Capitalismo em tempos do cólera

Imagem: Najman Husaini
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Os adversários de posições discordantes do neoliberalismo, que querem pôr a economia a serviço da cidadania, se transformam em inimigos mortais, cucarachas – em uma metamorfose sem metáfora

A evolução do capitalismo, de início, atravessou três momentos: o manufatureiro, o de livre concorrência e o monopólico. O último caracteriza-se pela interdependência dos monopólios e o Estado, no século XX. Uma prova reside nos laços orgânicos das fábricas bélicas com as potências mundiais. O capitalismo monopolista distingue-se pela fusão do capital bancário e industrial, que formou as oligarquias financeiras. Os trustes e os bancos estão na origem das megacorporações, em um mercado ainda desorganizado. Entre 1950 e 1960, surge a reviravolta do “capitalismo em crise” ao “capitalismo de organização” que historiadores da sociedade e da cultura ocidentais designam “Estado regulador”, pari passu com a expansão imperialista.

Assim, pelo hábito, a figura do Estado regulador foi naturalizada na subjetividade dos povos. À direita, explica por que os governantes negam os plebiscitos sobre a sanha privatista de empresas estratégicas à sociabilidade comum: água, luz, gás, etc. À esquerda, explica por que os anarquistas tiveram especial dificuldade em se disseminar no pós-guerra.

Inflexão neoliberal

A radicalidade do livre mercado irradia-se nos hemisférios Norte e Sul, nos anos 1980, chancelada pelo Consenso de Washington. Estampa a esmagadora hegemonia ideológica do neoliberalismo – o quarto momento. Aumentam as críticas ao princípio da regulamentação e do planejamento central, por estimular a “cultura da dependência” (ao Leviatã). A alegação ecoa a liberdade individual para atacar o Estado de bem-estar social. A versão egoica da liberdade oculta a aporofobia contra pobres e o eugenismo classista, traduzidos no corte de investimentos públicos para incrementar a “cultura do empreendimento”. Conforme Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e as famílias”. Nessa concepção, a vida social é um local de passagem ao revés de um lugar de compartilhamento. Tchau à democratização decisional.

A regulação não evapora no ar; é transferida à esfera privada. Não obstante, mesmo as privatizações não diminuem a importância do Estado, em tese, por dois motivos: (a) cobram a imediata criação de agências controladoras e; (b) o aparelho estatal é quem legaliza a hiperexploração. A “nova razão do mundo” busca reconfigurar a subjetividade para litigar as pautas reguladoras, e não para celebrá-las. Mas continua o dilema capitalista posterior à ferroviarização, à motorização e à computadorização. Como expandir um sistema escorado no apartheid socioeconômico? Como o abandono de milhões de pessoas fixa um limite sistêmico para a necropolítica? “A responsabilidade social das empresas é o lucro”, diz Milton Friedman, para bloquear a discussão (sic).

As democracias em pane priorizam a representação política, no sentido de que os cidadãos não participam diretamente do governo da polis; escolhem representantes para delegar o poder de decidir sobre os rumos da gestão. As aspirações populares são sequestradas, com a financeirização do Estado. As finanças no neoliberalismo provocam a brutal desindustrialização. A Inteligência artificial substitui profissionais com curso superior em setores de atividade, e retira tradicionais postos de trabalho da classe média que mergulha no desemprego.

O liberalismo se apartava do neoliberalismo, à época que partidos eram capazes de institucionalizar e resolver os conflitos sociais, com respeito às “regras do jogo” bobbianas. Com a desautorização do diálogo, pelo ódio, houve um curto-circuito no horizonte de concertação. Os movimentos sociais dobram a aposta na participação ativa para politizar suas ações. São empurrados ao maximalismo nacional e internacional. O extremismo de direita impõe o olhar sobre a totalidade. Articulações parlamentares de gabinete cedem à “política da inimizade”, fechada em bolhas. A democracia in abstracto era compatível com o capitalismo; in concreto não é hoje.

