas da intervenção estatal e sua integração ao padrão periférico e dependente estabelecido pela ditadura militar e empresarial.
O grande lago e a euforia do capital
No mesmo ano de extinção do referido órgão, em 1966, dois outros são criados em seu lugar, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) naquele mesmo ano, assim como sua irmã siamesa SUFRAMA (Superintendência da Zona Franca de Manaus) em 1967, curioso que essa dupla institucionalidade impõe as regras de modernidade que vão ser tão curiosamente tratados na ficcionalidade de Márcio Souza. No referido romance aqui refletido, um dos personagens representa a burguesia paulista que se senhoreia dos direitos econômicos sobre a Amazônia.
O personagem (Petro Pietra) é o exemplo mal caráter da burguesia brasileira que aliada aos senhores do Estado (os generais) e ao capital internacional estabelecem o plano mirabolante de construir uma gigantesca hitrelétrica no rio Amazonas, conformando um gigantesco lago que iria inclusive alterar o clima do planeta. Quando o autor idealizou seu romance, não poucos fatos lhe deram bases para sua imaginação e, quanto, de fato, a formação, por exemplo do gigantesco lago de Tucuruí não tem similitude com o grande lago da imaginação do romancista.
A partir da chamada “Operação Amazônia”, o discurso dominante do governo militar de modernizar a economia brasileira, porém dentro de um padrão de dependência associada ao grande capital transnacional, incorpora a Amazônia e a torna um centro de concessão de incentivos e isenções visando atrair o empresariado para a exploração econômica da região. Como ressalta Octávio Ianni (1979) tratava-se de “transformar a Amazônia numa região que propiciasse a acumulação capitalista intensa e generalizada (…) produtora [de marias-primas] para os mercados nacional e externo, de modo a favorecer inclusive a capacidade de endividamento externo exigida pelo modelo adotado”. Desde a segunda metade dos anos 1960 observa-se uma dinâmica que marcará desde então a história contemporânea da região: o avanço do grande capital fundiário, impondo crescente desmatamento e degradação social e ambiental; o estabelecimento de “plantations”, principalmente dendê, pimenta, cacau e cana de açúcar; o grande capital minerador e uma nova ordenação territorial e populacional.
Assim, a expansão econômica capitalista da Amazônia se deu via cinco formatos básicos principais: a implantação de grandes projetos na área da mineração; a Zona Franca de Manaus e a lógica de “maquiladoras” de baixa complexidade; a exploração agropecuária e madeireira centrada no grande latifúndio, gerando forte concentração fundiária e pouco desenvolvimento; o avanço paulatino das “plantations” de dendê e soja avançam rapidamente, estabelecendo e aprofundando a acumulação agrária e; a economia urbana industrial, comercial e de serviços de baixo valor agregado.
A intervenção estatal sobre o território, enquanto espaço econômico se processa historicamente desde um movimento de favorecimento e orientação da acumulação de capital, sendo que no caso Amazônico a intervenção estatal demarca tanto a ocupação predatória do território, como uma completa subordinação aos interesses do grande capital transnacional, sendo que ao longo dos anos 1970 avoluma-se os incentivos fiscais e os recursos financeiros, a maior parte concentrados no Pará, Mato Grosso e Amazonas. Neste sentido, a intervenção estatal estabelece os elos mais importantes para dinamização das condições de reprodução ampliada do capital, isso procedendo aos mecanismos de gestão, via políticas públicas, dos principais componentes necessários a acumulação: a força de trabalho, a terra e a infraestrutura enquanto parcela central dos meios de produção.
No caso Amazônico, a intervenção estatal se deu no próprio processo de estabelecimento de uma população excedente que advinda dos fluxos migratórios principalmente nordestinos possibilitou a estruturação de núcleos urbanos relativamente modernos, porém caracteristicamente inchados sob o ponto de vista demográfico, algo que estabelece a superurbanização e periferização expansiva das cidades amazônicas, como tão bem analisou Berta Becker (2015).
A intervenção estatal foi central no processo de disponibilização dos recursos naturais ao grande capital, assim como as legislações favorecedoras a formas de apropriação das rendas extraordinárias (lucro suplementar) possíveis de serem extraídas de solo amazônico, seja mediante a exploração agropecuária, especialmente as diferentes modalidades de “plantation” e a pecuária extensiva disseminada por toda Amazônia oriental; seja a exploração mineral das grandes jazidas localizadas principalmente no estado do Pará.
