O ministério do futuro

Dóra Maurer, Balanços Relativos, 1973-5
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Por JOSÉ EDUARDO PEREIRA WILKEN BICUDO*

Comentário sobre o livro de ficção científica de Kim Stanley Robinson

Uma onda de grande pessimismo vem tomando conta do mundo nos últimos tempos. A humanidade acabou criando armadilhas para si própria, comprometendo, talvez, o seu futuro de maneira irremediável.

Guerras intermináveis, aquecimento global, mudanças climáticas, desigualdades sociais, enorme concentração de renda e de riqueza, fome e migrações humanas parecem ser as principais causas desse sentimento generalizado de grande pessimismo, sobretudo junto às camadas menos favorecidas das populações humanas, vítimas de uma das versões mais cruéis e desumanas do sistema capitalista, o neoliberalismo.

As possíveis soluções oferecidas pelos atuais governos dos diferentes países para resolver ou ao menos mitigar esses problemas estão muito aquém das necessidades e em completo descompasso com a urgência requerida. No caso do Brasil, nem se diga, pois já são quase quatro anos de completo negacionismo, destruição, violência, inação proposital, mortes nas cidades, no campo e nas florestas. Enfim, uma catástrofe sem precedentes na história recente do país.

Diante desse quadro, não há otimismo que prevaleça por muito tempo. O que fica é o desalento, o desânimo e fatalmente o tal pessimismo que nos conduz a uma espiral descendente da qual é muito difícil sair. O povo brasileiro, no entanto, tem se mostrado extremamente resiliente e tudo indica que uma onda de otimismo vem tomando conta do país e o rumo das coisas parece que poderá ser alterado em breve.

Essa onda de otimismo vem sendo gerada em grande parte pela candidatura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva à presidência da república nas eleições de 2022. Lula, cujo otimismo é simplesmente admirável, vem contaminando toda a gente com o seu incansável jeito agregador de ser.

Nessa mesma direção vai também o livro do autor de ficção científica Kim Stanley Robinson, The ministry for the future, publicado em 2020, cuja tradução livre do inglês para o português seria O ministério do futuro. Ainda não se encontra disponível uma tradução deste livro para a língua portuguesa. Já há, todavia, uma tradução para a língua espanhola. O tema central do livro, como o próprio título revela, é justamente o “Ministério do Futuro”, uma instituição de abrangência planetária criada em janeiro do ano 2025, com sede em Zurique, na Suíça, e encabeçada por uma irlandesa de meia idade, Mary Murphy, a personagem principal do livro. Mary Murphy lembra, em diversas passagens do livro, a figura de Dilma Rousseff, pelas suas qualidades pessoais e profissionais. A diferença é que Mary não recebeu o mesmo tratamento que Dilma e pôde terminar o seu mandato no Ministério do Futuro sem interferências golpistas para destituí-la.

Mary Murphy é uma pessoa apaixonada por aquilo que faz e com muita competência e inteligência é capaz de pouco a pouco ir convencendo líderes mundiais a realizar as mudanças necessárias para garantir a saúde e a sobrevivência do planeta. Possui também uma grande sensibilidade, prestando solidariedade aos necessitados. Sua trajetória enquanto ministra cruza, em determinado momento, com aquela de um ativista ambiental, e os dois desenvolvem um diálogo muito profundo, e por vezes um tanto complicado, sobre questões existenciais frente a anunciada catástrofe ambiental e suas consequências.

O primeiro capítulo do livro descreve os horrores provocados por uma onda de calor sem precedentes na Índia, que resultou na morte de milhões de pessoas, meses depois da criação do Ministério do Futuro. Não havia dúvidas para os especialistas que trabalhavam no Ministério do Futuro de que essa onda de calor fora causada pelo aquecimento global resultante das elevadas e contínuas emissões de carbono decorrentes principalmente das atividades humanas.

Ao longo do livro, o Mistério do Futuro tem a difícil tarefa de lidar com os inúmeros problemas decorrentes do aquecimento global e apresentar caminhos e alternativas para solucioná-los. Kim Stanley Robinson, que mora na cidade de Davis, na Califórnia, nos EUA, transita com muita propriedade em diversas áreas do conhecimento, como geofísica, biologia, economia, sociologia e política, além de ser um amante da natureza. Kim Stanley Robinson tem uma vasta obra literária e seus livros de ficção científica têm recebido amplo reconhecimento.

Em um artigo sobre Kim Stanley Robinson e sua obra publicado na revista norte-americana The New Yorker, em 2021, o autor revela toda a sua preocupação com a degradação que o meio-ambiente vem sofrendo há décadas, não somente na Califórnia, mas em muitas outras regiões do planeta. Neste artigo, o autor comenta sobre as razões que o levaram a escrever sobre uma situação ambiental catastrófica em um futuro não tão longínquo. O livro, segundo Robinson, funciona ao mesmo tempo como uma forma de alerta e um “debate” sobre ideias concretas que visam mitigar ou até mesmo reverter os efeitos e os danos causados pelo aquecimento global.

