A aula inaugural de Bourdieu no Collège de France

Marco Buti, ATACAMACHAÇA
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por AFRÂNIO CATANI*

Comentários sobre o livro “Lições da Aula”, de Pierre Bourdieu.

1.

Em breve o Collège de France irá completar 500 anos.[1] Tendo sido criado em 1530 pelo rei Francisco I, experimentou várias transformações ao longo dos séculos. No momento, reúne 57 professores trabalhando com outros pesquisadores, auxiliares, técnicos e funcionários administrativos. Organizado em cátedras que abarcam um vasto conjunto de disciplinas, o Collège tem ouvintes, não alunos: as pessoas que assistem às aulas e aos cursos não passam por controle de frequência nem por provas e exames.

As aulas funcionam como conferências, não havendo sequer perguntas e, também, sem o diálogo entre ouvintes e professores. Os docentes são senhores de suas escolhas no interior de suas cátedras, possuindo, todavia uma única e rigorosa obrigação: tratar em cada ano de um tema novo. Em 2013 Sérgio Haroche, presidente da Assembléia de Professores do Collège, detalha que a instituição possui uma característica singular: os docentes apresentam “o saber sendo elaborado em todos os domínios, das letras, das ciências, das artes”. Com essa finalidade, cada professor recebe uma bolsa vitalícia de pesquisa e, anualmente, presta contas de suas atividades ministrando 12 aulas.

As cátedras do Collège podem ser transformadas pela Assembleia de Professores cada vez que uma delas se encontra vaga, sendo redefinida para o novo titular em um processo de votação em duas etapas. Na primeira fase, a Assembleia define o título da cátedra que deve substituí-la. Em seguida, com a recriação da cátedra e com a declaração da vaga, a Assembleia elege o titular. Na prática, “a cátedra já é criada para um candidato específico, com a segunda fase funcionando como mera formalidade”. Deve ser lembrado que não se exige dos candidatos qualquer grau universitário, sendo os mesmos avaliados em razão da importância e originalidade dos seus trabalhos (Catani, 2017 a, p. 124-125).

Eu concluía o verbete que está sendo citado ressaltando que essa instituição pública de ensino superior goza de plena liberdade para a realização de suas pesquisas científicas, “constituindo-se na instância máxima de valorização da autonomia e do trabalho intelectual”. Lembrava ainda, a título ilustrativo, que foram (ou são) professores na casa entre outros humanistas, Lucien Febvre, Marcel Mauss, Maurice Halbwachs, Émile Benveniste, Maurice Merleau-Ponty, Paul Veyne, Georges Duby, Georges Dumézil, Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, Pierre Boulez, Raymond Aron, Jerzy Grotowski, Michel Foucault, Roland Barthes, Pierre Bourdieu, Roger Chartier, Pierre Rosanvallon, Antoine Compagnon (Catani, 2017 a, p. 125).

2.

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi eleito em 1981 para a cadeira de Sociologia do Collège de France e numa sexta-feira, 23 de abril de 1982, proferiu sua aula inaugural, completando o processo de sua eleição e nomeação para essa instituição (Catani, 2017 b, p. 249). Lições da Aula constitui-se no texto lido na ocasião. Valendo-se de vários pensadores das áreas de filosofia, letras, psicanálise, ciência sociais e matemática, além da literatura clássica em diversos desses domínios, “inicia sua exposição considerando que a aula sobre a aula vem a ser um ‘discurso que reflete a si mesmo no ato do discurso’, lembrando da propriedade básica da sociologia como a concebe: todas as proposições que a sociologia anuncia podem e devem aplicar-se ao sujeito que faz a ciência. Praticando a sociologia da sociologia, analisa o discurso sociológico a partir da posição social ocupada na estrutura do campo social pelo sociólogo que o produz, pois ‘a crítica epistemológica não se dá sem uma crítica social’ ” (Catani, 2017 b, p. 245).

Segundo ele, no interior de cada campo social existe um movimento constante dos agentes sociais procurando lutar para manter ou melhorar sua posição no interior do campo. É na relação entre “o jogo e o sentido do jogo“ que se engendram os móveis da concorrência e se constituem valores que, “mesmo que não existam fora dessa relação, impõe-se no interior da mesma, com uma necessidade e uma evidência absolutas. Essa forma original de fetichismo está no princípio de toda ação”.

