Precisamos falar sobre Exu

Imagem: Margerretta
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Por DANIEL COSTA*

Os ataques e tentativas de associação entre as religiões de matriz afro e a prática de rituais maléficos não é de hoje

“Eu amei o céu, eu amei a lua\ Na encruzilhada foi que vi seu Tranca Rua”

Nas últimas semanas ganhou repercussão um vídeo compartilhado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, onde o ex-presidente e candidato ao Palácio do Planalto Luiz Inácio Lula da Silva participa de um encontro com lideranças da umbanda e do candomblé. O registro, originalmente compartilhado em 2021 pelo deputado federal Paulo Teixeira, também do Partido dos Trabalhadores, mostrava o ex-presidente recebendo um banho de pipoca na Assembleia Legislativa da Bahia. Na tradição dos cultos afro-brasileiros, a pipoca aparece como um item poderoso capaz de absorver energias negativas, sendo muito utilizada em rituais de saúde e descarrego. Tal ingrediente aparece na liturgia das religiões como alimento pertencente a Obaluayê, o Orixá da saúde e da evolução e da cura do corpo e do espírito.

Passado um ano do evento que originou o registro, o vídeo passou a ser compartilhado pela vereadora paulistana Sonaira Fernandes (Republicanos), porém carregado de um discurso oposto ao sentido original do ritual. A parlamentar e a primeira-dama começaram a associar o candidato petista às “trevas”, afirmando inclusive que Lula teria “entregado a alma para vencer essa eleição”. Neste mês de Agosto, durante evento realizado no Palácio do Planalto, Michelle declarou que, antes da chegada de Jair Bolsonaro ao cargo, o prédio teria sido “consagrado a demônios”. Superada as gestões petistas, orém, o ambiente hoje seria “consagrado ao Senhor”.

Com a consolidação da distância nas pesquisas das intenções de voto entre Lula e Jair Bolsonaro, com a possibilidade, mesmo que remota, da vitória de Lula no primeiro turno, a máquina de fake news do bolsonarismo entrou em ação a pleno vapor, mesmo com as advertências de membros do TSE. O disparo de notícias ocorre inclusive por meio de perfis oficiais, como o do deputado e pastor Marco Feliciano que publicou em sua conta no Twitter que caso fosse eleito Luiz Inácio fecharia as igrejas evangélicas país afora, reforçando assim a narrativa de uma suposta luta do bem, encarnada na figura de Jair Bolsonaro e o mal, representado pelo candidato petista.

Os ataques e tentativas de associação entre as religiões de matriz afro e a prática de rituais maléficos não é de hoje. Em uma relação de objetos que compunham o acervo do Museu de Magia Negra, órgão então ligado a Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações da 1a Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal, produzida na década de 1940 mostra entre vários objetos, uma estatueta representando a figura de Mefistófeles, identificado entre parêntese com o orixá Exu.

Já na virada do século XX para o XXI com o vertiginoso crescimento das igrejas neopentecostais, passou a ser comum acompanhar em algumas emissoras de televisão “rituais”, onde pessoas possuídas por espíritos, comumentes identificados como os mais variados tipos de Exus seriam supostamente libertas de todos os males provocados por tais possessões.

Diante disso, é de extrema importância avançar no debate público para desmontar esse discurso calcado no preconceito e no ódio, onde tal representação cada vez mais tem se transformado em senso comum. Assim, procurarei mostrar como se dá a real representação de Exu, o orixá que mais tem a imagem deturpada por aqueles que não compreendem seu real significado na tradição das religiões de matriz africana.

 

Abrindo os caminhos

Antes de adentrar no universo do nosso personagem cabe esclarecer alguns pontos: os orixás são divindades cultuadas no continente africano, ocorrendo principalmente em regiões da Nigéria e do golfo do Benin. Desembarcando na América portuguesa como escravizados, os iorubanos levaram o culto aos orixás para além mar, ressignificando a devoção através da criação do candomblé. Segundo o historiador Luiz Antonio Simas, apesar da matriz iorubá ser a predominante, pode ser estabelecido que há três linhas gerais do candomblé, havendo inclusive, grande interação entre as linhas, incluindo os procedimentos litúrgicos.

Desse modo, a classificação feita por Simas ocorre da seguinte maneira: (i) Ketu, de tradição iorubana, dos povos nagô; caracterizado pelo culto aos orixás; (ii) Jeje, de tradição fon, dos povos jeje; caracterizado pelo culto aos voduns; (iii) Angola, de tradição bacongo; caracterizado pelo culto aos inquices.

Por sua vez dentro das umbandas o culto aos orixás ocorre de forma variada, com maior ou menor intensidade, e em conexão na maioria dos casos com os santos católicos, assim por exemplo, um orixá como Oxossi, na Bahia é sincretizado com São Jorge e no Rio de Janeiro com São Sebastião, onde por sua vez São Jorge é sincretizado com Ogum.

O sincretismo é um processo marcado por complexas nuances, desse modo trazendo novamente o argumento de Luiz Antonio Simas, tal prática pode ser vista como uma “estratégia afrodiaspórica para cultuar suas divindades, como pode ser encarada como parte de um processo de conexões ligadas ao acúmulo de forças vitais, em uma encruzilhada sutil entre a africanização de procedimentos católicos e a cristianização de ritualísticas negras e indígenas”.

