Não ao voto nulo de esquerda

Dora Longo Bahia. Democracia (projeto para a Avenida Paulista II), 2020 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel 29.7 x 21 cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HECTOR BENOIT*

A chamada de voto nulo ou abstenção pela esquerda antipetista é um gravíssimo erro tanto tático como estratégico

Nas eleições de 2018, era ainda justificável que setores da esquerda radicalmente críticos ao petismo defendessem o voto nulo ou a abstenção no segundo turno.

Considerando a trajetória dúbia e as atitudes pouco combativas do PT e da CUT em relação a muitos processos grevistas e problemas sociais, uma grande quantidade de trabalhadores, sentindo-se traída por essas lideranças que diziam defender os interesses da classe trabalhadora, naquele ano de 2018, votaram nulo ou mesmo em Jair Bolsonaro. Outro fator que levou muitos trabalhadores e setores da esquerda ao voto nulo ou mesmo em Jair Bolsonaro foi a corrupção que marcou o petismo, tais como o “mensalão”, que, inclusive, já no primeiro mandato de Lula, levou a um racha no partido, tendo uma ala à esquerda fundado o Psol.

Depois, veio o “petrolão”, e uma série de denúncias, delações, escândalos financeiros, que, apesar do sensacionalismo nada inocente e hoje claramente parcial da Lava Jato, levaram a uma devolução de grandes quantias em dinheiro, tornando inquestionável que, realmente, estava comprovado o envolvimento do PT e seus aliados em grandes desvios do dinheiro público.

Assim, em 2018, o antipetismo cresceu nos setores conservadores e mesmo entre trabalhadores, como também em significativos setores da esquerda. Tudo isso levou ao voto nulo, à abstenção e à votação que conduziu à vitória de Jair Bolsonaro.

Para muitos setores da esquerda, em 2018, Jair Bolsonaro não era considerado um inimigo perigoso e real. Muitos acreditavam que Jair Bolsonaro, pelo seu visível despreparo, por sua fragilidade ideológica, programática, partidária e organizativa, nem sequer terminaria o seu mandato de quatro anos. No entanto, diversos fatores alteraram o rumo do impeachment, entre eles, consideramos como fundamental, a pandemia. Esta impediu manifestações e grandes protestos de rua, inibiu processos grevistas e garantiu certo silêncio das ruas. Aliado a isso, assistiu-se a uma grande passividade da oposição, tanto do PSDB, como do próprio PT e Psol, que se calaram e se omitiram diante de diversos ataques e atos bolsonaristas, foi assim que se tolerou, nos anos de 2019 e 2020 o fortalecimento e organização de uma extrema direita que só existia fragilmente preparada para maiores voos.

Mas, se em 2018, as análises que caracterizavam o governo Jair Bolsonaro como fascista ou neofascista apareciam, para muitos, como inconsistentes e até ridículas, muita e muita água correu, particularmente, a partir de 2020 e nos dois anos seguintes. Os pedidos de impeachment se acumulavam na gaveta da Câmara Federal, conduzida sem pulso por Rodrigo Maia, que apenas balbuciava atos de oposição ao governo.

Porém, com a eleição em fevereiro de 2021 de Arthur Lira para a presidência da Câmara Federal, apesar do governo Bolsonaro ficar submetido ao chamado “Centrão”, qualquer possibilidade de impeachment desaparecia e o governo passava a ter apoio incondicional da Câmara, mesmo que, para isso, perdesse o controle do orçamento do país, abrindo o caminho para o grande escândalo do orçamento secreto, ou “bolsolão”, talvez, o maior assalto já realizado aos cofres da República.

Particularmente, nestes dois últimos anos, o governo Jair Bolsonaro já totalmente consolidado cresceu em organização, derrubou todas as figuras que podiam internamente o ofuscar. Henrique Mandetta, ministro da Saúde que ganhou popularidade no começo da pandemia, caiu em abril de 2020. Sérgio Moro que também se destacava como ministro da Justiça e como possível futuro adversário de Jair Bolsonaro, pretendendo sustentar a isenção da Polícia Federal, foi obrigado a renunciar também em abril de 2020. Wilson Witzel, ex-governador do Rio de Janeiro, que começou a pretender independência e até rivalidade em relação ao governo federal, ameaçando levar adiante investigações da polícia do Rio de Janeiro que poderiam envolver Jair Bolsonaro e sua família, sofreu um impeachment em abril de 2021.

