Por JULIO TUDE DAVILA*
Considerações a partir do filme “Tudo, em todo lugar, de uma vez só”
É difícil descrever a sinopse de Tudo, em todo lugar, de uma vez só.[i] Resumindo e indo direto ao ponto, observamos o dilema de uma protagonista que se vê diante de uma espécie de absoluto: a possibilidade de experienciar tudo, em todo lugar, de uma vez só. Ao ter uma parcela desse sentimento, na forma de todas as experiências simultaneamente disponíveis apenas à pessoa dela em diferentes universos, a personagem é tomada por um niilismo cínico, que faz com que ela se incline a aceitar o absoluto.
Já que nada tem sentido ou valor, não há diferença entre o um e o todo, entre a passividade e atividade, não há razão para agir de um modo ou outro. Antes de consumar sua decisão, no entanto, a personagem é confrontada por outro personagem (Wang), que oferece a simplicidade e ternura como uma alternativa ao niilismo. Dar sentido às coisas a partir de um esforço de reconhecer a beleza no ato singelo e procurar essa singeleza no mundo, alternativa que, ao fim, é adotada pela protagonista. O absoluto é recusado e a busca pelo carinho e simplicidade servem como novo norte da vida.
Para o espectador brasileiro, o conflito do filme traz à tona aquele que muitas vezes é considerado o maior poema de nossa literatura, A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Na obra, o eu-lírico caminha vagarosamente sobre uma estrada pedregosa de Minas Gerais, quando se vê de frente com a Máquina do Mundo, portadora do conhecimento absoluto, da verdade sobre o mundo, e, depois de ponderar sobre a possibilidade de acessar a máquina do mundo, rejeita essa ideia e segue sua caminhada pensativa.
Outra relação interessante entre o poema e o filme aparece quando lembramos que a máquina de Drummond é muitas vezes comparada ao Aleph, de Jorge Luis Borges. No conto, o escritor argentino descobre um ponto que, quando observado do ângulo certo, permite a visualização do mundo inteiro. Em “Tudo, em todo lugar, de uma vez só”, o absoluto é um ponto, um bagel na verdade e, no momento em que temos um vislumbre dele, que a câmera adentra o ponto, parece que é um movimento cíclico, que vemos o ponto dentro do ponto, já que ele está dentro desse universo.
O movimento dentro do bagel lembra de modo peculiar a forma como Borges descreve o Aleph: “vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi ao Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem tem olhado: o inconcebível universo.” Em todos os exemplos notamos o peso avassalador do acesso ao absoluto.
O esforço mais recente para decifrar o poema de Drummond veio do livro de José Miguel Wisnik (2018), A maquinação do mundo. Para o crítico, a experiência que teria servido de inspiração para Drummond compor seu poema era o processo de “maquinação do mundo” imposto pela mineradora Vale, cujo projeto na cidade de Itabira, onde o poeta nasceu, destruiu completamente a paisagem do local, sobre a qual Drummond escreveu em diversos livros. Wisnik mostra como no período em que Drummond escreveu a poesia ele tinha sido afetado por uma viagem a sua cidade natal, por conta dessa devastação.
O horizonte do absoluto criticado aqui seria, então, o horizonte capitalista. A máquina do mundo que provê um absoluto capitalista, a produção de lucro e desenvolvimento incessante, teria como preço a destruição da matéria do mundo, a vida natural e singela oferecida pelos modos tradicionais de vida e exploração da terra a que Drummond fora apresentado em sua infância e tanto o encantaram durante sua vida.
Outra leitura verá o poema de Drummond como uma reflexão sobre a tragédia do sonho comunista.[ii] O regime stalinista, produto final do projeto comunista (Drummond foi membro do Partido Comunista por muito tempo), teve como preço a morte de milhões de pessoas e a submissão de um país a uma política totalitária e aterrorizadora. Assim, o sonho de uma sociedade justa e igualitária torna-se um pesadelo, e o eu-lírico de Drummond se nega a aceitar que a consumação desse sonho seja dessa forma. Se o absoluto comunista só é alcançável a partir desses meios, ele deve ser rejeitado.
