Eu, judeu

Imagem: Madalena Schwartz
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JORGE LUIS BORGES*

Quem nunca brincou com seus antepassados, com as pré-histórias de sua carne e de seu sangue?

Como os drusos, como a lua, como a morte, como a semana que vem, o passado remoto é uma daquelas coisas que a ignorância pode enriquecer – que se alimentam principalmente da ignorância. É infinitamente plástico e agradável, muito mais prestativo que o futuro e exige muito menos esforço. É a estação famosa preferida das mitologias.

Quem nunca brincou com seus antepassados, com as pré-histórias de sua carne e de seu sangue? Faço isso muitas vezes, e em muitas não me desagradou pensar em mim mesmo como judeu. Trata-se de uma hipótese preguiçosa, de uma aventura sedentária e frugal que não prejudica ninguém – nem mesmo a fama de Israel, já que meu judaísmo era sem palavras, como as canções de Mendelssohn. Crisol, em seu número de 30 de janeiro, quis elogiar essa esperança retrospectiva e fala de minha “ascendência judaica, maliciosamente ocultada”.[1] (O particípio e o advérbio me deixam maravilhado).[2]

Borges Acevedo é meu nome. Ramos Mejía, em certa nota do quinto capítulo de Rosas y su tiempo, enumera os sobrenomes portenhos daquela época, para demonstrar que todos, ou quase todos, “procediam de linhagem hebraico-portuguesa”. Acevedo figura nessa lista: único documento de minhas pretensões judaicas, até a confirmação da Crisol. No entanto, o capitão Honorio Acevedo fez pesquisas precisas que não posso ignorar. Elas me indicam o primeiro Acevedo que desembarcou nesta terra, o catalão dom Pedro de Azevedo, mestre de campo, já povoador do “Pago de los Arroyos” em 1728, pai e antepassado de estancieiros desta província, homem de que dão notícia os Anales del Rosario de Santa Fe e os Documentos para la historia del Virreinato – avô, enfim, quase irremediavelmente espanhol.

Duzentos anos e eu não dou com o israelita, duzentos anos e o antepassado me escapa. Agradeço o estímulo da Crisol, mas minha esperança de me entroncar com a Mesa dos Pães e com o Mar de Bronze, com Heine, Gleizer e os dez Sefirot, com o Eclesiastes e com Chaplin está enfraquecendo.

Estatisticamente os hebreus eram muito reduzidos. Que pensaríamos de um homem do ano quatro mil que descobrisse sanjuaninos[3] por todo lado? Nossos inquisidores buscam hebreus, nunca fenícios, garamantes, citas, babilônios, persas, egípcios, hunos, vândalos, ostrogodos, etíopes, dardânios, plafagônios, sármatas, medos, otomanos, berberes, bretões, líbios, ciclopes e lapitas. As noites de Alexandria, da Babilônia, de Cartago, de Mênfis, nunca puderam gerar um avô; somente para as tribos do betuminoso Mar Morto foi concedido esse dom.

*Jorge Luis Borges (1899-1986) foi escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Autor, entre outros livros, de Ficções (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3R7pV8n]

Tradução: Josely Vianna Baptista.

Notas da tradutora


[1] “Ao responder a umas acusações da revista Crisol, abertamente antissemita, Borges escreveu esta peça satírica sobre seus supostos antepassados. Em sua lista de tribos extintas inclui até os mitológicos centauros. Esta piada serve para atenuar as implicações mais desagradáveis do tema. Se ser judeu significa ter tido algum antepassado judeu, por mais remoto que este possa ser, então, quem pode estar seguro em Espanha ou Portugal, de não ter pelo menos um tataravô(ó) dessa origem? Ao levar o argumento até o absurdo, Borges denuncia às gargalhadas a estupidez dos seus adversários. Há, no entanto, uma ironia factual nessa busca inútil. Pelo lado materno dos Acevedo (a mais católica e reacionária família, segundo Borges contou), assim como pela paterna dos Borges Ramalho, lhe chegaria o mítico sangue hebraico. Talvez por esta razão, em seus últimos anos ele tenha dedicado mais tempo para estudar a cultura e as letras desta origem.” (Emir Rodríguez Monegal, Ficcionario. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 443).

[2] Comentário de Jorge Schwartz: “Na revista Megáfono (abril 1934), Jorge Luis Borges responde a Alberto Hidalgo, poeta peruano diretor da revista Crisol (publicação argentina das primeiras décadas do século XX agressivamente identificada com o nazismo), que insistia em que Borges escondia sua ascendência judaica. Entre outras pérolas de Alberto Hidalgo: “Conhecemos o valor literário de Borges, que ninguém pode lhe negar, sua sordidez moral, também pública e sua ascendência judaica, maliciosamente oculta, mas mal dissimulada, pois até seus poemas tem esse acento sálmico característico da poesia hebraica.”

[3] Da província argentina de San Juan.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES