Carlos Marighella: a chama que não se apaga

Carlos Zilio, FRAGMENTOS 1 ANO CADEIA, 1971, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLORESTAN FERNANDES*

A “legalidade”, na acepção de uma sociedade civil civilizada, é uma ficção

O 4 de novembro de 1969 incorporou-se à história graças a um feito policial-militar que culminou na morte de Carlos Marighella. Faz portanto, quinze anos que morreu o principal líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), figura política que se tornara conhecida como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), seu dirigente de cúpula e também seu deputado no Congresso que elaborou a Constituição de 1946. Ele foi perseguido como a caça mais cobiçada e condenado à morte cívica, à eliminação da memória coletiva.

Só em dezembro de 1979, quando seus restos mortais foram trasladados para Salvador, sua cidade natal, Jorge Amado proclamou o fim da interdição expiatória: “Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella”. No ano passado, removemos outra parte da interdição, em uma cerimônia pública de recuperação cívica e de homenagem que “lavou a alma” de socialistas e comunistas em São Paulo.

Um Homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário, pode crescer depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua verdadeira estátua à distância. É o que sucede com Marighella. Ele morreu consagrado pela coragem indômita e pelo ardor revolucionário. Os carrascos trabalharam contra si próprios; ao martirizá-lo, forjaram o pedestal de uma glória eterna. Agora, esse homem volta à atualidade histórica. Ele não redimiu os oprimidos nem legou um partido novo. Mas atravessou as contradições que vergaram um partido que deveria ter enfrentado a ditadura revolucionariamente, acontecesse o que acontecesse. Desmascarou assim a realidade dos partidos proletários na América Latina.

Em uma situação histórica de duas faces (como gosto de descrever), contra-revolução e revolução ficam tão presas uma à outra que são os dois lados de uma mesma moeda. À superfície, parece que a luta de classes opera em mão única – no sentido e a favor dos donos do capital e do poder. Todavia, no subterrâneo (na “infra-estrutura da sociedade” ou no “meio social interno”) existem várias fogueiras, e o aparecimento de alternativas históricas pode depender de “um punhado de homens corajosos” ou de partidos organizados e preparados para a revolução.

Em vários países da América Latina, entre eles o Brasil, a burguesia – apesar da dependência econômica, cultural e política – está encravada nas estruturas de poder nacional e as controla com mão de ferro. As ditaduras, “tradicionais” ou “modernas”, marcam as oscilações súbitas, às vezes de curta duração, da guerra civil latente para a guerra civil aberta. Nenhum partido dos oprimidos pode pretender-se revolucionário, na orientação socialista ou comunista, se não estiver preparado para enfrentar tenaz e ferozmente essas oscilações. A “legalidade”, na acepção de uma sociedade civil civilizada, é uma ficção.

O grande valor de Carlos Marighella – como o de outros que enfrentaram corajosa e tenazmente aquelas contradições, com a “crise interna do partido” – está no fato de ter compreendido objetivamente e exposto sem vacilações o que a experiência lhe ensinava. No diagnóstico, algumas vezes, ficou preso a uma terminologia equivocada e a concepções que ele pretendia apurar e superar através de uma prática revolucionária conseqüente com o marxismo-leninismo e com as exigências da situação histórica. Por fim, acabou vitimado pela vulnerabilidade central: a inexistência do partido que poderia abrir novos rumos na transformação revolucionária da sociedade.

Um partido desse tipo não nasce de um dia para o outro. Requer uma longa e difícil construção. Marighella caiu nos ardis que apontara, tentando derrotar o inimigo onde era impossível fugir ao seu “cerco militar estratégico”. Não fora ao fundo da análise da revolução cubana, ignorando o quanto uma situação histórica revolucionária simplificara os caminhos daquela revolução. A “via militar” revolucionária, no entanto, se mostraria frágil sob o capitalismo dependente mais diferenciado e, por vezes, avançado na América do Sul, especialmente depois da vitória do Exército Rebelde em Cuba.

As deficiências e os equívocos de Carlos Marighella resultaram de fatores incontroláveis e insuperáveis. Ele foi até onde seu dever exigia, sem meios para tornar a missão necessária realizável. A revolução proletária não é um “objetivo” do partido revolucionário. Ela é, ao mesmo tempo, sua razão de ser, seu sustentáculo e seu produto, mas de tal modo que, quando o partido revolucionário surge, ele é um coordenador, concentrador e dinamizador das forças sociais explosivas existentes. Como assinalou Karl Marx, “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”.

O que qualifica e distingue as posições assumidas por Carlos Marighella é o propósito de romper com uma linha adaptativa, que retirava o Partido Comunista do pólo proletário da luta de classes, convertendo-o em “cauda” permanente e em esquerda da burguesia. O seu marxismo-leninisimo ficou muito mais próximo da intenção que da elaboração teórica e prática conseqüente. O que não o impediu de encontrar, através da prioridade política e da acumulação de uma vasta experiência concreta negativa, uma versão objetiva das sinuosidades do comunismo adaptativo e tolerante que o marxismo acadêmico só descobriu tarde demais ou, então, nunca teve gana de desmascarar.

No momento mesmo no qual nos vemos de novo impelidos para os erros do passado, parece indispensável voltar às suas críticas e às razões de suas rupturas (ainda que seja impensável reabsorver o conjunto de soluções teóricas e práticas que inspirou e difundiu). Em três pontos, pelo menos, é indispensável tomá-lo como referência de uma purificação marxista dos nossos partidos revolucionários.