As grandes causas

Se os dicionários são os termômetros culturais de cada época, qual o de Oxford que em 2016 fez da “pós-verdade” (“post-truth”) um símbolo de nosso tempo, vale a pena recorrer ao Dicionário de ciência política e das instituições políticas, organizado por Guy Hermet, Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e Philippe Braud, para uma avaliação da guinada brusca que afetou o entendimento da política, passada uma geração do lançamento do livro. A edição imprimida em Lisboa, em 2014, repete a 7° impressão de 2008 do original em francês. A capa é eurocêntrica, traz uma emblemática reprodução do plenário do Parlamento Europeu, em Bruxelas. Está subentendido, desde logo, que o cerne do conceito de política remete aos arranjos interpartidários.

O verbete “Politização” (páginas 239-40) classifica com o epíteto de “visão idealista” (equivocada, descolada da realidade) a “concepção da política como combate por ‘grandes causas’, impregnadas por motivações éticas: o progresso social em nome da solidariedade, o sacrifício de interesses particulares em nome do patriotismo, a emancipação dos trabalhadores em nome da justiça e da razão”. A seguir, pondera. “A politização demasiado intensa é perigosa nas democracias pluralistas, porque é suscetível de varrer o espírito de negociação e a preocupação de compromisso pragmático entre forças sociais”. O verbete recende o “fim da história” especulado por Francis Fukuyama, com a formalização do término da ex-URSS. Noutras palavras, a política deveria se ater unicamente ao corporativismo parlamentar e abdicar de paixões revolucionárias.

Na normalidade seria até compreensível a objeção do dicionarista. Diante da encruzilhada histórica entre o fascismo e a democracia, a narrativa é um anacronismo dada a ameaça da extrema direita. Espanta o verbete não ter sido adaptado à Era do pós-liberalismo, onde os adversários de posições discordantes se transformam em inimigos mortais, cucarachas, em uma metamorfose sem metáfora. Cabe à democracia imunizar-se do cólera para avançar em um processo civilizatório, e para pôr a economia a serviço de 99% da cidadania. O discurso sobre as grandes causas – hecatombe climática, desigualdades, guerras, racismo, sexismo, invasão da privacidade por algoritmos, precarização do trabalho – articula as mentes e corações. A luta antifascista é a outra face da luta antineoliberal e da luta para suplantar o conservadorismo teocrático, na atualidade.

No Brasil, parcela das ditas “elites” endossa o golpe de 8 de janeiro. No fundo têm-se, de um lado, a defesa das finanças e do laissez faire – o livre mercado; e de outro, o apoio à regulamentação – o planejamento de Estado. A polêmica sobre o lucro líquido da Petrobras é elucidativa. Entreguistas querem distribuir a receita extraordinária de R$ 80 bilhões na forma de dividendos aos acionistas, além do previsto: praxe lesa-pátria dos desgovernos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Com a Rede Globo à frente, os mesmos se opuseram ao Programa de Reindustrialização Sustentável do governo federal (2023). Quem percebe o papel da petrolífera no direcionamento da economia brasileira, postula o excedente para fortalecer a empresa – a indústria naval, a transição energética.

Eis a síntese do confronto de projetos. Na Globo News, o ressentimento rugiu: “Conversa dos anos oitenta. Intervencionista. Nome e sobrenome, Luiz Inácio Lula da Silva”. Meios de comunicação de massas são parte, em vez de árbitros da disputa, isto é, militantes do rentismo. Norberto Bobbio já no fin-du-siècle acusa a mídia corporativa de obstáculo à democracia, com o argumento sofisticado: pasteurizam o pensamento individual e destroem a base da República. O ideal da patrulha neoliberal é a governabilidade com servidão voluntária a interesses financistas.

