O novo tempo da política

Imagem: Reynaldo Brigantty
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

A reconfiguração da geopolítica no mapa-múndi favorece países em crescimento, se aproveitarem a oportunidade para diminuir os laços de subordinação

Um dos grandes intérpretes do Brasil, Caio Prado Jr., sublinha que a colonização esteve desde o início subordinada ao ritmo de desenvolvimento do capitalismo global. A modernização do país herdou um caráter dependente. Nos anos 1990, o protoneoliberal Fernando Collor de Mello deu a largada nas privatizações e aumentou a dependência dos centros dinâmicos. O “caçador de marajás” sintetizou no tema da corrupção a ruína da representação política e o caos econômico da ditadura. Fernando Henrique Cardoso assimilou o Consenso de Washington (1989) para obedecer aos ditames da “nova ordem mundial”, retirando da alça de mira do Estado a regulação da economia. O laissez-faire afiava as unhas e domava o ego do intelectual que pediu para esquecessem o que escrevera.

Nossa inserção no “sistema-mundo” – conceito elaborado por Immanuel Wallerstein a partir da ideia de economia-mundo formulada pelo historiador das “longas durações”, Fernand Braudel – nos fez coadjuvantes das grandes potências. Situação que não mudou radicalmente na governabilidade do PT, embora os avanços sociais, educacionais e os polos navais. Mesmo com a conquista sincrônica de governos na região, os progressistas se restringiram a um desenvolvimentismo tecnocrático com um script social-democrata (Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador) para construir o Estado de Bem-Estar Social através do consenso, sem acirrar os ânimos de classe na luta contra as iniquidades. Os conflitos foram para debaixo do tapete, com exceção da bolivariana Venezuela.

A experiência contou com a adesão de 87% da população brasileira (Ibope, 2010), e apontou caminhos ao instigar os acordos comerciais do Mercosul, as articulações acima da lógica mercantil da Unasul e as demais iniciativas de integração continental para colocar em melhores condições as nações latino-americanas, no cenário da globalização. As ações em curso do presidente Lula 3.0 indicam que, com aprendizados a ferro e fogo, seguimos no encalço do Farol de Alexandria. Desta feita, com maior consciência sobre o boicote de elites incultas, com atávico complexo de vira-lata.

Setores associados ao capital estrangeiro perguntam pelo “Lulinha paz e amor”. No momento, outra persona celebra o BRICS, interpela o imperialismo estadunidense, elogia a multipolaridade, inquire a dolarização do comércio transnacional e, em aliança com a China, cria grupos de facilitação do comércio, aplicação pacífica de tecnologias (satélite Cbers-6), cooperação de ciência e inovação em áreas de informação e comunicação, coprodução televisiva, investimento industrial, economia digital, evolução social e rural, e combate à fome e à pobreza. Os memorandos sino-brasileiros firmados implicam aportes de R$ 50 bilhões para a reindustrialização da nação. Ótimo recomeço.

Com a derrota eleitoral, mas não política, do projeto que acenava um regime de exceção iliberal – o Brasil voltou ao palco. Na Conferência Mundial do Clima (COP 27), o ativista ambiental Al Gore explicou aos líderes dos hemisférios Norte e Sul que, “ao eleger Lula, o povo resolveu preservar a Amazônia”. Uma decisão responsável para com o futuro do planeta e da humanidade. A hecatombe climática e a ameaça à biodiversidade descortinaram horizontes que transcendem o totalitarismo da mercadoria. Estamos vivendo entre dois mundos muito distintos, o unipolar e o multipolar. Um tarda em morrer, enquanto o outro já nasceu, para evocar a metáfora gramsciana. A incapacidade do Ocidente metabolizar em termos simbólicos a profunda transição de modelos sacrificou a Ucrânia.

A reconfiguração da geopolítica no mapa-múndi favorece países em crescimento, se aproveitarem a oportunidade para diminuir os laços de subordinação. Pela densidade demográfica, vigor do PIB e posição geográfica com extensão fronteiriça no Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e o Departamento Ultramarino francês, o Brasil é a peça chave na equação. Em consequência, a própria América Latina voltou ao teatro político, econômico, cultural.

