O Brasil entre cesarismo e domínio oligárquico

Imagem: Tim Mossholder
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Por MARCOS DEL ROIO*

O golpe de Estado que apeou o governo petista aprofundou a crise orgânica e abriu passagem para um cesarismo regressivo

As eleições gerais ocorridas no Brasil no mês de outubro de 2022 foram um episódio importante da crise orgânica que afeta a dominação burguesa, não só por essas paragens. A crise orgânica é de fato da acumulação capitalista, em particular no núcleo imperialista (Estados Unidos e Europa) e na América Latina, enquanto zona subalterna desse núcleo claramente em declínio. No núcleo imperialista se acentuam as contradições sociais e as divisões entre as próprias burguesias. A resposta à crise é a condensação defensiva de forças hegemônicas em torno de ideologias conservadoras e reacionárias, que observam na migração vinda da África e Oriente Médio uma ameaça existencial e, principalmente no crescimento da China um risco à sobrevivência do capitalismo centrado na financeirização.

A América Latina tem oscilado entre a fidelidade ao domínio dos Estados Unidos e a procura de uma saída da imposição de políticas alimentadas pela ideologia neoliberal. A oscilação ocorre também entre o domínio oligárquico liberal e a tendência cesarista. A consciência e a força de que essa saída só é factível com o descolamento em relação aos Estados Unidos e a derrota completa das forças internas que se beneficiam do domínio do capital bancário e financeiro é muito limitada. Assim que essa oscilação ocorre mais por conta da divisão nas classes dominantes e enfraquecimento do poder econômico político estadunidense do que por uma organização autônoma das classes subalternas.

A aposta, no Brasil, numa democracia liberal burguesa com direitos sociais, inserida parcialmente na Constituição de 1988, se esvaiu já nos anos 1990, com os governos PSDB/PFL, e não se recuperou nos anos 2000 com os governos PT/PMDB. A particularidade dos governos Lula, de tendência cesarista progressiva, foi a capacidade de unificar a classe dominante e de garantir um notável respaldo popular – mormente da ‘aristocracia operária’ e de pequena burguesia assalariada do Estado – graças a uma conjuntura de uma muito relativa retomada global da acumulação capitalista.

As “políticas afirmativas” e “políticas compensatórias” substituíram a luta pelos direitos universais fundamentais, mas ainda assim foram suficientes para angariar uma base muito significativa de apoio popular. Ao mesmo tempo, o compromisso com o pagamento dos juros da dívida pública (dívida falsa com os bancos, esclareça-se) demonstraram a fidelidade à ideologia imperialista do neoliberalismo.

O forte impacto da crise de 2008 nos Estados Unidos e Europa afetou seriamente o mundo todo, ainda que de modos diferentes. A agressividade imperialista aumentou no Oriente Médio expandido e na América Latina sempre com o intuito de garantir seus interesses, que giram em torno do saque de recursos naturais e demais riquezas. A crise volta a dividir as classes dominantes e no Brasil a questão passa pela exaustão da experiência do PT. Entre controlar o governo no segundo mandato de Dilma Rousseff ou retirar o PT do governo por meio de um golpe de Estado institucional, venceu a segunda escolha.

Essencial era barrar o movimento de jovens trabalhadores por mais direitos e enfrentar a crise com o contrário, com maior retirada de direitos sociais e políticos. Era o momento para entrar em cena grupos de tendência fascista (visto como uso da força contra o proletariado por fora do direito burguês) presentes na sociedade civil e também no Estado. O governo do golpista Michel Temer e a Operação Lava Jato desferiram um ataque concentrado contra os trabalhadores e contra o PT, que de um ou outro modo os representava. A movimentação golpista conseguiu mobilizar larga massa da pequena burguesia e culminou com a prisão de Lula, numa ação claramente ilegal.

O caminho estava aplainado para que assumisse um governo de coalizão formado por herdeiros do antigo agrarismo, do integralismo, do conservadorismo, do neoliberalismo extremado. A novidade foi a base de massa organizada pelos pastores do evangelismo pentecostal, importado dos Estados Unidos. A referência externa eram os Estados Unidos e Israel, internamente o poder estaria com a grande burguesia agrária e com o capital financeiro imperialista. Importante considerar a fusão havida entre capital agrário, industrial e bancário, tornado a ponta da economia brasileira. A indústria propriamente dita sofreu grandes perdas.

Mas notável mesmo foi o empenho em privatizar o patrimônio público / estatal e o ataque à educação, à saúde, à ciência, à cultura, ao meio ambiente, num esforço regressivo inédito, que, no limite, visava (e ainda visa) a instauração de um regime cesarista regressivo erguido com a ajuda das forças repressivas do Estado, de milícias formadas quase ao acaso e um discurso teológico com penetração nas classes subalternas.

A tragédia monumental da pandemia da covid-19, a tragédia da fome e do desamparo criaram enorme descrença. A persistente divisão nas classes dominantes e o conflito institucional, com focos de resistência, não permitiram que Jair Bolsonaro instaurasse a sua tão desejada ditadura “clerical-fascista” e tivesse que enfrentar as urnas. Apesar da terra arrasada que deixara atrás de si, as chances de vitória eram grandes. Em caso de derrota haveria ainda base social e política bastante forte, nas ruas (ou melhor nos templos e nos quarteis) e no Congresso Nacional capazes de obstruir o governo indesejável que deve se seguir.

Resistência organizada houve, mas muito débil. Os movimentos para apear Jair Bolsonaro não tiveram a força necessária, em grande medida por falta de vontade das direções sindicais e partidárias da oposição, do PT em particular, que decidiram investir na resistência institucional e na possível vitória nas eleições. O prestígio inegável diante de grandes massas e também da intelectualidade por certo não seria suficiente para uma vitória contundente. Seria preciso unificar a área postada à esquerda com o argumento de que a recondução de Jair Bolsonaro seria a evidente persistência e aprofundamento da tragédia nacional. A maior parte dos grupos que poderiam ser chamados de esquerda (com grande generosidade) assentiram, mas houve partidos que entenderam que no primeiro turno seria válido defender um programa revolucionário.

A ampliação das alianças em direção ao centro e à direita teve passo decisivo com a indicação de Geraldo Alckmin para o lugar de vice-presidente. As alianças forjadas foram regionais e setoriais, em busca de disputar parte da base social de Jair Bolsonaro. Na reta final, com perspectiva de ganhar no primeiro turno, houve significativa mobilização popular para derrotar o horror que ameaçava se perpetuar. A aguardada vitória veio no 1º turno, mas sem evitar a segunda rodada. O 2º turno garantiu a vitória de Lula, mesmo que por um triz, demarcando toda a dificuldade que vem pela frente e também a força das forças de direita.

Jair Bolsonaro e seus seguidores ensandecidos são imprevisíveis, porém a posse de Lula parece garantida, assim como a rápida adesão de grande parte do “centrão”. O ano de 2023 será muito difícil em vários aspectos: contemplar no governo e no parlamento a amplíssima frente política que possibilitou a vitória, conseguir recursos para começar a enfrentar as mazelas deixadas nos últimos anos, como fome, desemprego, assistência social, mas o que acaba por ser o mais importante é garantir o respaldo (ou tolerância) das classes dominantes e a esperança das classes subalternas.

A revolução burguesa no Brasil ocorreu ao modo de uma revolução passiva com forte tendência cesarista, que estabeleceu uma débil hegemonia burguesa, sempre necessitada da violência do Estado e de grupos privados. O liberalismo democrático nunca se consolidou no senso comum. A “democracia” estabelecida em 1988 já se apresentou em plena crise orgânica do capital e da ideologia neoliberal que a acompanhou. Não poderia ser mais que uma democracia da oligarquia com tendência cesarista regressiva, sem que o protagonismo das massas fosse aceito (a não ser nas eleições legalmente manipuladas).

Dificuldades políticas das classes dominantes, identificáveis como uma oligarquia (os que governam para si mesmos) e a adesão à ordem por parte do PT e CUT, possibilitaram que Lula se alçasse ao governo nacional em 2003. A tendência cesarista se manifestou bastante visível nesse tempo, todavia um cesarismo progressivo. Foi um governo que fortaleceu e expandiu a hegemonia burguesa ao contemplar necessidades básicas de setores subalternos.

No entanto, o golpe de Estado que apeou o governo petista aprofundou a crise orgânica e abriu passagem para um cesarismo regressivo que desencadeou uma verdadeira guerra contra a classe operária, com apoio de um lumpemproletariado e de uma pequena burguesia rancorosa, que se esbaldou com a destruição e com entrega das riquezas nacionais.

No horizonte temos a tendência, com a vitória eleitoral, de um cesarismo progressivo, caracterizado pela liderança de Lula por sobre a oligarquia com a qual governará e fará um esforço para minorar o sofrimento das massas populares. A derrota de Jair Bolsonaro foi importante vitória tática, contudo educar e organizar essas massas tendo em vista derrotar a oligarquia e sua pseudodemocracia, elevar as classes subalternas ao nível de estabelecer a luta pela hegemonia dos trabalhadores, nem será imaginado.

Essa luta só será possível com a consciência de que a crise orgânica do capital é incontornável e que somente com a criação de novas relações sociais antagônicas ao Estado se poderá gerar uma nova hegemonia e uma nuova civiltá para além do capital, único caminho para contornar a barbárie destrutiva que nos assola.

*Marcos Del Roio é professor titular de ciência política na Unesp-Marília. Autor, entre outros livros, de Marxismo e oriente: quando as periferias se tornam o centro (Ícone).

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