Por associação de ideias, lembra-nos a fala do saudoso José Paulo Bisol nos idos de 1994, no Largo Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre, sobre a luta de classes e a importância urgente de construir a resiliência coletiva para tornar o povo, sujeito da história: “A gente se sente pequeno para lutar, mas quando a gente segura e ergue a mão de Lula fica forte. Coletivamente descobre que pode vencer a opressão e os opressores. Então caminhamos para o futuro, juntos”.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Fernão Pessoa Ramos Marcos Aurélio da Silva Jean Marc Von Der Weid Luis Felipe Miguel Renato Dagnino Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Annateresa Fabris Rubens Pinto Lyra Luiz Werneck Vianna Anselm Jappe Ricardo Abramovay Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Lincoln Secco Denilson Cordeiro Eleonora Albano Ricardo Musse Kátia Gerab Baggio Yuri Martins-Fontes Dennis Oliveira Paulo Martins Valerio Arcary José Micaelson Lacerda Morais João Adolfo Hansen Airton Paschoa Paulo Capel Narvai Luiz Bernardo Pericás Sergio Amadeu da Silveira João Paulo Ayub Fonseca Caio Bugiato Paulo Sérgio Pinheiro Henri Acselrad Jorge Branco Luiz Renato Martins Afrânio Catani Chico Alencar Manchetômetro Bruno Machado Vladimir Safatle Juarez Guimarães Eleutério F. S. Prado Elias Jabbour José Dirceu Eliziário Andrade Chico Whitaker Fernando Nogueira da Costa Andrés del Río Alexandre de Freitas Barbosa Antonino Infranca Mariarosaria Fabris Ricardo Fabbrini Daniel Afonso da Silva Michael Roberts Henry Burnett Luiz Eduardo Soares João Feres Júnior Jean Pierre Chauvin Marilena Chauí Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Lanari Bo Celso Favaretto Paulo Fernandes Silveira Luciano Nascimento Vinício Carrilho Martinez Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Löwy Luiz Marques Igor Felippe Santos Carla Teixeira Berenice Bento Alysson Leandro Mascaro Tadeu Valadares Daniel Costa Priscila Figueiredo Marcus Ianoni Remy José Fontana Marcelo Módolo José Costa Júnior Ronald Rocha Gilberto Maringoni Érico Andrade Vanderlei Tenório Alexandre de Lima Castro Tranjan Osvaldo Coggiola Dênis de Moraes Flávio Aguiar Leda Maria Paulani Bernardo Ricupero Luís Fernando Vitagliano Marilia Pacheco Fiorillo Thomas Piketty Ricardo Antunes Antônio Sales Rios Neto Flávio R. Kothe Eugênio Bucci Boaventura de Sousa Santos Gilberto Lopes Armando Boito Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn João Sette Whitaker Ferreira Luiz Roberto Alves Lorenzo Vitral Mário Maestri José Geraldo Couto Valerio Arcary Gerson Almeida Eduardo Borges Samuel Kilsztajn Plínio de Arruda Sampaio Jr. Sandra Bitencourt Marcelo Guimarães Lima Eugênio Trivinho José Machado Moita Neto João Carlos Salles Michel Goulart da Silva Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento Bento Prado Jr. Leonardo Boff Lucas Fiaschetti Estevez Antonio Martins João Carlos Loebens Fábio Konder Comparato Tarso Genro Slavoj Žižek Ari Marcelo Solon Andrew Korybko Francisco Fernandes Ladeira Maria Rita Kehl Ladislau Dowbor Atilio A. Boron Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Milton Pinheiro Claudio Katz Rafael R. Ioris Salem Nasser Tales Ab'Sáber Otaviano Helene Marcos Silva Paulo Nogueira Batista Jr Carlos Tautz Ronaldo Tadeu de Souza Walnice Nogueira Galvão Heraldo Campos Rodrigo de Faria Jorge Luiz Souto Maior Ronald León Núñez Manuel Domingos Neto Celso Frederico José Luís Fiori Julian Rodrigues Daniel Brazil André Márcio Neves Soares José Raimundo Trindade Liszt Vieira André Singer Leonardo Avritzer Benicio Viero Schmidt

NOVAS PUBLICAÇÕES