Nota sobre a regulação das plataformas

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SERGIO AMADEU DA SILVEIRA*

O Marco Civil nunca impediu a moderação de conteúdos pelas plataformas

Existe uma preocupante inversão no debate sobre o combate à desinformação e ao discurso de ódio. De repente, o Marco Civil da Internet passou a ser responsabilizado pela inoperância das plataformas diante dos ataques à ciência e às informações de qualidade baseadas em fatos. Nos Estados Unidos ou na Inglaterra não existia o Marco Civil e nem por isso deixamos de assistir uma onda de desinformação que redundou no Brexit, na eleição de Donald Trump e na invasão do Capitólio.

O Marco Civil nunca impediu a moderação de conteúdos pelas plataformas. Quem não conteve as falsificações da realidade, as “fazendas de cliques”, a proliferação de grupos fascistas e seu discurso de ódio foram os donos das plataformas. Isso não ocorre simplesmente por que grande parte do Vale do Silício tem simpatias pelas ideias de incompatibilidade entre a liberdade irrestrita de exploração econômica e as democracias, tal como Peter Thiel, fundador do PayPall, ou de Larry Elisson, co-fundador da Oracle, entusiastas da extrema direita e do chamado movimento alt-right.

As plataformas têm um modelo de remuneração extremamente exitoso que redundou em valores de mercado superiores a 1 trilhão de dólares para as Big Techs que possuem o seu controle acionário. Qual a dinâmica principal desse modelo de negócios? Primeiro, a oferta gratuita de interfaces e serviços com o objetivo de coletar massivamente dados das pessoas que as utilizam. Segundo, esses dados são tratados pelos sistemas algorítmicos para a formação de perfis de comportamento e microssegmentação da população que a utiliza. Terceiro, os perfis são agrupados pelas plataformas para serem atingidos com propaganda direcionada por quem tem dinheiro, empresas, departamento de marketing, grupos políticos, entre outros.

Assim, as plataformas monetizam cada segundo que uma pessoa navega em suas estruturas que são arquitetadas para atrair e modular as atenções. Por isso, criaram a lógica da viralização, do engajamento e da venda de likes e impulsionamentos. Todo esforço das plataformas não visa a informação de qualidade, nem a proteção da democracia. Seu objetivo é a espetacularização que permita manter as pessoas olhando e compartilhando seus conteúdos. Por isso, o empobrecimento dos debates que vemos na política mundial se deve muito a essa lógica viralizante que depende de tornar tudo em algo surpreendente.

Quando se ataca o Marco Civil, em geral, o que se pretende é afirmar que as plataformas estavam impedidas de bloquear os conteúdos mentirosos e desinformativos. Logo, a lei deve exigir que a desinformação seja contida pelas plataformas. Desse modo, agora daremos às Big Techs o poder legal de dizer o que é e o que não é desinformação. Tal como no escândalo da Cambrigde Analityca, a solução proposta ao Facebook concentrou ainda mais poder na direção da empresa e não reduziu em nada o processo de desinformação – como demonstrou Frances Haugen, ex-gerente de produtos da rede social.

Na segunda quinzena de março de 2023, quem entrasse no canal do Democracy Now no Youtube se depararia com um aviso: “A comunidade do YouTube identificou o seguinte conteúdo como impróprio ou ofensivo para alguns públicos”. O vídeo considerado impróprio era uma reportagem sobre Julian Assange, líder do Wikileaks que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos. O mesmo Youtube bloqueou a visualização dos conteúdos do podcast Tecnopolítica em doze episódios. Em nenhum desses casos existia desinformação ou discurso de ódio, mas os gestores da plataforma acharam por bem efetivar a redução de visualizações e o bloqueio de conteúdos. Curiosamente, isso não é realizado nos canais da extrema direita, nem mesmo no canal do ex-deputado Mamãe Falei. Para o Youtube esses canais não violam suas regras.

A regulação necessária das plataformas não deveria aumentar o seu poder arbitrário sobre os conteúdos. Precisamos de uma lei que reduza esse poder e as coloque sob o controle das democracias. A regulação exige a necessária informação sobre os dados por elas coletados, os cruzamentos realizados e os objetivos dos sistemas algorítmicos que utilizam. Os termos de uso e políticas de privacidade que expõem não são suficientes para que as democracias e as sociedades tenham informações básicas em suas operações sobre o comportamento social.

Plataformas de relacionamento social não são sites, nem blogs. Elas se colocam como espaços públicos não vinculados a nenhuma opção cultural, partidária, religiosa ou mercantil. Fazem isso para atrair todos os públicos e poder atingi-los com publicidade e marketing. Nessa condição, as plataformas devem estar submetidas a fiscalização democrática.