Todos esses processos delicados foram amparados, em grande parte pelo novo Procurador Geral da República, Augusto Aras, nomeado já em setembro de 2019. Com todas essas ações, a Polícia Federal foi relativamente subordinada ao governo ou, pelo menos, bloqueada em parte na sua autonomia para investigações perigosas ao governo. Aliado a este movimento, Cláudio Castro, o governador do Rio de Janeiro que assumiu em agosto de 2020, aplacava investigações que envolviam as “rachadinhas”, ou a célebre “Loja de Chocolates” de Flávio, a possível atuação das milícias, em suma, todas as ações que podiam comprometer os bolsonaristas e companhia. Restava a autonomia do STF, mas, mesmo nesta corte, com a nomeação de dois novos ministros, Kássio Nunes e André Mendonça, terminaram as votações por unanimidade, nas questões mais polêmicas que atingiam o governo.

Fora todas essas ações preocupantes, desde o começo do governo Bolsonaro, começou uma política armamentista muito bem organizada e perigosa voltada para civis. Nestes anos de governo cresceu 333% o número de registro de armas para civis. Isto ocorreu graças aos “clubes de atiradores desportivos, colecionadores e caçadores”, os chamados CACs. Estes “clubes” possuem, aproximadamente, 409 mil membros em todo o país. Esta cifra astronômica é preocupante, principalmente, porque supera até mesmo o contingente das Forças Armadas do país que é calculada em termos de 335 mil inscritos.

Como se vê, o caso recente de Roberto Jefferson, em regime de prisão domiciliar, deter fuzis, granadas e farta munição, e ainda atirar em agentes da Polícia Federal, está longe de ser subestimado. Da mesma forma e na mesma linha, se encaixam os casos não esclarecidos do homicídio do miliciano Adriano (queima de arquivo?) e aquele do violento Daniel Silveira, que, apesar de condenado pela justiça, foi anistiado pelo presidente e ainda por cima, mesmo sendo inelegível, por incrível que pareça, concorrendo ao Senado pelo RJ sob a legenda de Jefferson, o PTB, Daniel Silveira recebeu um milhão e quinhentos mil votos.

Como ainda subestimar as caracterizações do governo que apontam para um possível governo fascista ou neofascista? Isto se agrava mais ainda se observarmos os mapas eleitorais. Se é verdade que alguns setores da alta burguesia apoiam a eleição de Lula, vimos recentemente que na FIESP, surgiu um grupo de oposição, liderado por Skaff, que apoia Jair Bolsonaro, além disso, observando mais detalhadamente as pesquisas, a fração majoritária da alta burguesia está mesmo com Jair Bolsonaro.

Da mesma forma, são preocupantes as pesquisas que apontam uma vitória inequívoca de Jair Bolsonaro entre a população que está nas faixas de renda de 2 a 5 salários mínimos, ou seja, o atual presidente possui apoio entre um baixo proletariado e pequena burguesia, principalmente, já que o mesmo cenário se repete entre quem ganha de 2 a 10 salários mínimos. Ora, todas as análises marxistas importantes sobre o fascismo sabem que as bases de classe desse fenômeno político – o fascismo – são exatamente uma fração da alta burguesia, mais proletariado desclassificado e pequeno burgueses.

No primeiro turno e nas pesquisas eleitorais de hoje, Jair Bolsonaro aparece na frente no Sudeste, com grande vantagem no RJ (51% a 41%), no Sul e no Centro-Oeste. Há um certo equilíbrio no Norte e uma grande vantagem de Lula no Nordeste, assim como, na população de baixíssima renda, aquela entre 1 e 2 salários mínimos. Com esse quadro, não é surpreendente que a extrema direita obteve maioria hoje no Senado e na Câmara Federal. Isto coloca outra questão, mesmo com a vitória de Lula e seus aliados na eleição presidencial, o novo governo terá pela frente um Congresso dominado pela extrema direita. Portanto, terá muitas dificuldades para aprovar todas as pautas que favoreçam projetos sociais, além disso, o STF, certamente, estará sob ameaça de possíveis pedidos de impeachment no Congresso Nacional, contra ministros que se voltarem contra a extrema direita.

