Por HECTOR BENOIT*
A chamada de voto nulo ou abstenção pela esquerda antipetista é um gravíssimo erro tanto tático como estratégico
Nas eleições de 2018, era ainda justificável que setores da esquerda radicalmente críticos ao petismo defendessem o voto nulo ou a abstenção no segundo turno.
Considerando a trajetória dúbia e as atitudes pouco combativas do PT e da CUT em relação a muitos processos grevistas e problemas sociais, uma grande quantidade de trabalhadores, sentindo-se traída por essas lideranças que diziam defender os interesses da classe trabalhadora, naquele ano de 2018, votaram nulo ou mesmo em Jair Bolsonaro. Outro fator que levou muitos trabalhadores e setores da esquerda ao voto nulo ou mesmo em Jair Bolsonaro foi a corrupção que marcou o petismo, tais como o “mensalão”, que, inclusive, já no primeiro mandato de Lula, levou a um racha no partido, tendo uma ala à esquerda fundado o Psol.
Depois, veio o “petrolão”, e uma série de denúncias, delações, escândalos financeiros, que, apesar do sensacionalismo nada inocente e hoje claramente parcial da Lava Jato, levaram a uma devolução de grandes quantias em dinheiro, tornando inquestionável que, realmente, estava comprovado o envolvimento do PT e seus aliados em grandes desvios do dinheiro público.
Assim, em 2018, o antipetismo cresceu nos setores conservadores e mesmo entre trabalhadores, como também em significativos setores da esquerda. Tudo isso levou ao voto nulo, à abstenção e à votação que conduziu à vitória de Jair Bolsonaro.
Para muitos setores da esquerda, em 2018, Jair Bolsonaro não era considerado um inimigo perigoso e real. Muitos acreditavam que Jair Bolsonaro, pelo seu visível despreparo, por sua fragilidade ideológica, programática, partidária e organizativa, nem sequer terminaria o seu mandato de quatro anos. No entanto, diversos fatores alteraram o rumo do impeachment, entre eles, consideramos como fundamental, a pandemia. Esta impediu manifestações e grandes protestos de rua, inibiu processos grevistas e garantiu certo silêncio das ruas. Aliado a isso, assistiu-se a uma grande passividade da oposição, tanto do PSDB, como do próprio PT e Psol, que se calaram e se omitiram diante de diversos ataques e atos bolsonaristas, foi assim que se tolerou, nos anos de 2019 e 2020 o fortalecimento e organização de uma extrema direita que só existia fragilmente preparada para maiores voos.
Mas, se em 2018, as análises que caracterizavam o governo Jair Bolsonaro como fascista ou neofascista apareciam, para muitos, como inconsistentes e até ridículas, muita e muita água correu, particularmente, a partir de 2020 e nos dois anos seguintes. Os pedidos de impeachment se acumulavam na gaveta da Câmara Federal, conduzida sem pulso por Rodrigo Maia, que apenas balbuciava atos de oposição ao governo.
Porém, com a eleição em fevereiro de 2021 de Arthur Lira para a presidência da Câmara Federal, apesar do governo Bolsonaro ficar submetido ao chamado “Centrão”, qualquer possibilidade de impeachment desaparecia e o governo passava a ter apoio incondicional da Câmara, mesmo que, para isso, perdesse o controle do orçamento do país, abrindo o caminho para o grande escândalo do orçamento secreto, ou “bolsolão”, talvez, o maior assalto já realizado aos cofres da República.
Particularmente, nestes dois últimos anos, o governo Jair Bolsonaro já totalmente consolidado cresceu em organização, derrubou todas as figuras que podiam internamente o ofuscar. Henrique Mandetta, ministro da Saúde que ganhou popularidade no começo da pandemia, caiu em abril de 2020. Sérgio Moro que também se destacava como ministro da Justiça e como possível futuro adversário de Jair Bolsonaro, pretendendo sustentar a isenção da Polícia Federal, foi obrigado a renunciar também em abril de 2020. Wilson Witzel, ex-governador do Rio de Janeiro, que começou a pretender independência e até rivalidade em relação ao governo federal, ameaçando levar adiante investigações da polícia do Rio de Janeiro que poderiam envolver Jair Bolsonaro e sua família, sofreu um impeachment em abril de 2021.
