Fernando Macedo – um economista cordelista

Imagem: Kartick Chandra Pyne
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Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Comentário sobre a produção artística do professor da Unicamp.

1.

Desde 2018 a Literatura de Cordel é reconhecida como patrimônio cultural do Brasil e conta com uma instituição literária própria, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, fundada em 07 de setembro de 1988, no Rio de Janeiro. Todavia, não foi sempre assim. Em meados da década de 1930, essa literatura foi relacionada a incitação ao crime e a violência, mesmo por parte de intelectuais, a exemplo de Rubem Braga e Barbosa Lima Sobrinho (este último inclusive de origem nordestina). Como podemos constatar através do documento do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, intitulado Dossiê de registro: Literatura de Cordel, de 2018: “[…] havia muito preconceito por grande parte dos intelectuais, que não reconheciam a produção poética do cordel como um gênero da literatura brasileira […]” (DOSSIÊ …, 2018, p. 6-7).

O Campo de São Cristóvão, no centro do Rio de Janeiro, se notabilizou pela frequente e constante reunião de repentistas, emboladores e cordelistas, já a partir da década de 1950, quando se intensificou o movimento de migração do Nordeste para o Sudeste. Entretanto, inicialmente, a presença de tais artistas e atividades era reprimida pela prefeitura do Rio de Janeiro: “[…] muitos poetas foram presos e tinham suas violas e folhetos apreendidos […] A despeito da repressão e do preconceito, a cantoria e o cordel atraíam um número cada vez maior de entusiastas e autores, que começaram um processo de mobilização para proteger o exercício da poesia no espaço público […]” (DOSSIÊ …, 2018, p. 6-7).

Em 2003, o Pavilhão de São Cristóvão, projeto do arquiteto Sérgio Bernardes, inaugurado no início dos anos 1960, que já foi o maior pavilhão de exposições do Rio de Janeiro, foi rebatizado como Centro de Tradições Nordestinas Luiz Gonzaga. Espaço que passou a abrigar a antiga “feira nordestina”, considerada como o maior aglomerado de tradições nordestinas fora do Nordeste, antes localizada no estacionamento em volta do Campo de São Cristóvão.

Conforme o Dossiê (2018) a literatura de cordel se inseriu como expressão cultural em fins do século XIX, antes mesmo da designação dos nove estados da parte norte do país como constituintes de uma das cinco grandes regiões do Brasil (o Nordeste); especialmente nos estados da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Por um lado, essa literatura é identificada como uma variação escrita da poesia do “repente”. Por outro, é um tipo de jornal dos fatos do cotidiano, contados de forma rimada, bem como de lendas, episódios históricos e/ou anedóticos, além de grandes aventuras sejam elas reais ou provenientes do imaginário do cordelista. Enfim, o Cordel é ao mesmo tempo uma forma de expressão popular, um gênero literário e um veículo de comunicação de massa.

Ao longo do tempo ganhou amplitude nacional, porque “apesar de suas relações históricas com o Nordeste brasileiro, a literatura de cordel é praticada atualmente em todas as regiões do país, tanto nas pequenas cidades do interior como nos grandes centros urbanos, e a influência de sua linguagem pode ser reconhecida na música, no cinema, na televisão e nas artes plásticas […]” (DOSSIÊ …, 2018, p. 14).

 

2.

Fernando Macedo imprimiu sua marca na produção de cordel ao unir ciência e poesia. Economista, professor no Centro de Estudos do Desenvolvimento Econômico – CEDE, do Instituto de Economia da Unicamp, grande estudioso do desenvolvimento regional, iniciou sua vida de cordelista, em 2020, com o cordel intitulado “O professor cearense que virou boto na Amazônia”, publicado, em 2021, pela Aluá Edições, da cidade de Quixadá no Ceará. Neste cordel Fernando Macedo combina uma lenda do folclore brasileiro com as adversidades da profissão de professor.

Fernando Macedo também passeia entre lendas, episódios históricos e/ou anedóticos, homenagens, grandes temas regionais e nacionais e até biografias. São exemplos, “A história da Comissão Científica e os camelos do Ceará” (em parceria com Bruno Paulino) “Cachaça, paixão nacional”, “Os fabulosos casos de abdução e avistamento de ovnis no sertão” (também em parceria com Bruno Paulino), “A lenda do guerreiro Falcão contra o dragão da catilogência”, “Tragédia brasileira” e “Jáder de Carvalho: sua vida, sua obra”, todos publicados entre 2021 e 2022, também pela Aluá Edições. Para ilustrar a problemática do desenvolvimento regional (e uma solução apontada pelo referido autor) algumas estrofes do cordel “Tragédia nacional” são apresentadas a seguir:

“E podem morrer indígenas
Acreditam ser legal
Porque terras ficam livres
Para extração mineral
A soja pode avançar
Pro mercado mundial.”