É digno de nota que essas leituras não buscam deslegitimar uma interpretação filosófica do poema de Drummond. Pelo contrário, ao propor diferentes narrativas da gestação desse poema, os autores concebem um modo diferente de pensar essas questões. Se inserirmos o apocalipse estalinista ou o desenvolvimento capitalista na linha alegórica do poema de Drummond, temos outras ferramentas para analisar esses fenômenos, podemos observar tanto a alegoria quanto o fato em uma relação que se alimenta e captar, assim, o que há em comum entre todos esses exemplos. Podemos ver um movimento homólogo nas diferentes trajetórias traçadas. Existe um preço enorme e devastador a ser pago, na forma de cinismo cego para as contradições dos meios, para se adentrar o absoluto.
Frente a essas explicações, poderíamos questionar se o filme de que estamos tratando manifesta alguma relação parecida, ou melhor, que Absoluto ele poderia estar representando. Em 2021, Stuart Jeffries lançou um livro com um título curioso: Tudo, o tempo todo, em todo lugar – como nos tornamos pós-modernos. Essa frase, segundo o autor, encapsularia a vida na pós-modernidade. Temos acesso a todo conhecimento do mundo, de qualquer lugar que estivermos, e quando quisermos.
Não só isso, mas somos o tempo todo bombardeados por informações, dificultando nossa compreensão e apreensão daquilo que recebemos, de modo que a relativização (da verdade, da ciência, do valor) é regra geral do pós-modernismo. A produção cultural é tomada pela estética do excesso e do falseamento, com a produção incessante de conteúdo e o paradigma de reality shows, por exemplo. Há uma relação óbvia entre esse tipo de produção cultural e o regime econômico em vigor – “É tanta imagem que vira capital”, nas palavras de Hal Foster.[iii]
Em seu livro, Stuart Jeffries afirma que a pós-modernidade teve início em 1971, com o fim do paradigma de Bretton Woods. Ao situar o nascimento do pós-modernismo no fim da paridade do dólar-ouro, Stuart Jeffries quer mostrar que a vida cultural na pós-modernidade está inexoravelmente ligada a tudo que o neoliberalismo tem de mais pernicioso, defender que são processos contíguos. Os axiomas do neoliberalismo e o modo de vida que ele promove impõem um determinado tipo de sujeição, no qual é preciso estar disponível para o trabalho e consumo o tempo todo e conectado às redes que lhe conferem uma identidade pública circunscrevendo-a às normas daquele meio.
Os custos psíquicos disso para o sujeito são evidentes. Os paradigmas da sociedade paliativa, do cansaço e da transparência, de Byung-Chul Han, mostram como estamos sempre à beira de um burnout, segurando as pontas porque sabemos que somos substituíveis, porque nos julgamos em termos estritamente financeiros, e recusamos qualquer contradição, nos dopando com antidepressivos e qualquer variante paliativa do gênero. Não à toa, em outro livro o autor faz um pedido a nós, para “favor fechar os olhos”. Uma poética da pausa e da espera, que pode gerar outro tipo de reflexão, ao nos permitirmos o tempo de respirar e olhar de outro modo nosso entorno.
Além disso, ao criticar a visão que Hegel tem da arte do Oriente, Byung-Chul Han (2022) mostra que para compreender Bashô, grande representante dessa arte, precisamos de um olhar amável, que procura ver na manifestação das coisas em si algo diferente da sua interioridade, mas nem por isso menos digna de ser apreciada. Um olhar que se detenha demoradamente no objeto e permita ao sujeito um esvaziamento de si a partir da amabilidade, que verá no objeto um brilho penetrante, capaz de adentrar o observador e afeta-lo em outra medida, caso ela se permita essa interação mais pausada e amável.[iv]
A internet tem papel fundamental nesse processo. A articulação de tudo através das redes reorientou o modo como experienciamos o mundo. Jonathan Crary (2022), em seu livro mais recente, mostra como o digital nos afastou inteiramente de experiências humanas afetivas singulares. A atomização e isolamento gerados pela conectividade constante reduziu o leque de vivências possíveis: “Como podemos medir todas as consequências do tão drástico confinamento da riqueza e infinitude do potencial humana dentro da desolação e monotonia dos sistemas digitais? […]a possibilidade de uma vida comum de experiência direta foi substituída pela receptividade passiva de fluxos de estímulos que são impostos sobre nós de forma não-consensual. […] a experiência é a forma mais acessível para pessoas comuns articularem como a ordem vigente lhes deixa triste, ansiosos, endividados, sozinhos, viciados ou pior” (p.86, 97,98). Os modos de vida disponíveis para nós são pré-estabelecidos, circunscritos nesse sistema.