Os gastos estatais destinaram-se principalmente a suprir a infraestrutura física necessária ao desenvolvimento das atividades econômicas e também de reprodução social, sendo parcela da infraestrutura econômica necessária à acumulação, como os sistemas rodoviários de transportes, sistema energético e de eletrificação e a estrutura sanitária e de fornecimento de água. A infraestrutura social necessária tanto ao desenvolvimento das condições de reprodução capitalista quanto ao suprimento das necessidades coletivas sociais em geral é o que denominamos de fundo patrimonial público, componente importante das despesas do Estado.
As décadas de 1970 e 1980 presenciaram o desenvolvimento de um conjunto de empreendimentos mineiros no estado do Pará, inseridos na estratégia assumida pelos governos militares, ainda na segunda metade da década de 1970, de buscar uma relativa complementaridade da base industrial do país. Esse processo, fecundado desde o II Plano nacional de Desenvolvimento (II PND – 1975/79) do governo Geisel, convergindo os esforços de “endividamento” do Estado Nacional para a asserção de programas que tinham como meta a produção de bens de capital e insumos básicos.
Os liminares interesses do Estado nacional em torno da instalação desses empreendimentos compunham-se de um amálgama de questões, destacando-se dois aspectos: (i) a geração de divisas com vistas ao equacionamento da candente crise cambial que começava a se delinear; e (ii) o papel que a região passaria a desempenhar de fornecedora de bens primários ou semielaborados para o polo industrial do centro-sul. Se descermos, contudo, ao detalhamento da lógica a qual se encontrava vinculada a implantação dos projetos minero-metalúrgicos, agropecuários e outros, veremos que sua magnitude, comportando grandes escalas produtivas, intensivas em capital compatíveis aos padrões internacionais , foram determinadas, em última instância, em função da subordinação a circuitos de produção que têm seus centros de decisão nos países centrais, ou mais precisamente, nas empresas transnacionais do setor.
Temos uma forte característica de “autarquização” desses empreendimentos em relação a restante dinâmica da economia regional. A percepção bastante generalizada é a de pequena integração com a estrutura produtiva tradicional da região. Neste sentido, já foi bastante ressaltado a disfuncionalidade dos grandes projetos frente à criação de efeitos reverberantes sobre as economias locais, sendo que esses grandes projetos internalizam pouca renda e investimentos diferenciados em toda região de abrangência.
Por outro lado, esses empreendimentos incidiram sobre uma base econômica local de baixo nível de capitalização, impondo tempos econômicos e sociais diferentes e transformações inimagináveis para os atores e sujeitos locais. A desestruturação dos padrões pretéritos de organização social e econômica aumentou a complexidade dos problemas sociais, a densidade populacional, a mobilidade espacial e ocupacional dos trabalhadores, um tipo de desenvolvimento não só articulado, mas determinado a partir de um padrão de economia primário-exportadora.
No romance de Marcio Souza o transatlântico “Leviatã” continuou sem rumos perdido “em algum lugar do Oceano Atlântico sem nenhuma lei ou comando e à deriva”, a partir dos anos 1990 o amplo transatlântico brasileiro e suas “terras do sem-fim” caminharam acelerados para a lógica definida já no II PND da Ditadura Militar (1975-1979) reafirmou “estratégia de desenvolvimento extensivo e intensivo da agricultura e pecuária [e mineração], para o Brasil em geral, e para Amazônia, em especial” como bem sinalizou Octávio Ianni.
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia (Paka-tatu).
Referências
Alízio Leal. Uma sinopse histórica da Amazônia. Revista de Estudos Paraenses. Belém: IDESP, 2010.
Berta Becker. Geopolítica da Amazônia: a nova fronteira de recursos. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.
José Raimundo Barreto Trindade. Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2014.
Márcio Souza. O fim do terceiro mundo. Rio de Janeiro: Record, 2007 (1990).
Octavio Ianni. Ditadura e Agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia (1964-1978). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
Nota
[i] A criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) é posterior a criação da SPVEA, o que denota tanto a perspectiva inovadora dessa instituição, quanto seu caráter experimental.
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