Na década de 1930 havia a disputa entre três alternativas ao liberalismo clássico (o nazi-fascismo, o comunismo soviético e o keynesianismo), todas antiliberais. No primeiro quarto do século XXI, com a crise da democracia, disputam espaço o obscurantismo de extrema direita e o iluminismo de esquerda. É ilustrativa a resolução petista para mobilizar a sociedade civil organizada e reanimar os Comitês Populares de Luta com papel aglutinador nas últimas eleições, a fim de aproximar a base social do programa governamental. O reconhecimento às Conferências Nacionais pelo Estado-movimento, com ampla participação cidadã, funciona qual suplemento de vitamina institucional.

Compreende-se a assertiva de Emir Sader no artigo “A refundação do Estado e da política”, em A crise do Estado-nação, livro coordenado por Adalto Novaes. “O Orçamento Participativo foi o avanço democrático mais importante depois da queda da ditadura e do restabelecimento do Estado de direito no Brasil. Ele consiste no embrião de uma refundação do Estado para além da dicotomia estatal / privado, porque fundado na esfera pública”. Apesar da experiência do Orçamento Participativo acontecer numa conjuntura política adversa, marcada pelo esboroamento da ex-URSS e situada fora das erupções revolucionárias dos compêndios de história em que subalternos rompem o ciclo da dominação, o fato é que o cerco da ideologia do monetarismo deixou brechas em aberto à criatividade plebeia.

Nada que impedisse o fiscalismo das flores do mal. “A informalização das relações de trabalho, junto a taxas recordes de desemprego estrutural, acompanhada das formas de precarização do trabalho, desestruturou o tecido social, afetando-o em sua totalidade, incluindo o segmento que se mantém dentro das relações de trabalho. A quebra dos contratos formais, com o que significam de via dupla de direitos e deveres entre indivíduo e sociedade, gera novas formas de exclusão”, acusa o conselheiro editorial da New Left Review. Então o ruim ficou pior. Os excluídos foram cancelados.

A crítica de Emir Sader data de 2003, muito antes da aprovação da Lei das Terceirizações (2017) que comemorou a superexploração do labor no governicho do golpista Michel Temer, ao construir uma ponte de retorno aos padrões do colonialismo no período escravista. O passado de horrores se estendeu ao presente, onde o racismo e o sexismo forjam sujeitos de não-direitos em um sistema social com predominância das oligarquias predatórias primário-exportadoras e financeiras.

O desafio está em recuperar a dignidade da política e superar o negacionismo neofascista: (a) do livre mercado, que converte cidadãos em consumidores passivos; (b) da mídia tradicional, que legitima a desobediência civil individual em detrimento das atividades coletivas de protesto; (c) do Judiciário, que em regra criminaliza as negociações interpartidárias para compor uma coalização com repartição de cargos, conforme ocorre em qualquer geografia para formar maioria parlamentar e; (d) dos ajustes fiscais, que erodem a democracia e desacreditam a política. Esses são os quatro cavaleiros capitalistas que contribuem para a despolitização e a desmoralização da política.

Hoje, o processo de hegemonia das classes dirigentes se traduz e consolida sob a batuta do rentismo nas finanças, a precarização das ocupações laborais e as desregulamentações. Prevalece a crença de que o perigo que paira sobre a liberdade não provém da tirania, porém da igualdade. Prato cheio à pregação neoliberal de Friedrich Hayek, cofundador da Société du Mont-Pèlerin, que considera a desigualdade o valor por excelência (!) para o engrandecimento dos indivíduos e coletividades, em substituição das consignas consagradas pela Revolução Francesa. Restou à impolítica ir a reboque da acumulação e da destruição, avessas ao princípio da felicidade pública.

Mas seu descrédito, se causa espanto, não configurou um destino incontornável. É possível redimensionar a política com o diapasão das garantias materiais para o exercício da cidadania plena. Os meios vinculam-se aos fins. Reza o provérbio português, “não existe bem que sempre dure, e nem mal que nunca acabe”.

Refundar a política com o participacionismo equivale a empoderar a democracia para dissipar a difusão antipolítica na sociedade e proteger as instituições republicanas. Para a pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da UnB, Danielly Ramos, “a parceria com o gigante asiático repõe nos trilhos a cooperação estratégica” – em moeda própria.

Donald Trump associa o descarte do dólar das transações à derrota em uma guerra mundial. O jus esperniandinão para a marcha da múltipla polaridade. Como na canção de Ivan Lins e Vitor Martins, entramos num Novo tempo. Os cães de guarda da imprensa imperialista ladram, a caravana passa. O sonho não acabou, John.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Paulo Fernandes Silveira Luiz Bernardo Pericás Carlos Tautz Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Frederico Chico Alencar Fernando Nogueira da Costa Paulo Capel Narvai Luciano Nascimento Gabriel Cohn Leda Maria Paulani Eleutério F. S. Prado Tadeu Valadares Dennis Oliveira Berenice Bento Marcos Aurélio da Silva Milton Pinheiro João Carlos Salles Elias Jabbour Sandra Bitencourt Ricardo Abramovay Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Silva Francisco Fernandes Ladeira Denilson Cordeiro Chico Whitaker Alexandre Juliete Rosa Yuri Martins-Fontes Renato Dagnino Vanderlei Tenório Ladislau Dowbor Benicio Viero Schmidt Sergio Amadeu da Silveira José Costa Júnior Marilia Pacheco Fiorillo Maria Rita Kehl Bernardo Ricupero Claudio Katz Michael Roberts Leonardo Avritzer Luiz Roberto Alves Antonio Martins Rubens Pinto Lyra Ronald León Núñez Daniel Afonso da Silva Gilberto Maringoni Jean Marc Von Der Weid Marcelo Guimarães Lima Valerio Arcary Paulo Nogueira Batista Jr Henri Acselrad Henry Burnett José Micaelson Lacerda Morais Matheus Silveira de Souza Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fábio Konder Comparato Marilena Chauí Gilberto Lopes Marcelo Módolo Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Loebens Annateresa Fabris Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Brazil Luiz Eduardo Soares Antônio Sales Rios Neto Michael Löwy José Raimundo Trindade Heraldo Campos Tales Ab'Sáber Ronaldo Tadeu de Souza Igor Felippe Santos Manuel Domingos Neto Leonardo Boff Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Everaldo de Oliveira Andrade Eugênio Trivinho Marjorie C. Marona Ronald Rocha Rodrigo de Faria André Singer Gerson Almeida Flávio Aguiar Michel Goulart da Silva Juarez Guimarães Alysson Leandro Mascaro Vinício Carrilho Martinez Daniel Costa Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Ari Marcelo Solon Alexandre de Freitas Barbosa Dênis de Moraes Bruno Machado João Paulo Ayub Fonseca Luís Fernando Vitagliano Armando Boito Thomas Piketty Boaventura de Sousa Santos Remy José Fontana Salem Nasser Rafael R. Ioris Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Machado Moita Neto Eliziário Andrade Marcus Ianoni Andrés del Río Antonino Infranca Paulo Martins Tarso Genro Luis Felipe Miguel Anselm Jappe Jorge Luiz Souto Maior André Márcio Neves Soares Airton Paschoa Liszt Vieira Bento Prado Jr. José Luís Fiori Lorenzo Vitral José Geraldo Couto Manchetômetro Luiz Werneck Vianna Samuel Kilsztajn Jean Pierre Chauvin Flávio R. Kothe Slavoj Žižek Priscila Figueiredo João Lanari Bo Vladimir Safatle Mariarosaria Fabris Luiz Renato Martins Érico Andrade Afrânio Catani Osvaldo Coggiola Mário Maestri José Dirceu Andrew Korybko João Sette Whitaker Ferreira Eduardo Borges Alexandre Aragão de Albuquerque Eleonora Albano Leonardo Sacramento Atilio A. Boron Carla Teixeira Ricardo Fabbrini Caio Bugiato Fernão Pessoa Ramos João Feres Júnior Celso Favaretto Luiz Marques Eugênio Bucci Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen Ricardo Musse Kátia Gerab Baggio Jorge Branco Otaviano Helene Ricardo Antunes Lincoln Secco Julian Rodrigues

NOVAS PUBLICAÇÕES