[…]

“Mas não é só na saúde
Que as coisas andam mal,
Se multiplicam os crimes
Na esfera ambiental,
Com apoio do governo
Tudo vai para o capital.”

“A tragédia brasileira
Começa pelo cerrado,
O pantanal destruído
Muito dele foi queimado
Devastação amazônica,
Madeireiro faz reinado.”

“E na velha caatinga,
As coisas também vão mal,
A desertificação
É um perigo real
Nesse único bioma
Todo ele nacional.”

“No sul do nosso país
Uma verdade se estampa
Pouco a pouco vai sumindo
A vegetação do pampa
Perde-se a diversidade
Quando a terra se descampa.”

“A biodiversidade
Em qualquer das regiões
Vai perdendo seu lugar
E não tenham ilusões
A natureza é moída
Pra virar exportações”.

[…]

“Eu agora te pergunto
Isso é desenvolvimento?
Este modelo econômico
Não tem qualquer cabimento,
Aprofunda a tragédia
Com tanto desmatamento.”

[…]

“Não temos de ter vergonha
De gritar “Revolução!”
Entregar ao trabalhador
Os meios de produção
Somente com muita luta
Se constrói uma nação.”

[…]

 

3.

Em 2022, Fernando Macedo conquistou a primeira colocação no 1º Concurso de Literatura de Cordel – Prêmio Mestre Dila, que teve como tema: “Meu Nordeste – belezas e encantos”. O seu cordel é de uma riqueza ímpar, pois além da enorme beleza da rima deste gênero literário, representa ao mesmo tempo uma homenagem, um relato histórico, geográfico, cultural, social, econômico, político e ambiental, da região. “Pra não dizer que não falei das flores”, como cantou Geraldo Vandré, outro gigante da cultura nacional, deixo algumas estrofes de já famoso cordel:

I
“Peço licença, meu povo,
Para vos apresentar
As belezas, os encantos
De sertões, serras e mar
Que se encontram abrigados
Em um único lugar.

II
O lugar é meu Nordeste
Terra de minha paixão
Em sua diversidade
Busco toda inspiração
Pra narrar neste cordel
As forças da região.

III
Agreste, Zona da Mata,
Caatinga, Meio Norte
Formam subdivisões
Dentro do mesmo recorte
Unindo variedades
O Nordeste fica forte.

IV
Pois não há um só Nordeste
Porém muitos dentro d’um
De infinitas belezas
E com cultura incomum
Um local de gente forte
Falo sem favor algum.

V
Já é coisa do passado
Pensar que esta região
É lugar de seca, fome,
Miséria, desolação
Cá se produzem riquezas
Que viram exportação.

[…]

XIX
A região tem também
Seus problemas sociais
A desigualdade vem
Dos tempos coloniais
Começou com portugueses
Velhos senhores feudais.

XX
Mataram nossos indígenas
Formadores desse povo
Mas seu legado viveu
Às sombras de tal estorvo
Produzindo outra cultura
Fez nascer um povo novo.”

[…]

Assim termino esse registro de cabra tão arretado de danado, economista, cordelista, um intelectual e um artista. Homem formado na ciência de economista, mas que preserva suas raízes na arte de cordelista. Grande nome do desenvolvimento regional, encontrou no cordel nova forma de divulgação de seu grande cabedal. Ganha a Economia, ganha a arte popular, um causo que é verdadeira dádiva para de boas rimas nossa vida desanuviar.

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação.

Referências


DOSSIÊ DE RGISTRO. Dossiê de registro: Literatura de Cordel. Brasília: Ministério da Cultura / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, 2018.

MACEDO, Fernando. O professor que virou boto na Amazônia (depois voltou pro sertão). Quixadá-CE: Aluá Edições, março de 2021. (Literatura de cordel)

________. Tragédia brasileira. Quixadá-CE: Aluá Edições, maio de 2021. (Literatura de cordel)

________. Jáder de Carvalho: sua vida, sua obra. Quixadá-CE: Aluá Edições, julho de 2021. (Literatura de cordel)

________. A lenda do guerreiro Falcão contra o dragão da catilogência. Quixadá-CE: Aluá Edições, março de 2022. (Literatura de cordel)

________. Meu Nordeste – Belezas e Encantos. I Concurso de Literatura de Cordel – Prêmio Mestre Dila. Caruaru-PE: Fundação de Cultura de Caruaru, maio de 2022.

MACEDO, Fernando; PAULINO, Bruno. Os fabulosos casos de abdução e avistamento de ovnis no sertão. Quixadá-CE: Aluá Edições, junho de 2022. (Literatura de cordel)

________. A história da Comissão Científica e os camelos do Ceará. Quixadá-CE: Aluá Edições, abril de 2022. (Literatura de cordel)

________. Cachaça, paixão nacional. Quixadá-CE: Aluá Edições, fevereiro de 2021. (Literatura de cordel)

 

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