Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
A sociedade que Marielle desejou para os seus e para as suas irrompe na história
“Até hoje, a história de toda a sociedade é a história das lutas de classes” (Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista).
Marielle Franco foi assassinada do Rio de Janeiro no dia 14 de março de 2018. Há cinco anos o movimento negro e seus ativistas, os grupos de esquerda, a família Franco e todos e todas que verdadeiramente querem uma sociedade democrática e livre querem saber quem foram os mandantes do covarde e bárbaro extermínio de uma mulher negra, lésbica, socialista, vereadora de esquerda (PSol) e formada nos morros cariocas.
Se precisamos ser cuidadosos em certos textos e escrito – não é o caso aqui. Pois na medida em que os executores do crime foram dois policiais militares (que circunstancialmente eram aposentados), é mais do que evidente que seus mandantes são agentes do Estado: de uma maneira ou de outra, direta ou indiretamente, ou influenciando ou organicamente. Esses ainda não sabemos quem são.
Há uma passagem no livro Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, a mais notável narrativa da Revolução Russa de 1917 até hoje escrita, em que presenciamos a seguinte cena – “os pobres dos asilos estavam quase nus. Delegações de inválidos, caindo de fome, órfãos, com as faces encovadas e lívidas, assaltaram o edifício [da Assistência Pública]. [Aleksandra] Kolontai, com os olhos rasos de água foi obrigada a mandar deter […] [os burocratas] para obrigá-los a entregar as chaves das salas e dos cofres”.[1]
Nas “salas” e nos “cofres” estavam muitos dos segredos do Estado czarista-burguês, e a classe dominante russa fez de tudo para mantê-los assim, sem que o povo tivesse conhecimento de suas jogadas egoístas e autointeressadas que lançava a maioria esmagadora da população na mais profunda miséria. É evidente que estamos distantes, de um evento como o de 1917; e não queremos que até lá os mandantes do assassinato de Marielle fiquem ocultos nas salas e nos cofres de nosso Estado e das instituições públicas que o constitui.
Quando Marielle foi assassinada o Brasil passava por um dos momentos do que se pode chamar de sua “contrarrevolução”. Em 2008 o mundo enfrentou uma das maiores crises do sistema capitalista internacional. A eclosão dos subprimes acompanhada com a queda do Lehamnn Brothers nos Estados Unidos teve efeito em cadeia por toda a economia internacional. Quando a crise se abateu na vida material dos trabalhadores e trabalhadoras, diversos movimentos contra-hegemônicos demonstraram as possibilidades (e a necessidade) de construirmos outra sociedade: Occupy Wall Street, Primavera Árabe, Syriza, Indignados e Podemos tomaram as ruas em suas respectivas sociedades deixando um rastro de fogo e esperança nos corações e mentes daqueles que querem uma humanidade livre do jugo do capital.
Na medida em que as respostas ao esfacelamento das finanças mundiais não foram à altura do esperado pelos mais afetados, houve um processo de rápido desgaste de boa parte dos movimentos que se apresentaram como alternativa opção política. As novas sociais-democracias, nos termos de Susan Watkins,[2] enredadas pelas técnicas de governo das democracias liberais-representativas – essas que já vinham atravessando momentos de contestação por não realizarem suas promessas (Norberto Bobbio) – comprometeram não só a si enquanto atores e sujeitos sociais da suposta transformação desejada, a própria democracia perderia o que lhe restava de confiança.
Com o passar dos anos já não era vista como o único e exclusivo regime político. Dado a justaposição a esse cenário da Troika (Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI)), vale dizer, da reorganização de instituições internacionais de decisão no continente europeu o esvaziamento intencional e “planejado” do que restava de democracia teria efeitos devastadores. (Nos Estados Unidos, Barack Obama que governava para recuperar o sistema financeiro, afagar celebridades negras e capturar e/ou matar Osama Bin Laden.)
A combinação dialético-imanente dessas circunstâncias resultaria na ascensão do que chamamos hoje de a nova direita. Trump, Erdogan, Salvini, Johson, Orban, Duterte e Bolsonaro apareceram no horizonte político imediato. Eles foram a luva de aço do novo regime político e de acumulação do neoliberalismo; que Verônica Gago chama de acumulação por extração[3] – violência extrema contra os/as que trabalham, financeirização absoluta das formas cotidianas de vida, devastação da natureza e psique economicista-eficiente. As relações sociais necessárias exigiam além disso, racismo, machismo, homofobia assassina, xenofobia e fascistização da vida.