Acesso a tudo, em todo lugar, o tempo todo. Além do custo econômico e psicológico que descrevemos, existe também o cinismo niilista que o filme expõe. Encarar todas as contradições desse sistema como se fossem normais. A desigualdade inominável, a anomia nas periferias do sistema, a fome, a espoliação econômica, tudo visto como os meios necessários para se chegar a esse absoluto pós-moderno e neoliberal, para o qual “não existe alternativa”, segundo os termos de Margaret Thatcher. Uma das formas de articular isso em nosso discurso é pela ironia, o escárnio que não leva a lugar nenhum e que, segundo David Foster Wallace, tornou-se disseminado em nossa cultura.
Vemos isso na boca de líderes que dizem coisas “que não querem realmente dizer isso”, por exemplo. Uma forma de desconsideração pelas coisas, pelas palavras e pela realidade, orientada pelo niilismo no cerne do modo de vida neoliberal. O resultado final é uma sociedade de indivíduos atomizados e exaustos, distantes uns dos outros, temendo por sua segurança física e cibernética, afastados da realidade material e pertencentes a uma bolha com membros do mundo todo, dispostos a entregar a possibilidade de solidariedade e interação em troca de proteção e entretenimento. “Nessa nova era estaremos todos entretidos/ ricos ou pobres/os canais são os mesmos”.[v]
Uma última coincidência, tão significativa quanto as outras. Ao confrontar a protagonista, Wang profere as seguintes palavras: “eu não sei direito o que está acontecendo. Mas por favor, só sejam gentis”. A certa altura de seu livro, Stuart Jeffries defende que: “em nossa cultura, não precisamos de mais ironia e sagacidade, mas de consideração e gentileza”. Um movimento em direção à simplicidade, à ternura e gentileza. Articular uma política que leve em consideração um outro tipo de sujeito, outra subjetividade possível, parece ser a tarefa primordial para os tempos que vêm. [vi]
*Julio Tude Davila é graduando em Ciências Sociais na USP e em Psicologia no Mackenzie.
Referências
CAMILO, V. Drummond – da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
CRARY, J. Scorched Earth. Londres: Verso, 2022.
HAN, B. Hegel e o poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.
JEFFRIES, S. Everything, all the time, everywhere. Londres: Verso, 2021.
WISNIK, J. Maquinação do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Notas
[i] No Brasil o filme recebeu o título de Tudo, em todo lugar ao mesmo tempo, mas o título em inglês é Everything, everywhere, all at once, cuja tradução precisa é “Tudo, em todo lugar, de uma vez só” ou “tudo de uma vez”.
[ii] Salvo engano, essa leitura é de Vagner Camilo (2005), mas tenho alguma lembrança de Paulo Arantes mencionando essa interpretação.
[iii] O crítico americano usou essa frase (uma inversão do diagnóstico de Guy Debord, “é tanto capital que se torna imagem”) para descrever a obra de um notório arquiteto pós-moderno, Frank Gehry.
[iv] Outros dois artistas citados por Han nesse rol são Paul Cézanne e Peter Handke. De fato, se pensarmos por exemplo na ideia de som presente nas obras de Cézanne, estamos próximos do silêncio e da natureza. Nos diversos quadros da série Jogadores de carta temos um silêncio peculiar, uma cena parcimoniosa dos homens a cultivar seu tempo. Em quadros como Casa com telhado vermelho ou aqueles em que mostra a paisagem de Jas de Bouffan, sentimos o vento dar movimento a tudo que está presente na imagem, como se repousássemos diante daquela vista. São imagens que geram em nós um ritmo vagaroso, que pede um olhar detido. Já em Handke, a dimensão desse tempo aparece por exemplo nos gestos compassados da Mulher canhota ou nas histórias que Don Juan narra, além, é claro, de seu ensaio sobre o cansaço.
[v] Total Entertainment Forever, de Father John Misty.
[vi] O autor agradece a leitura e observações de Vitor Morais.
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