O primeiro ponto tem a ver com os vínculos diretos da teoria com os fatos concretos e com a realidade, pela experiência crítica e pela ação crítica. Essa orientação é básica para a elaboração de um comunismo made in América Latina, construído por nós, embora com raízes marxistas e leninistas. Ele situa em plano secundário o intelectual “teórico”, eurocêntrico, e repele as “soluções importadas”, que impunham os modelos invariáveis de algum monolitismo soviético, chinês, etc.

O segundo ponto é o mais decisivo, pois põe em questão qual é o partido revolucionário que deve surgir das condições econômicas, sociais e políticas dos países da América Latina (e do Brasil, em particular). Uma sociedade civil que repele a civilização para todos e um Estado que concentra a violência no tope para aplicá-la de forma ultra-opressiva e ultra-egoísta envolvem uma barbárie exasperada específica. Tal partido deverá ser, sempre, uma espécie de iceberg, por mais confiável e durável que pareça sua “legalidade”. Isso lhe permitirá interagir dialeticamente nos dois níveis da transformação revolucionária da sociedade – o burguês, por dentro da ordem, e o proletário e camponês, contra a ordem.

O terceiro ponto refere-se à aliança com a burguesia, que nunca deveria ter alcançado a densidade e a permanência que atingiu. Um partido comunista dócil à burguesia nunca será proletário nem revolucionário e terá, como sina inexorável, que perverter a aliança política. “O segredo da vitória é o povo”. O eixo de gravitação das alianças está, portanto, na solidariedade entre os oprimidos; em suas lutas antiimperialistas, nacionalistas e democráticas, tanto quanto nas suas tentativas de domar a supremacia burguesa, conquistar o poder ou implantar o socialismo.

Em suma, Carlos Marighella era um sonhador com os pés no chão e a cabeça no lugar. Ele ainda desafia os seus perseguidores e merece dos companheiros de rota (e do antigo partido) que levem seriamente em conta sua tentativa de equacionamento teórico e prático do enigma do movimento comunista no Brasil.

*Florestan Fernandes (1920-1985) foi professor emérito do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor, entre outros livros, de A Revolução burguesa no Brasil (Contracorrente).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 12 de novembro de 1984.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luis Felipe Miguel Julian Rodrigues Mário Maestri Alexandre de Freitas Barbosa Tarso Genro Daniel Brazil Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Eduardo Borges Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcelo Módolo Paulo Capel Narvai Leda Maria Paulani Ricardo Musse Gerson Almeida Celso Favaretto Salem Nasser Dennis Oliveira Jorge Branco Antonino Infranca Bruno Machado Igor Felippe Santos Kátia Gerab Baggio Celso Frederico Paulo Nogueira Batista Jr Andrew Korybko José Dirceu José Micaelson Lacerda Morais Marilena Chauí Michael Löwy Ladislau Dowbor Leonardo Avritzer Bruno Fabricio Alcebino da Silva Paulo Fernandes Silveira João Carlos Loebens Valerio Arcary José Geraldo Couto Paulo Martins Dênis de Moraes Jorge Luiz Souto Maior Vladimir Safatle Osvaldo Coggiola Benicio Viero Schmidt Flávio R. Kothe Alysson Leandro Mascaro Ricardo Antunes Luiz Eduardo Soares Marcus Ianoni Rodrigo de Faria Eleutério F. S. Prado Antônio Sales Rios Neto Tadeu Valadares Francisco Fernandes Ladeira Eugênio Trivinho Fernão Pessoa Ramos Luiz Werneck Vianna Otaviano Helene Lincoln Secco Leonardo Sacramento Vanderlei Tenório Fábio Konder Comparato Marilia Pacheco Fiorillo Carla Teixeira João Carlos Salles Mariarosaria Fabris João Adolfo Hansen Rubens Pinto Lyra Maria Rita Kehl Tales Ab'Sáber Michael Roberts José Costa Júnior Afrânio Catani Samuel Kilsztajn Chico Alencar Slavoj Žižek Eleonora Albano Remy José Fontana Ronald León Núñez Fernando Nogueira da Costa Sandra Bitencourt Lorenzo Vitral Gilberto Maringoni José Machado Moita Neto Claudio Katz José Luís Fiori Daniel Afonso da Silva Henri Acselrad Lucas Fiaschetti Estevez Marjorie C. Marona Armando Boito Ronald Rocha Berenice Bento Luiz Renato Martins Manchetômetro Luciano Nascimento Roberto Bueno André Singer Bernardo Ricupero Juarez Guimarães Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro Alexandre Aragão de Albuquerque João Lanari Bo Sergio Amadeu da Silveira Atilio A. Boron Francisco Pereira de Farias Manuel Domingos Neto Marcelo Guimarães Lima Flávio Aguiar João Feres Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Ronaldo Tadeu de Souza Jean Marc Von Der Weid Érico Andrade Matheus Silveira de Souza Rafael R. Ioris Renato Dagnino Valerio Arcary Henry Burnett Anselm Jappe Luiz Bernardo Pericás Luís Fernando Vitagliano Yuri Martins-Fontes Carlos Tautz Marcos Silva Heraldo Campos Luiz Roberto Alves Jean Pierre Chauvin Eugênio Bucci Eliziário Andrade Caio Bugiato Roberto Noritomi Luiz Marques Bento Prado Jr. Airton Paschoa Priscila Figueiredo Gilberto Lopes Ricardo Abramovay André Márcio Neves Soares Milton Pinheiro Leonardo Boff Paulo Sérgio Pinheiro Thomas Piketty Annateresa Fabris Walnice Nogueira Galvão Elias Jabbour Vinício Carrilho Martinez Boaventura de Sousa Santos Francisco de Oliveira Barros Júnior Anderson Alves Esteves Liszt Vieira José Raimundo Trindade Chico Whitaker Everaldo de Oliveira Andrade Daniel Costa João Sette Whitaker Ferreira Gabriel Cohn Antonio Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada