Por João Feres Júnior*
Bem mais cínicos que Hayek, neoliberais como Paulo Guedes preconizam abandonar os pobres à sua própria sorte como uma maneira de beneficiá-los!
É difícil pensar em algo bom que possa vir da crise atual. Na verdade, estamos somente começando uma travessia que pode durar boa parte do já fatídico ano de 2020. Em meio à depressão, ansiedade e desamparo causados pelo confinamento a que fomos quase todos submetidos, somos forçados a encarar aspectos da nossa existência pessoal e coletiva sobre os quais raramente refletimos em tempos normais.
A primeira constatação óbvia à qual somos forçados é a dependência que nossa existência individual tem do coletivo; da sociedade, como dizem por aí. A desagregação e desorganização da vida coletiva causada pela pandemia colocam em risco a nossa saúde física e mental. Essa já é uma lição e tanto para os individualistas radicais, aqueles que veem o indivíduo como o alfa e o ômega da existência humana. Aristóteles já havia bem compreendido o caráter eminentemente coletivo de nossa humanidade há quase 25 séculos. Contudo, a normatividade individualista proposta pelo liberalismo, provavelmente germinada na Reforma Protestante, produziu uma ficção que toma o “dever ser” da autonomia moral individual pelo ser.
A ficção individualista liberal tornou-se hegemônica no direito moderno, por meio das Constituições de todas as democracias contemporâneas. Esse foi um movimento fundamental no desmonte dos regimes monárquicos no Ocidente. Por outro lado, a ficção não transformou o caráter coletivo da realidade social. Na verdade, o movimento histórico foi bem o contrário. Quanto maiores, mais populosas e mais complexas se tornaram as sociedades, mais interdependentes ficaram as pessoas. O vírus – esse ser infinitesimal que trafega entre o biológico e o mineral – veio nos jogar na cara o caráter fundamentalmente coletivo da nossa existência individual.
A vida coletiva dos gregos antigos estava sob uma constante ameaça de desintegração, particularmente por meio da guerra, fosse ela civil ou contra um inimigo externo. A filosofia política nasceu como um esforço intelectual de conceber maneiras de evitar a tal morte social. Essa ameaça era muito presente naquele contexto por uma razão bem simples: as polis gregas não tinham Estado, da maneira como conhecemos esse conjunto de instituições nos dias de hoje.
Em outras palavras, não havia um grupo estável de profissionais que tomasse conta dos inúmeros serviços que promovem a integração social. Aí reside mais uma razão para o efeito cognitivo perverso que assola os individualistas radicais dos dias de hoje. Muitas pessoas simplesmente dão de barato a existência desses serviços básicos, como água, luz, pavimentação, segurança, etc., que garantem o funcionamento da vida coletiva. Isso sem falar no fato óbvio, mas também ignorado por muitos, de que a vida humana é quase totalmente artificial, isto é, praticamente tudo que nos cerca, em casa ou na rua, é produto do trabalho de outras pessoas e chegam até nós por meio das nossas interações sociais.
E é justamente quando essa vida coletiva está gravemente ameaçada que nos vemos nas mãos daquele que é um dos mais simplórios individualistas que nosso país já produziu: o ministro da Economia Paulo Guedes. Suas colunas no jornal O Globo, publicadas por anos a fio, quando ainda era um desconhecido, transpiram um neoliberalismo doutrinário para o qual a solução de qualquer problema político ou social redunda na diminuição do Estado e no aumento da liberdade individual. Se antes sua falta de capacidade de reconhecer os diferentes contextos e detalhes dos problemas que afetam nossa vida coletiva redundava somente na produção de panfletos toscos, hoje ela nos coloca em risco mortal.
Guedes é o único ministro do governo Bolsonaro que obteve algum sucesso político em 2019. A reforma da Previdência foi fortemente apoiada pelas forças que comandam a política brasileira desde o impeachment de Dilma. Amplos setores do empresariado – finanças, indústria e comércio –, partidos da centro-direita à extrema direita, movimentos da nova direita, muitos evangélicos e uma farta fatia da classe média sudestina se irmanaram no esforço de dar um banho de neoliberalismo no Brasil. Claro, não podemos nos esquecer da grande mídia, que fornece para toda essa gente a narrativa de total hegemonia da concepção fiscalista e reacionária neoliberal. Para os aderentes dessa narrativa, as reformas de Guedes, assim como a PEC da Morte antes delas, são escolhas óbvias; consequências naturais da boa gestão da coisa pública.
Mas o neoliberalismo, como todo idealismo, não convive bem com a realidade. As promessas de destravamento da economia não se concretizaram. Da mesma maneira, as promessas de aumento do nível e da formalização do emprego trombeteadas pelos defensores da vitoriosa reforma trabalhista do período Temer também se mostraram falaciosas. A taxa de informalidade no mercado de trabalho superou a marca de 41% no final do ano passado, a maior desde 2016, quando o IBGE começou a investigar esse índice.
Se tomarmos o liberalismo em sua realidade histórica, como um dos produtos ideológicos do Iluminismo, constatamos facilmente que o neoliberalismo é na verdade um tipo de antiliberalismo. Ora, o fulcro do movimento iluminista e dos regimes liberais nascidos da Era das Revoluções foi a ideia de igualdade moral entre os homens (sic). É claro que tal ideal, que anima todas as constituições democráticas do mundo, sempre encontrou obstáculos imensos a sua realização, mas o neoliberalismo simplesmente o descarta em nome da maximização de uma suposta liberdade individual, também de caráter ficcional. Sem se preocupar em soar racista ou elitista, Friedrich Hayek, um de seus mais influentes ideólogos, expõe a coisa com bastante clareza: se aplicarmos leis iguais a uma população marcada por desigualdades, o resultado é a preservação dessas desigualdades, senão sua potencialização. Ele, obviamente, não via problema algum nisso.
As consequências práticas de tal movimento teórico neoliberal são claras: preservação ou agravamento de todo tipo de desigualdade – moral e material – entre as pessoas, e preservação e naturalização de todo privilégio social e econômico. Bem mais cínicos que Hayek, neoliberais como Paulo Guedes preconizam abandonar os pobres à sua própria sorte como uma maneira de beneficiá-los! Ele é somente um exemplo triste e bastante didático, pois simplório, da aberração que é sua doutrina.
Coerente com sua mentalidade dogmática, Guedes reagiu à ameaça do Coronavírus (Covid-19) de maneira assustadora. Declarou na semana passada que a crise era uma janela de oportunidade para o aprofundamento das reformas, isto é, na prática, para mudar as normas que regulam o emprego público e alterar o sistema tributário.
O sentido da primeira reforma, a administrativa, certamente será o da fragilização do emprego público. Quanto ao nosso sistema tributário, ele é de fato bastante iníquo. Contudo, não há garantia alguma de que vá se tornar mais progressivo, pois o ministro, além de não ter plano, já demonstrou em várias oportunidades uma total falta de sensibilidade com relação às atribulações sofridas pelas camadas mais pobres da população brasileira. Por que agora seria diferente?
O agravamento da crise, contudo, deu-lhe um xeque-mate. A única solução para tentar aliviar os efeitos devastadores da desagregação social e consequente falência econômica é o gasto público. Não serão sequer gastos típicos do Estado desenvolvimentista, como investimentos em infraestrutura e fomento da atividade econômica – coisa que Guedes abomina. À massa de brasileiros desempregados e desamparados pela crise econômica prolongada e pela deterioração dos programas sociais, que está em andamento desde o impeachment, agora vão se juntar um enorme contingente daqueles atingidos em cheio pela crise do Covid-19.
Todos demandando muita assistência social por parte do governo, que também precisará criar esquemas de proteção que evitem a quebradeira geral de empresas. Em suma, Guedes está sendo chamado para liderar o enterro de tudo aquilo que sempre pregou com fanático entusiasmo. Caso se negue a fazê-lo, o que é bem possível, será rapidamente defenestrado. Em suma, ou perde ou perde, merecidamente.
*João Feres Júnior é professor de ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da UERJ. É coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (http://gemaa.iesp.uerj.br/) e do LEMEP – Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público.