Para ele, os investimentos são entendidos como “ilusões bem fundamentadas”, que “superam os lucros explicitamente visados (salário, preço, recompensa, troféu, título, função)” e fazem com que cada agente saia do anonimato e se afirme como “atuante, envolvido pelo jogo, ocupado (…) e dotado de uma missão social” (Bourdieu, 1982, p. 30-31). É apenas a sociedade que atribui, em diferentes graus, “as justificações e as razões de existir”. Assim, “sem chegar a dizer, como Durkheim, que ‘a sociedade é Deus’, eu diria: Deus não é nada mais do que a sociedade.

O que se espera de Deus nunca se obtém senão da sociedade, que tem o monopólio do poder de consagrar, de subtrair à fatuidade, à contingência, ao absurdo; mas – e aí está, sem dúvida, a antinomia fundamental – apenas de maneira diferencial, distintiva: todo sagrado tem seu profano complementar, toda distinção produz sua vulgaridade e a concorrência pela existência social conhecida e reconhecida, que subtrai à insignificância, é uma luta de morte pela vida e pela morte simbólica. ‘Citar, dizem os Kabylas, é ressuscitar’. O juízo dos outros é o juízo final; e a exclusão social é a forma concreta do inferno e da danação. É também porque o homem é um Deus para o homem que o homem é um lobo para o homem” (Bourdieu, 19822, p.33).

No dia da leitura de sua aula Bourdieu experimentou um terrível mal-estar, uma vez que questionou o rito de instituição no próprio rito, gerando grande constrangimento, dada a violência da situação, pois questionava a crença e a colocava “em perigo exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebrá-la e reforçá-la” (Bourdieu, 2005, p. 131). Tem dificuldade para concluir a leitura, sua voz quase some, verifica que vários colegas estão atônitos. “Depois, sinto terrível mal estar, ligado ao sentimento da gafe, mais que da transgressão” (Bourdieu, 2005, p. 132) – ver, também, Catani (2017 b, p. 249).

Tal postura reforça, a meu ver, o exercício pleno do compromisso intelectual do autor, de não “pregar aos convertidos”; talvez fosse esse o sentido, para ele, da “aula de uma aula inaugural de sociologia consagrada à sociologia da aula inaugural” (Bourdieu, 1982, p. 34).

Realizando a defesa apaixonada de uma sociologia crítica, Bourdieu pretende, com seu trabalho intelectual, estudar e explicitar os mecanismos de dominação vigentes numa determinada ordem social. Conhecendo tais mecanismos, sempre existe a possibilidade de subvertê-los. É essa a razão que faz com que a sociologia seja temida: “Se os que têm algo a ver com a ordem estabelecida, seja lá o que for, não gostam nem um pouco da sociologia, é porque ela introduz uma liberdade em relação à adesão primária que faz com que a própria conformidade assuma um ar de heresia ou de ironia” (Bourdieu, 1988, p. 60).

* Afrânio Catani é professor aposentado na USP e professor visitante na UFF.

Este ensaio é uma versão totalmente modificada da resenha publicada no extinto “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde em 28/1/1989.

Referência


Pierre Bourdieu. Lições da Aula: aula inaugural no Collège de France. Tradução: Egon de Oliveira Rangel. São Paulo, Ática.

Bibliografia


BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. (trad.: Sérgio Miceli). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Leçon sur la leçon. Paris: Minuit, 1982.

CATANI, Afrânio Mendes. Collège de France. In; CATANI, A.M.; NOGUEIRA, M.A.; HEY, A.P.; MEDEIROS, C.C.C. de (Orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017 a, p. 124-125.

CATANI, Afrânio Mendes. Lições da Aula. In; CATANI, A.M.; NOGUEIRA, M.A.; HEY, A.P.; MEDEIROS, C.C.C. de (Orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017 b, p. 249-250.

CATANI, Afrânio Medes; MARTINEZ, Paulo H. (Orgs.). Sete ensaios sobre o Collège de France. São Paulo: Cortez, 1999.

Nota


[1] Acerca do Collège de France, ver Catani (2017 a) e Catani e Martinez (1999).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES