O comando das Forças Armadas

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Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Chefias de Estado, ou enquadram aparelhos de força ou serão por eles enquadrados

Comandar corporações pressupõe estabelecer-lhes diretrizes e escolher os responsáveis por sua implementação. A autonomia corporativa deve ser concedida no limite do cumprimento das missões recebidas. Repiso o ensinamento universal e atemporal: chefias de Estado, ou enquadram aparelhos de força ou serão por eles enquadrados. Chefes de Estado não atendem as fileiras; as fileiras devem atendê-los.

Lula precisa assumir o comando das Forças Armadas. Neste ambiente de redefinição da hegemonia internacional, crescem os anúncios de guerra. O Brasil será afetado e defesa nacional não se improvisa.

Ademais, não há outra forma de conter o aberrante ativismo político das fileiras senão atribuindo-lhes missões desafiadoras. Atarefados com seus afazeres profissionais, os generais terão menos tempo para a militância política. Não se empenharão em doideiras, como a de usar um inqualificável para ascender ao mando e implementar suas proposições.

A coletânea que organizei recentemente, Comentários a um delírio militarista, mostra a perversidade que os políticos fardados programaram para o Brasil. Uma derrota eleitoral apertada atrapalhou a implementação de seus planos.

No susto, Lula deu seus primeiros passos rumo ao comando. No vilipêndio de 8 de janeiro, o Presidente não contou com as Forças Armadas para o restabelecimento da ordem. Reconheceu que não exerce o comando. Foi o primeiro passo para superar uma inconstitucionalidade gritante.

No segundo passo, Lula firmou uma preliminar irrecorrível, declarando que Forças Armadas não constituem poder moderador. O terceiro passo foi a demissão do comandante do Exército. O momento mais adequado para essa decisão teria sido no domingo infame. Os brasileiros e o mundo todo abominaram o vandalismo da extrema direita. Lula detinha, então, o máximo de legitimidade para agir. As cúpulas militares não o afrontariam.

O general Júlio César de Arruda e seus comandados ou foram cúmplices ou fracassaram na defesa dos símbolos nacionais que juraram defender. Portassem sentimento de honra militar, teriam pedido demissão na noite do domingo.

Desconheço os motivos de Lula para nomear o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva como novo comandante. Nunca estive com esse general. Ocorreu-me que a escolha de um oficial mais moderno sinalizaria melhor a autoridade presidencial. Mas achei sensatas as ponderações favoráveis ao escolhido.

No mais, a escolha do novo comandante tem importância limitada: não há diferenças substanciais entre os integrantes da alta hierarquia. Por ação ou omissão, todos participaram do jogo que resultou no governo mais sinistro da história republicana. Todos os passaram pelo mesmo crivo político-ideológico para ascender hierarquicamente. Todos foram embebidos de ultraconservadorismo. Todos assimilaram a história escrita sob a ótica do quartel. Todos repelem mudanças sociais que afetem as estruturas orgânicas e funcionais de suas corporações. Todos querem uma sociedade a seu gosto.

Democratas aplaudiram o discurso do general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva diante de sua tropa. Nem sabiam que esse militar reproduzia disciplinadamente a posição do comandante Júlio César de Arruda. Para mim, o general Tomás Miné Paiva devia ter se calado. Não cabe naturalizar discursos políticos de funcionários armados.

No mais, a fala do hoje comandante do Exército foi incoerente: referiu-se a “terremoto político” como se nada tivesse a ver com isso. É difícil classificar como “legalista” quem abonou contestações ao processo eleitoral e agasalhou golpistas nos perímetros de segurança dos quartéis sob seu comando.

Os próximos passos de Lula rumo ao comando das Forças Armadas serão difíceis. É extensa a lista de integrantes da “família militar” envolvidos nos atentados à democracia. Como reagirá o comandante do Exército vendo os seus prestando contas à polícia?

Porém, o passo definitivo para que Lula assuma o comando será o estabelecimento de diretrizes para a Defesa Nacional. Nesta matéria, as corporações pontificaram desde sempre e fracassaram. Em que pese o grande volume de recursos públicos empregados ao longo de séculos, não detemos capacidade de proteger nosso espaço territorial, marítimo, aéreo e cibernético do estrangeiro cobiçoso.

Lula quer “cuidar do povo brasileiro”. Os cuidados compreendem a Defesa Nacional. Trata-se de política pública que, por sua abrangência e sua complexidade, não pode ser entregue aos que se preparam para o combate. É matéria eminentemente política. Envolve todos os domínios do Estado e da sociedade. Merece a convocação de uma conferência nacional.

A quebra do monopólio castrense na definição das iniciativas demandadas para Defesa alongaria a lista de ineditismos de Lula. Nenhum outro presidente eleito democraticamente conseguiu comandar as Forças Armadas. Nessa matéria, todos obedeceram aos comandos militares.

Convocar lideranças políticas, parlamentares, cientistas, empresários, diplomatas, jornalistas, procuradores, delegados, policiais militares, representantes dos povos originários e líderes comunitários para conferir Defesa Nacional e oferecer sugestões será o passo decisivo de Lula para assumir o comando das Forças Armadas.

Os generais agradecerão, já que sempre reclamaram da falta de envolvimento da sociedade nos assuntos de defesa.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

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