Todos esses processos delicados foram amparados, em grande parte pelo novo Procurador Geral da República, Augusto Aras, nomeado já em setembro de 2019. Com todas essas ações, a Polícia Federal foi relativamente subordinada ao governo ou, pelo menos, bloqueada em parte na sua autonomia para investigações perigosas ao governo. Aliado a este movimento, Cláudio Castro, o governador do Rio de Janeiro que assumiu em agosto de 2020, aplacava investigações que envolviam as “rachadinhas”, ou a célebre “Loja de Chocolates” de Flávio, a possível atuação das milícias, em suma, todas as ações que podiam comprometer os bolsonaristas e companhia. Restava a autonomia do STF, mas, mesmo nesta corte, com a nomeação de dois novos ministros, Kássio Nunes e André Mendonça, terminaram as votações por unanimidade, nas questões mais polêmicas que atingiam o governo.
Fora todas essas ações preocupantes, desde o começo do governo Bolsonaro, começou uma política armamentista muito bem organizada e perigosa voltada para civis. Nestes anos de governo cresceu 333% o número de registro de armas para civis. Isto ocorreu graças aos “clubes de atiradores desportivos, colecionadores e caçadores”, os chamados CACs. Estes “clubes” possuem, aproximadamente, 409 mil membros em todo o país. Esta cifra astronômica é preocupante, principalmente, porque supera até mesmo o contingente das Forças Armadas do país que é calculada em termos de 335 mil inscritos.
Como se vê, o caso recente de Roberto Jefferson, em regime de prisão domiciliar, deter fuzis, granadas e farta munição, e ainda atirar em agentes da Polícia Federal, está longe de ser subestimado. Da mesma forma e na mesma linha, se encaixam os casos não esclarecidos do homicídio do miliciano Adriano (queima de arquivo?) e aquele do violento Daniel Silveira, que, apesar de condenado pela justiça, foi anistiado pelo presidente e ainda por cima, mesmo sendo inelegível, por incrível que pareça, concorrendo ao Senado pelo RJ sob a legenda de Jefferson, o PTB, Daniel Silveira recebeu um milhão e quinhentos mil votos.
Como ainda subestimar as caracterizações do governo que apontam para um possível governo fascista ou neofascista? Isto se agrava mais ainda se observarmos os mapas eleitorais. Se é verdade que alguns setores da alta burguesia apoiam a eleição de Lula, vimos recentemente que na FIESP, surgiu um grupo de oposição, liderado por Skaff, que apoia Jair Bolsonaro, além disso, observando mais detalhadamente as pesquisas, a fração majoritária da alta burguesia está mesmo com Jair Bolsonaro.
Da mesma forma, são preocupantes as pesquisas que apontam uma vitória inequívoca de Jair Bolsonaro entre a população que está nas faixas de renda de 2 a 5 salários mínimos, ou seja, o atual presidente possui apoio entre um baixo proletariado e pequena burguesia, principalmente, já que o mesmo cenário se repete entre quem ganha de 2 a 10 salários mínimos. Ora, todas as análises marxistas importantes sobre o fascismo sabem que as bases de classe desse fenômeno político – o fascismo – são exatamente uma fração da alta burguesia, mais proletariado desclassificado e pequeno burgueses.
No primeiro turno e nas pesquisas eleitorais de hoje, Jair Bolsonaro aparece na frente no Sudeste, com grande vantagem no RJ (51% a 41%), no Sul e no Centro-Oeste. Há um certo equilíbrio no Norte e uma grande vantagem de Lula no Nordeste, assim como, na população de baixíssima renda, aquela entre 1 e 2 salários mínimos. Com esse quadro, não é surpreendente que a extrema direita obteve maioria hoje no Senado e na Câmara Federal. Isto coloca outra questão, mesmo com a vitória de Lula e seus aliados na eleição presidencial, o novo governo terá pela frente um Congresso dominado pela extrema direita. Portanto, terá muitas dificuldades para aprovar todas as pautas que favoreçam projetos sociais, além disso, o STF, certamente, estará sob ameaça de possíveis pedidos de impeachment no Congresso Nacional, contra ministros que se voltarem contra a extrema direita.
Por todas essas razões, a chamada de voto nulo ou abstenção pela esquerda antipetista é um gravíssimo erro tanto tático como estratégico. Hoje, todos são forçados a reconhecer que o perigo fascista ou neofascista ronda o Brasil, e também o mundo. Vivemos uma crise estrutural do capitalismo, crise econômica e política, que, conjunturalmente, se assemelha àquela dos anos 30 do século XX.
*Hector Benoit é professor do Departamento de filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A odisseia de Platão: as aventuras e desventuras da dialética (Annablume).
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