Dois anos de desgoverno – farsa democrática e disfarce de legalidade

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Por LEONARDO BOFF*

Tudo o que foi criado nos governos Lula-Dilma que tivesse sabor popular ou inserção dos empobrecidos na sociedade foi literalmente desmontado de forma criminosa.

É fato confessado pelo ex-chefe supremo das Forças Armadas (FFAA), general Eduardo Villas Boâs que o Alto Comando em 2018 deu um golpe na democracia brasileira, ferindo o inciso XILV do artigo 5º da Constituição que diz, tal fato: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. O sentido era, pressionando o STF para manter-se distante, utilizar o juiz Sérgio Moro (exímio na aplicação do lawfare) para alijar Lula do pleito presidencial, condenando-o por qualquer crime que fosse, no caso, “por crime indeterminado”e pô-lo na prisão onde ficou por mais de 500 dias. Desta forma abrir-se-ia o caminho para eleição ex-capitão compulsoriamente reformado por mau comportamento, Jair M. Bolsonaro. O que de fato ocorreu.

Conhecemos a bíblica “desolação da tribulação” que sobreveio ao nosso país com o presidente eleito. Ocupou militarmente o Estado com 11 mil militares em distintas funções de comando ou de administração. Não soube guardar a dignidade que o mais alto cargo da nação exige e entregou-se às difamações, às mentiras diretas, aos fake news, ao uso vergonhoso de palavrões com soberano desprezo da imprensa. Mente assassina, ele preferiu incentivar a compra de mais armas por civis do que elaborar um plano de enfrentamento do Covid-19 que já fez mais de 220 mil vítimas e nos aproximando de 10 milhões de infectados. Na avaliação mundial, o Brasil ficou em último lugar nas políticas sanitárias contra o Covid-19 e na aplicação da vacinação à população.

A nossa democracia que historicamente sempre foi de baixa intensidade, agora, sob Bolsonaro e comparsas, foi estraçalhada nem chegando a ser de baixíssima intensidade. Ela virou uma farsa e suas principais instituições um disfarce de legalidade, por mais que se diga que “as instituições funcionam”. Cabe perguntar a quem? Não à política sanitária mínima, não à justiça necessária aos milhões de desempregados, aos indígenas e quilombolas, não ao cuidado da natureza em devastação, não à defesa contra ameaças diretas ao STF, nem contra um propósito declarado de golpe militar. Sob o disfarce da legalidade se blindam notórios corruptos, concede-se facilmente habeas corpus a políticos indiciados por ilegalidades e até crimes e permanecem impunes centenas de feminicídios e discriminações e até assassinatos dos membros do LGBTI.

Vou me permitir usar as palavras de dois sociólogos porque encontrei neles as melhores expressões para qualificar o que sinto e penso acerca de nossa presumida democracia: Thiago Antônio de Oliveira Sá, sociólogo e professor universitário (cf. O sequestro das instituições brasileiras, no portal Carta Maior) e de Pedro Demo, colega de estudos no Brasil e na Alemanha, professor na Universidade de Brasília, uma das inteligências mais brilhantes que conheço com vasta obra de pesquisa científica. Delas sirvo-me apenas de tópicos significativos do livro Introdução à sociologia: complexidade, interdisciplinaridade e desigualdade social (Atlas, p. 329-333), onde diretamente aborda o tema da democracia no Brasil.

Começo com Oliveira Sá no referido artigo em Carta Maior: “O público é um anexo do privado. A perícia cede lugar à malícia. A corrosão institucional se visualiza facilmente: obscurantistas e mal educados como ministros da Educação; um ecocida que passa sua boiada sobre o meio ambiente; uma ruralista à frente da agricultura nos envenena com seus mais de 500 agrotóxicos legalizados; uma evangélica fundamentalista cuida das mulheres e demais minorias com seu machismo e sua obsessão com a sexualidade alheia. Não nos esqueçamos do primeiro ministro da Saúde, lobista dos planos privados, a estender sua mão visível sobre o SUS. Um emissário do mercado financeiro dirige o ministério da economia. Um maluco, pária orgulhoso e antiglobalista (seja lá o que isso for), faz do Brasil vexame internacional nas relações exteriores. Um racista à frente da Fundação Palmares. Polícia federal convertida em guarda-costas particular da presidência e de seus filhos. A Procuradoria Geral da República a livrar a cara do empreendedor das rachadinhas. Um militar na Saúde dispensa maiores explicações…. juízes que têm lado, vejam-se os novos vazamentos das tramoias nada republicanas de Moro, Dallagnol e seus comparsas. Absurdo, mas não surpreendente: a velha conversão das instâncias judiciais em arma de grupos dominantes. Para perseguição de adversários, para inviabilizar suas candidaturas em favor de outros”.