É interessante notar que, no livro, as várias tecnologias futurísticas descritas por Kim Stanley Robinson para a reversão de algumas situações ambientais catastróficas, entre as quais o emblemático degelo das calotas polares, já se encontram publicadas em revistas científicas e testadas em pequena escala. Uma destas, o resfriamento da água do mar e o seu bombeamento de volta para o continente antártico, a título de exemplo, só poderia ser realizado em larga escala, no entanto, se houvesse um compromisso de governos como os dos EUA, da Rússia, da China, de países europeus e de outros países ditos desenvolvidos para que suas frotas de navios de guerra e porta-aviões fossem utilizadas para fins pacíficos e, portanto, transformadas em verdadeiras “usinas flutuantes” de bombeamento e resfriamento de água do mar como meios de restaurar as calotas polares. A implementação dessas novas tecnologias desenvolvidas para salvaguardar a sobrevivência do planeta é uma dentre as inúmeras e difíceis tarefas que o Ministério do Futuro se propõe a negociar junto aos governos dos diferentes países.

Outra questão interessante que Kim Stanley Robinson traz para o debate diz respeito à criação de uma nova ordem econômica mundial, com base em uma nova moeda de referência, que não fosse mais o dólar norte-americano, mas uma moeda lastreada em emissões de carbono. Uma das consequências principais dessa nova ordem econômica seria que os países com menores taxas de emissão de carbono, em geral países pobres, teriam vantagens substanciais, e não o contrário, como ocorre hoje. Essa nova ordem teria como finalidade primordial diminuir significativamente as desigualdades econômicas reinantes no planeta.

Segundo Kim Stanley Robinson, se não fosse pela enorme desigualdade econômica e social provocada pelo neoliberalismo nas últimas décadas, haveria quantidade de dinheiro suficiente para os 8 bilhões de habitantes do planeta terra viverem de maneira saudável e com dignidade. Aliás, este dado também tem sido salientado pelo economista Ladislau Dowbor em seus inúmeros artigos.

Kim Stanley Robinson descreve a peregrinação realizada por Mary Murphy para convencer os presidentes dos bancos centrais dos diversos países acerca da importância e da urgência de se fazer a transição para uma nova ordem econômica nos moldes propostos pelo Ministério do Futuro. A maior resistência, é claro, partiu do banco central norte-americano. E, não tão surpreendente assim, é o banco central da China, presidido por uma mulher, que toma a iniciativa de abraçar e ajudar a levar a ideia adiante, inclusive com o apoio subsequente do banco central da Rússia. Kim Stanley Robinson vislumbra um mundo futuro multipolar, com a quebra da hegemonia norte-americana. Sem entrar no mérito do recente conflito na Ucrânia, dois anos antes, Kim Stanley Robinson já antevia uma mudança na ordem mundial, porém de uma maneira pacífica.

Há, todavia, no livro passagens não tão pacíficas. Navios de carga, aviões de passageiros e sobretudo jatinhos de bilionários são almejados, a partir de drones ultra avançados, com disparos desferidos por grupos de jovens ativistas ambientais não identificados e que são capazes de permanecer incógnitos, utilizando ferramentas de tecnologia da informação e de inteligência artificial das mais sofisticadas a fim de despistar qualquer iniciativa de origem governamental, ou não, para identificá-los.

O resultado dessas ações é imediato. Ou seja, o tráfego de navios de carga e de aeronaves propulsionados por combustíveis fósseis cai praticamente a zero. Sob pressão, então, os governos dos diferentes países se vêm obrigados a investir na implementação rápida de tecnologias que utilizem energias limpas e renováveis para o transporte de pessoas e cargas em todo o planeta. Novamente, neste quesito, já existem tecnologias disponíveis para uso nos mais variados modos de transporte. O que falta é vontade política e investimento suficiente para que a escala possa ser aumentada.

Na esteira dessas mudanças de atitude aparecem outras, de caráter pacífico, como a concepção de uma nova rede de comunicação digital que não monetizam mais as interações, entre as quais aquelas que estejam associadas à divulgação de notícias falsas, pelos enormes danos que causam, inclusive por levarem à corrosão de democracias e suas instituições. O Ministério do Futuro apoia iniciativas dessa natureza e auxilia na ampliação dessa nova rede, com vistas a uma mudança da mentalidade individualista reinante para uma outra que resulte em ações de caráter coletivo que, por sua vez, levem a mudanças estruturais significativas, entre as quais a diminuição do consumo de bens de modo geral, mas, principalmente, de bens totalmente desnecessários, cuja produção desmedida vem sobrecarregando o planeta e exaurindo seus recursos naturais.