Por todas essas razões, a chamada de voto nulo ou abstenção pela esquerda antipetista é um gravíssimo erro tanto tático como estratégico. Hoje, todos são forçados a reconhecer que o perigo fascista ou neofascista ronda o Brasil, e também o mundo. Vivemos uma crise estrutural do capitalismo, crise econômica e política, que, conjunturalmente, se assemelha àquela dos anos 30 do século XX.

*Hector Benoit é professor do Departamento de filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A odisseia de Platão: as aventuras e desventuras da dialética (Annablume).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Luís Fiori Valerio Arcary Carlos Tautz Renato Dagnino Priscila Figueiredo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Raimundo Trindade João Feres Júnior Marjorie C. Marona Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Luiz Werneck Vianna Alexandre Aragão de Albuquerque Claudio Katz Julian Rodrigues André Márcio Neves Soares José Costa Júnior Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva José Dirceu Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonio Martins Leonardo Sacramento Henri Acselrad Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonino Infranca Manchetômetro Manuel Domingos Neto Berenice Bento Luis Felipe Miguel Tales Ab'Sáber Annateresa Fabris Heraldo Campos Jean Marc Von Der Weid Milton Pinheiro Francisco de Oliveira Barros Júnior Anselm Jappe Rafael R. Ioris Andrés del Río Salem Nasser Vladimir Safatle Jorge Luiz Souto Maior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Renato Martins Marilena Chauí Jean Pierre Chauvin Dênis de Moraes Eduardo Borges Mário Maestri Sergio Amadeu da Silveira Maria Rita Kehl Luiz Roberto Alves Ricardo Abramovay Elias Jabbour Marcos Aurélio da Silva Mariarosaria Fabris Paulo Fernandes Silveira Michael Löwy Paulo Martins João Carlos Loebens Leda Maria Paulani Daniel Costa Leonardo Boff Marcelo Módolo Chico Alencar Walnice Nogueira Galvão Caio Bugiato Gerson Almeida Francisco Fernandes Ladeira Bruno Machado Chico Whitaker Dennis Oliveira Ladislau Dowbor Ronaldo Tadeu de Souza João Paulo Ayub Fonseca Fernando Nogueira da Costa Celso Favaretto Ricardo Fabbrini André Singer Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade Remy José Fontana Michel Goulart da Silva Celso Frederico Otaviano Helene Ronald León Núñez Alexandre de Freitas Barbosa Slavoj Žižek Ronald Rocha Lucas Fiaschetti Estevez Ricardo Musse Tadeu Valadares Atilio A. Boron Gabriel Cohn Daniel Brazil Rubens Pinto Lyra Paulo Sérgio Pinheiro Afrânio Catani Eugênio Trivinho Eliziário Andrade Airton Paschoa Bento Prado Jr. Francisco Pereira de Farias Luciano Nascimento Everaldo de Oliveira Andrade João Sette Whitaker Ferreira Juarez Guimarães Gilberto Lopes Alysson Leandro Mascaro João Adolfo Hansen Luís Fernando Vitagliano Jorge Branco Luiz Eduardo Soares José Geraldo Couto Paulo Capel Narvai Andrew Korybko João Lanari Bo José Machado Moita Neto Lincoln Secco Michael Roberts Bernardo Ricupero Paulo Nogueira Batista Jr Marcelo Guimarães Lima José Micaelson Lacerda Morais Eleutério F. S. Prado Denilson Cordeiro Kátia Gerab Baggio João Carlos Salles Sandra Bitencourt Thomas Piketty Vanderlei Tenório Antônio Sales Rios Neto Lorenzo Vitral Carla Teixeira Leonardo Avritzer Igor Felippe Santos Fábio Konder Comparato Eugênio Bucci Samuel Kilsztajn Henry Burnett Tarso Genro Flávio R. Kothe Boaventura de Sousa Santos Eleonora Albano Osvaldo Coggiola Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Benicio Viero Schmidt Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcus Ianoni Yuri Martins-Fontes Luiz Bernardo Pericás Ricardo Antunes Marcos Silva Liszt Vieira Alexandre Juliete Rosa Gilberto Maringoni Flávio Aguiar Ari Marcelo Solon

NOVAS PUBLICAÇÕES