A desigualdade combinada da luta de classes fez com que esse quadro de referência histórica chegasse no Brasil em junho de 2013. Manifestações cobriram todo o país e um levante insurrecional, talvez, nunca presenciado por aqui. Junho de 2013 é o principal evento das últimas décadas na sociedade brasileira sem qualquer sombra de dúvida: nele expressou-se a realidade de uma transformação radical do Brasil. O que se seguiu a ele, de certa maneira, foi o que se seguiu na Europa e nos Estados Unidos – uma contrarrevolução preventiva.
As forças de direita se restabeleceram na fresta que se abriu; o balanço abrangente de 2013 ainda está para ser feito pela esquerda, seus e suas intelectuais, pesquisadores e pesquisadoras críticos. As fases da contrarrevolução brasileira podem ser, esquematicamente, estabelecidas da seguinte maneira: 2014 (desestabilização da eleição pela contestação do PSDB à vitória de Dilma Rousseff do PT); 2015 (intensificação das mobilizações da direita exigindo a deposição de Dilma organizadas por MBL, Vem pra Rua, Revoltados On-Line, sustentados por aparelhos privados ideológicos – Millenium, Institutos Liberal e Von Mises e toda a imprensa corporativa e financiadas por grupos econômicos interessados); 2016 (golpe contra a presidenta eleita em 2014, surgimento de Jair Bolsonaro anunciando a “volta” katecontica de Ustra e sua substituição por Michel Temer); 2017 (o programa econômico ponte-para-o-futuro que reposicionava o capitalismo brasileiro no “novo” regime de acumulação neoliberal que dissemos acima); 2018 (a ocupação do Rio de Janeiro, via GLO- Garantia da Lei da Ordem, dos militares sob o comando de Braga Neto).
É nesse contexto e/ou conjuntura que Marielle Franco foi assassinada a mando e cruelmente por Ronnie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz – o primeiro havia sido membro competente e eficaz, segundo Rodrigo Rodrigues Pimentel, das forças de elite BOPE-Batalhão de Operações Especiais da polícia militar do Rio de Janeiro e o segundo ex-sargento, também, da polícia militar carioca. Os detalhes do crime contra Marielle são dos mais sórdidos e nefastos – típico da elite branca dominante brasileira desde os dias da colônia em que praticavam, verdadeira caça, prisão e castigos infinitos contra os corpos negros que fugia em busca da liberdade e contestavam aquela ordem escravagista de então. Mas agora com toda a técnica e tecnologia disponíveis.
Segundo consta Marielle foi vigiada por mais de dois meses por Lessa e Queiroz, sua rotina estudada com precisão, os lugares que frequentava enquanto militante do seu povo, os momentos de maior oportunidade e facilitação para efetivar a emboscada covarde; as armas agora não são mais o chicote no açoite, o tronco e a forquilha na garganta – mas pistolas de alto calibre e de alto impacto; a perseguição não mais a cavalo e sim com veículos de última geração e a organização efetiva do extermínio “racionalmente” – segundo investigações Ronnie Lessa e Elcio Queiroz espreitaram Marielle durante a noite do crime como sicários brancos que são – elaborada para o dia de 14 de março de 2018.
O erro foi acreditar que fazendo desaparecer Marielle fariam desaparecer sua luta histórica e política. É a sempre presente arrogância e esnobismo dos de cima. Se esquecem que não é a primeira vez que figuras que luta autenticamente pelos de baixo – ativistas, militantes, intelectuais, políticos, revolucionários e revolucionárias – tem suas vidas retiradas pelas forças da ordem vigente. Foi assim com os e as líderes Quilombolas; com os resistentes de Canudos; na Comuna de Paris; na Argélia de Frantz Fanon, na Espanha de 1936, com Rosa Luxemburgo, com as personalidades destacadas dos Panteras Negras – e foi assim com Marielle Franco.
E desde então florescem novos movimentos, novos indivíduos para falar pelos que nada tem a não ser o suor do rosto, novas figuras radicais e destemidas, novos grupos e coletivos dos que resistem às agruras do modo de produção burguês. Em 14 de março de 2023 completam-se cinco anos do assassinato de nossa Marielle; não descaçaremos até que os poltrões, que a mandaram matar para que ela não fosse um obstáculo para seus interesses materiais, sejam revelados – até lá, e até que a sociedade que Marielle desejou para os seus e para as suas irrompe na história, ela mesma será a alegoria incandescente na busca incansável para o fim da exploração, opressão e violência contra os subalternos e subalternas e que a retirou de entre nós.
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[1] Ver John Reed. Os dez dias que abalaram o mundo. Ed. Círculo do Livro, 1978, p. 258.
[2] Ver Susan Watkins. Nuevas Oposiciones. New Left Review, nº 98, 2016.
[3] Ver Verônica Gago. Para uma Crítica de las Operaciones Extractivas del Capital. Nueva Sociedad, nº 255, 2015, pp. 38-52.
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