Kim Stanley Robinson cita no seu livro o exemplo da Corporação Mondragón, uma federação de cooperativas originadas no país basco, na Espanha, fundada em 1956, como um futuro a ser perseguido pelas grandes corporações. Isto é, na Mondragón, de modo geral, boa parte do lucro obtido pelas diversas cooperativas que compõem a corporação retorna na forma de melhores salários para seus funcionários, além de muitos outros benefícios, como assistência médica de qualidade, melhores condições para financiar a obtenção da casa própria, etc.

Isso sem contar com o fato de que a diferença salarial entre os diferentes escalões da corporação é pequena, não mais que seis vezes. Em momentos de dificuldades, como durante a pandemia causada pela Covid-19, os funcionários da Mondragón não foram simplesmente despedidos ou afastados, mas, de forma solidária, aceitaram reduções salariais para que todos pudessem manter os seus empregos.

O ministério do futuro ajuda a disseminar a concepção de corporação idealizada pela Mondragón para que esta (concepção) possa se expandir e atingir escalas muito maiores, passando a ser a forma dominante de funcionamento das grandes corporações no planeta. Kim Stanley Robinson introduz temas como marxismo, economia keynesiana e políticas econômicas anticíclicas, para explicar, por exemplo, a relevância, do ponto de vista socioeconômico, da expansão em escala planetária de corporações com ideais semelhantes a de uma Mondragón, com vistas a um mundo mais humano e igualitário.

De acordo com O ministério do futuro, o cooperativismo deveria ser expandido e se tornar a base de todas as atividades realizadas pelos setores públicos e privados, como a modernização de infraestruturas (saneamento, habitação, transporte urbano, etc.), mas também em relação às atividades voltadas para educação, saúde, segurança, manejo da flora e da fauna, manejo de grandes movimentos migratórios humanos decorrentes de conflitos ou das mudanças climáticas, produção de alimentos saudáveis e tantos outras. Tudo isso a partir da consolidação de uma matriz energética baseada em energias limpas e renováveis, e, não menos importante, mediante consultas e diálogos com todos as comunidades envolvidas.

Lula, quando esteve na Europa em novembro de 2021 fez um discurso primoroso na sede do Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica, onde foi aplaudido de pé por deputados deste Parlamento, reforçando seu prestígio e reconhecimento como grande líder de dimensão planetária. Seu discurso deu ênfase ao fato de que o enfrentamento das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza e da fome no mundo constituem elementos essenciais para mitigar, minimizar ou até mesmo reverter os efeitos deletérios das mudanças climáticas e do aquecimento global.

Mais ou menos no início da segunda metade do livro, de modo inesperado e até mesmo surpreendente, há uma passagem na qual Kim Stanley Robinson menciona, como que prevendo um futuro antes mesmo de este acontecer, que o governo brasileiro passava por um período com um nível de corrupção generalizada e sem precedentes, levando à renúncia do seu presidente de extrema direita e logo depois à sua prisão. Imediatamente após este evento, de acordo com Kim Stanley Robinson, a chamada “Esquerda Lula”, agora chamada de “Brasil Limpo”, por conta da urgente questão ambiental e suas consequências catastróficas, retornava de modo triunfal com apoio da maioria da população.

Infelizmente, a renúncia do tal presidente de extrema direita dificilmente poderia acontecer dentro do contexto criado no país, com o advento da Lava Jato e do golpe de 2016, que levou a um enorme enfraquecimento das instituições democráticas. Todavia, a sua prisão poderia eventualmente entrar em pauta se as instituições democráticas voltassem a cumprir a ordem constitucional. Por outro lado, a “Esquerda Lula” poderá sim retornar em muito breve, até mesmo antes do previsto por Kim Stanley Robinson e seu O ministério do futuro. Neste caso, porém, tendo que enfrentar toda a sorte de obstáculos devido à quebra da ordem constitucional ocorrida a partir do golpe de 2016.

O discurso de Lula no Parlamento Europeu e grande parte das propostas de governo da aliança política por ele liderada coincidem com as previsões feitas por Robinson acerca do futuro do Brasil, o qual, sob a liderança inconteste do primeiro, caminharia para a implementação de um novo modelo econômico, com vistas a um desenvolvimento sustentável, tendo como base a preservação ambiental, a erradicação da fome e da miséria, a promoção da igualdade e da justiça social.

*José Eduardo Pereira Wilken Bicudo é professor titular aposentado do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e professor honorário da Universidade de Wollongong, Austrália.

Referência


Kim Stanley Robinson. The ministry for the future. Londres, Orbit, 2020, 576 págs.

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