Como o gerenciamento imediato das plataformas é realizado por sistemas algorítmicos de aprendizado de máquina, é imprescindível a avaliação de impacto do tratamento de dados que realizam. No mínimo, as finalidades dos modelos que criam devem ser expostas nitidamente, sem dubiedades e eufemismos, para quem está sendo por eles modulados. Os termos de uso e as políticas de privacidade das plataformas são demasiadamente genéricas e não permitem saber se estão praticando uma coleta e tratamento excessivos, discriminatórios e inadequados de dados.

Tal como os europeus estão criando um Conselho de Inteligência Artificial composto por especialistas em inteligência artificial, representantes da sociedade civil, do governo e do mercado, a regulação das plataformas, dada a sua complexidade deveria avançar na formação de uma estrutura democrática e multissetorial de aplicação de regras sobre essas empresas de modulação social.

*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Software livre – a luta pela liberdade do conhecimento (Conrad).

Publicado originalmente no site Outras Palavras.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Samuel Kilsztajn Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa Remy José Fontana Fernando Nogueira da Costa Berenice Bento Eugênio Bucci Andrew Korybko Caio Bugiato Thomas Piketty Elias Jabbour Ricardo Musse Ricardo Antunes Otaviano Helene Sandra Bitencourt Everaldo de Oliveira Andrade João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carla Teixeira Matheus Silveira de Souza Leonardo Avritzer Valerio Arcary Sergio Amadeu da Silveira José Machado Moita Neto Daniel Afonso da Silva José Costa Júnior Jorge Branco Lorenzo Vitral Anderson Alves Esteves Ronald Rocha Vladimir Safatle José Dirceu Afrânio Catani Slavoj Žižek José Raimundo Trindade André Singer Bruno Fabricio Alcebino da Silva Renato Dagnino Francisco Fernandes Ladeira Milton Pinheiro Marcos Silva Heraldo Campos Luiz Carlos Bresser-Pereira Osvaldo Coggiola Fernão Pessoa Ramos Alexandre Aragão de Albuquerque Kátia Gerab Baggio Marjorie C. Marona Alysson Leandro Mascaro Marcos Aurélio da Silva Henri Acselrad Eliziário Andrade Juarez Guimarães Benicio Viero Schmidt João Lanari Bo Paulo Martins José Luís Fiori Francisco de Oliveira Barros Júnior Luciano Nascimento José Micaelson Lacerda Morais Salem Nasser Mariarosaria Fabris Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Luiz Souto Maior Annateresa Fabris Eleonora Albano Érico Andrade Michael Roberts Chico Whitaker Tales Ab'Sáber João Adolfo Hansen Luiz Bernardo Pericás Gilberto Maringoni Rodrigo de Faria Michael Löwy Marcelo Módolo João Carlos Loebens Tadeu Valadares Mário Maestri Armando Boito Fábio Konder Comparato Paulo Nogueira Batista Jr Liszt Vieira Flávio R. Kothe Walnice Nogueira Galvão Ari Marcelo Solon Dênis de Moraes André Márcio Neves Soares Ladislau Dowbor Airton Paschoa Antonio Martins Denilson Cordeiro Gerson Almeida Claudio Katz Leda Maria Paulani Henry Burnett José Geraldo Couto Antônio Sales Rios Neto Luis Felipe Miguel Francisco Pereira de Farias Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Eduardo Soares João Sette Whitaker Ferreira Paulo Sérgio Pinheiro Gabriel Cohn Lincoln Secco Dennis Oliveira Luiz Marques Gilberto Lopes Marilena Chauí Yuri Martins-Fontes Leonardo Boff Bernardo Ricupero Luiz Roberto Alves Lucas Fiaschetti Estevez Vinício Carrilho Martinez Daniel Brazil Anselm Jappe Julian Rodrigues Manuel Domingos Neto Chico Alencar Eduardo Borges Maria Rita Kehl Tarso Genro Jean Pierre Chauvin João Feres Júnior Bruno Machado Luiz Renato Martins Paulo Capel Narvai João Carlos Salles Plínio de Arruda Sampaio Jr. Celso Frederico Leonardo Sacramento Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Guimarães Lima Antonino Infranca Ricardo Abramovay Celso Favaretto Manchetômetro Jean Marc Von Der Weid Vanderlei Tenório Bento Prado Jr. Atilio A. Boron Luiz Werneck Vianna Andrés del Río Michel Goulart da Silva Igor Felippe Santos Daniel Costa Paulo Fernandes Silveira Carlos Tautz Eleutério F. S. Prado Marcus Ianoni Ricardo Fabbrini Ronald León Núñez Boaventura de Sousa Santos Eugênio Trivinho Rafael R. Ioris Flávio Aguiar Rubens Pinto Lyra Luís Fernando Vitagliano

NOVAS PUBLICAÇÕES