Não perde em contundência Pedro Demo. O que escreveu em 2002 vale muito mais para 2021: “Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis “bonitas”, mas feita sempre, em última instância, pela elite dominante para que sirva a ela do começo até o fim. Nossa democracia espelha, cruamente, a ‘luta pelo poder’ no sentido mais maquiavélico da luta por privilégios. Político sem privilégios é figura espúria em nosso cenário – desde logo é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco [comentário meu: vide o ex-deputado Jair Bolsonaro por sucessivos mandatos], fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se à custa dos cofres públicos; entrar no mercado por cima. Mas há exceções que confirmam a regra… A própria Constituição de 1988 não abriga propriamente projeto nacional coletivo, afinado sob a batuta da justiça e da equalização de oportunidades, mas proposta corporativista retalhada por meio da pressão particularizada: os magistrados fizeram o seu capítulo, bem como a polícia, as universidades, o legislativo, o judiciário, o Executivo e a iniciativa privada… É a tão decantada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”, mas que detém concepção corporativista extrema, muito distante dos interesses das maiorias… Fazem-se muitas propostas mas sem qualquer ligação com embasamento financeiro e institucional…No final fizemos outra vez imitação barata do Welfare State. Mas há coisas boas como a lei de responsabilidade fiscal para evitar que se gaste o que não se arrecada… O Legislativo longe de defender ideias, propostas, equidade, defende verbas, fatias de poder, privilégios exclusivos. É o lugar principal da negociata, do cá e o da lá…Não é pois difícil de mostrar que nossa democracia é apenas formal, farsante, que convive solenemente com a miséria das grandes maiorias. Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação. Não se nota na classe política dominante em geral qualquer gesto dirigido a superar mazelas históricas plantadas em privilégios absurdos para poucos… Nossa pobre política lancinante se traduz na miséria de nossa democracia. Por isso é tão importante manter a ignorância política das massas” (p. 333).

A realidade política sob Bolsonaro é muito pior do que a desenhada acima. Visa reconduzir o país à fase pré-iluminista, da universalização do saber, dos direitos e da democracia na direção regressiva a tempos obscuros do pior da Idade Média tardia, não da Idade Média áurea com suas imensas catedrais, com a criação de universidades, com suas sumas teológicas, com seus sábios, místicos e santos. Tudo o que foi criado nos governos Lula-Dilma que tivesse sabor popular ou inserção dos empobrecidos na sociedade foi literalmente desmontado de forma criminosa, pois implicou sofrimento aos que já sempre sofreram historicamente.

Causa-nos espanto que aquelas autoridades judiciais e políticas que poderiam mover ações juridicamente fundadas contra a irresponsabilidade e crimes sociais do presidente não se movam seja por se sentirem cúmplices ou por ausência de espírito patriótico e mesmo faltos de sentido de justiça social. Como vivem a quilômetros luz do drama do povo e veem seus direitos adquiridos e privilégios garantidos não os move a nobre compaixão para usar os instrumentos jurídicos de que dispõem para livrar a nação daquele que a está destruindo e segue mais aferrado ainda nesse mesmo intento perverso.

Razão tem o Papa Francisco ao falar várias vezes aos movimentos sociais mundiais, aqueles que querem outro mundo porque este lhes é um inferno ou um purgatório: “não esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou pior. Comecem por vocês mesmos, vale dizer, as multidões devem ocupar ruas e praças e botar para correr aqueles que lhes sequestraram as oportunidades de serem gente, de sentirem-se sujeitos um mínimo de dignidade e de alegria de viver. Esperamos isso aconteça. Só depois que se sentirem ameaçados, os dominantes aderem. Se não cuidarmos se apropriam da energia emergente para seus próprios fins privados. Mas o que deve ser tem força: o afastamento o mais rápido possível de quem conduz uma política necrófila contra o seu próprio povo”.

Diante da obscuridade do horizonte e, a muito custo, mantendo a esperança contra a esperança, faço minhas as palavras do Mestre, também tomado de profundo pesar: “tristis est anima mea usque ad mortem”.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros de O covid-19: um contra-ataque da Terra contra a humanidade (Vozes).

 

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