Diante da tamanha diversidade e transformações ainda é de certa maneira surpreendente a distorção feita de forma consciente, ou não de tais entidades e rituais, claro que o racismo estrutural que permeia a sociedade, assim como o crescente discurso de ódio contra aquele que é visto como dissidente não pode ser desprezado.

 

Exu pede passagem

Na liturgia das religiões de matriz africana, Exu é o orixá que abre os caminhos, é aquele que neutraliza e retira a densidade da carga com que as pessoas chegam ao terreiro; por ser o responsável em abrir os caminhos e levar as demandas aos demais orixás. Exu é o primeiro a ser cultuado, assim como também é aquele que se alimenta primeiro quando o alimento é ofertado. Característica marcante das religiões de matriz africana, a ritualização do alimento surge como meio para a restituição da força vital dos indivíduos e do grupo a qual pertence, ou seja, através da oferta do alimento haveria a restituição do axé.

Segundo os pesquisadores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino em sua obra A Ciência Encantada das Macumbas, Ifá nos ensina que “Exu é aquele que fuma o cachimbo e toca a flauta. Ele fuma o cachimbo como metáfora da absorção das oferendas e toca a flauta como restituição do axé, a energia vital”. Não se entende a amplitude do culto aos orixás sem uma compreensão do papel de Exu, é ele quem estabelece a ligação entre o nosso mundo material e a dimensão em que vivem os orixás.

Devido ao seu arquétipo, Exú acaba sendo associado ao próprio ser humano, pois seria carregado de defeitos e virtudes, sempre caminhando em uma linha tênue, tal fato despertou a atenção de diversos artistas e intelectuais ao longo do tempo. Exemplo clássico é a passagem de Macunaíma, onde o personagem criado por Mário de Andrade visita a casa da lendária Tia Ciata, figura seminal do samba carioca e reconhecida mãe de santo que mantinha laços com os mais diversos segmentos sociais da então capital federal, levando a sua casa desde trabalhadores da estiva até influentes personagens da política, passando por prostitutas, malandros, sambistas, chorões e claro a população da pequena África que via em Ciata uma referência não somente espiritual.

Retornando ao livro escrito por Mário de Andrade e ao capítulo onde, nosso índio branco catimbeiro, negro sonso feiticeiro (relembrando o samba de Norival Reis e David Corrêa para o carnaval da Portela em 1975) presencia uma macumba para Exu, entre os presentes estariam personagens como: Ascenso Ferreira, Manuel Bandeira, Raul Bopp, Blaise Cendrars e Jayme Ovalle.

Exu é o orixá mais incompreendido pela cultura cristã. Segundo Vicente Parizi, “representado pelo falo (símbolo da criação), pelo chifre (símbolo tradicional de poder) e pelo porrete (símbolo de sua força), foi confundido com o demônio cristão, e assim ainda é visto por alguns segmentos da sociedade, que o temem como representante do mal”. Porém, nada mais distante da realidade. Exu é o defensor da justiça, o melhor e mais leal amigo, o melhor conselheiro. Exu é alegre, fiel, leal, nunca abandona seus adeptos: responsável pela ordem, disciplina, zelador da lealdade, respeito, perseverança e paciência.

Como orixá que tem sua residência nas encruzilhadas, o verdadeiro ponto de encontro de todos os caminhos, Exu pode ir não só para todas as direções, mas para o passado e para o futuro. Assim, trazendo novamente as palavras de Luiz Antonio Simas, o historiador explica que os domínios de Exu “se estendem sobretudo às ruas, portões, esquinas e encruzilhadas mundanas. Para diversas linhas da umbanda, Exu é o protetor do povo da rua: prostitutas, boêmios, malandros, mendigos, errantes da vida”.

Assim, não causará espanto aos iniciados ou minimamente informados sobre o riscado, a energia contida por exemplo, em uma roda de samba realizada ao clarão da lua cheia, em alguma esquina de qualquer cidade. Com toda certeza, enquanto o samba acontece, em seu entorno, ciganas, malandros e nossos compadres aproveitam a curimba improvisada e se divertem sem esquecer é claro de zelar aquelas resistentes almas boêmias.

Diante de tudo que foi trazido até aqui, cabe afirmar que não se pode entender a amplitude do culto aos orixás sem a clara compreensão do papel de Exu. Sua função primaz é a de dotar os seres de capacidade de movimento e poder de comunicação, sendo mesmo a energia que está presente em tudo que existe. É Exu quem através do seu axé irá estabelecer as ligações entre o nosso mundo material e a dimensão em que vivem os orixás.

E partindo de todo esse movimento e poder cabe não apenas ao povo de santo, mas também a toda parcela da sociedade que se coloca no campo progressita e democrático combater não apenas os ataques ao candidato que vem sendo vitima de boatos e notícias falsas, mas também qualquer manifestação de intolerância religiosa ou deturpação dos ritos, orixás e entidades ligadas às religiões de matriz afro-brasileiras, para que através da força de Exu , relembrando o samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, o sol volte a brilhar mais uma vez, e que tenhamos forças para ver a maldade (no caso particular do nosso país, o fascismo bolsonarista) desaparecer.

Laroiê Exu!

*Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

 

Referências


Luiz Antonio Simas. Umbandas. Uma história do Brasil. Editora Civilização Brasileira, 2021.

Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. A ciência encantada das macumbas. Mórula Editorial, 2018.

Vicente Galvão Parizi. O livro dos orixás. África e Brasil. Editora Fi, 2020.

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