Por Valerio Arcary*
Durante vinte anos a ditadura militar impôs o terror de Estado para preservar a estabilidade política. A ditadura silenciou uma geração. Perseguiu dezenas de milhares, prendeu milhares, matou centenas.
Cinquenta e seis anos nos separam da terrível noite de 31 de março de 1964. Mas a herança medonha de 1964 ainda está presente. Porque o golpe de 1964 foi uma derrota histórica. Impossível prever o que Bolsonaro poderá fazer. Ameaças de um possível Estado de Sítio, dependendo da evolução, tragicamente, previsível da pandemia entre nós, estão no ar. Portanto, todas as liberdades conquistadas nos últimos trinta e cinco anos estão, potencialmente, em perigo.
O aniversário do golpe recoloca a pergunta presente, ansiosamente, na cabeça de milhares de ativistas de esquerda: como foi possível termos chegado em 2020 nesta situação? Como foi possível que a extrema-direita, através de um aventureiro neofascista, tenha conquistado, através de eleições, a presidência? Podemos concluir que sofremos uma derrota histórica? Ou, em palavras simples, que horas são? Para agir todos os dias precisamos saber que horas são. Para uma militância revolucionária precisamos saber em qual conjuntura nos encontramos.
O argumento deste artigo é que estamos em situação reacionária, mas não aconteceu ainda uma derrota histórica. Mas a verdade, também, é que só após alguns anos de distância e perspectiva é que é possível aferir, sem grandes margens de erro, se uma derrota político-social foi ou não histórica.
O marxismo trabalha com vários níveis de temporalidades. Consideramos épocas, etapas, situações, conjunturas, em diferentes graus de abstração. Estamos na etapa aberta por uma derrota histórica em 1989/91, a restauração capitalista. No Brasil a situação é reacionária há alguns anos. Há duas semanas entramos em uma nova conjuntura, depois do discurso de Bolsonaro contra a quarentena parcial implantada na maioria dos Estados.
Uma derrota histórica não é uma mudança de conjuntura. Significa que o quadro estrutural da relação social de forças foi alterado de forma desfavorável por um longo período. Trata-se de uma derrota muito mais grave que uma derrota eleitoral. Mais grave, também, que uma derrota político-social. Trata-se da mais séria de todas as derrotas. Quando uma derrota histórica se precipita, toda uma geração perde a esperança de que a vida pode mudar através da mobilização política coletiva. Será necessário que uma nova geração alcance a vida adulta, e amadureça através da experiência da luta social.
A ascensão do nazi-fascismo nos anos 1920 foi uma derrota histórica internacional. Primeiro na Itália, depois em Portugal, na sequência na Alemanha e, finalmente, na Espanha, abrindo o caminho para a Segunda Guerra Mundial. A ascensão do estalinismo na URSS foi uma derrota histórica internacional. A derrota na guerra civil na Grécia em 1945 foi uma derrota histórica, porém, nacional. O golpe de 1964 foi uma derrota histórica de dimensão regional. O golpe no Chile foi uma derrota histórica. A mais grave das derrotas históricas nos últimos trinta anos foi a restauração capitalista na ex-URSS. Teve dimensão internacional. Encerrou uma etapa que se estendeu entre a vitória sobre o nazismo, a partir de 1944, e 1989/91, com a dissolução da URSS.
A tradição marxista-revolucionária nos legou uma referência teórica sobre o tema. Há uma régua que pode nos orientar. Existem situações contrarrevolucionárias, reacionárias, estáveis, pré-revolucionárias e revolucionárias. E devemos considerar as situações transitórias entre elas. Se a derrota foi histórica não estamos em uma situação reacionária. Estamos em uma situação contrarrevolucionária. O regime democrático-eleitoral já foi deslocado ou está em vias de ser, porque o equilíbrio de poder entre as instituições foi ou está para ser subvertido. Porque não tem mais sustentação na estrutura social. A superestrutura política do Estado irá ser vergar diante da nova relação social de forças. Mas, felizmente, há boas razões para pensar que as derrotas acumuladas desde 2015 não têm a gravidade máxima de uma derrota histórica.
A interpretação de que a vitória do golpe, além da queda de João Goulart, e da derrota do movimento dos trabalhadores e seus aliados teve o sentido de uma regressão histórica para o Brasil como nação, uma recolonização é inescapável. Toda tentativa de diminuir o impacto reacionário da insurreição militar que levou Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo à presidência, com poderes ultraconcentrados, em terrível sequência de arbítrio, violência e repressão se resume a uma falsificação histórica.
Durante vinte anos a ditadura militar impôs o terror de Estado para preservar a estabilidade política. A ditadura silenciou uma geração. Perseguiu dezenas de milhares, prendeu milhares, matou centenas. Foi um triunfo contrarrevolucionário que inverteu a relação de forças político-sociais em escala continental, revertendo a situação promissora aberta pela revolução cubana em 1959.
O Brasil, durante a ditadura militar, regrediu. Fomos uma das pátrias do capitalismo mais dependente, selvagem, bárbaro. O Brasil gerado pela ditadura perdeu imensas oportunidades históricas para um crescimento com desenvolvimento menos desigual, menos destrutivo, menos desequilibrado. Gerou uma sociedade amordaçada, culturalmente, pelo medo; amputada, educacionalmente, pela desqualificação do ensino público e favorecimento do privado; fragmentada, socialmente, pela superexploração do proletariado pelos salários de miséria; transfigurada pela explosão de violência e delinquência.
O que a ditadura fez foi condenar o país a manter, por mais meio século, a condição de semicolônia comercial norte-americana. Criou a maior dívida externa do mundo, tanto em números absolutos, como no peso da dívida em proporção do PIB. Para piorar, aceitou que a dívida externa fosse feita na forma de títulos pós-fixados, e com a arbitragem em Nova York, de acordo com a legislação norte-americana. Fez do Brasil o paraíso da usura internacional.
Não parece plausível debater, em 2020, se as sequelas do que aconteceu em 1964 foram ou não, verdadeiramente, no sentido mais grave das palavras, devastadoras. Abismos regressivos vitimaram, desde o final da Segunda Guerra Mundial, incontáveis vezes, sociedades contemporâneas das mais diferentes e terríveis formas e proporções. Na forma de limpezas étnicas, por exemplo, quando da fundação do Estado de Israel, a Nakba palestina em 1948; na forma de bárbara de destruição das condições médias de existência do povo, como foram as sequelas da restauração capitalista na Rússia após a Perestróica; e até na forma de genocídios, como em Ruanda, em 1994, ou na Bósnia, entre 1992/95. Mas ocorreram, tragicamente, outras formas de regressão histórica, como as ditaduras no cone sul da América Latina. O regime da ditadura militar foi tão reacionário que sua principal herança foi ter deixado o Brasil, duas décadas depois, como a mais desigual das sociedades do mundo fora da África.
Em uma análise de conjuntura é necessário estudar as relações de força nos conflitos sociais sem perder o sentido das medidas. Devemos considerar uma escala de quantidade, e qualificar as diferenças de qualidade. Exageros impressionistas não ajudam. A insegurança entre os trabalhadores não é o mesmo que desespero. O desalento na esquerda não é o mesmo que prostração. Devemos ser capazes de fazer mediações. Existe o perigo de uma derrota histórica no horizonte, se o governo Bolsonaro não for detido. Existe o perigo de um “inverno siberiano”. Mas Bolsonaro não é imbatível. Ao contrário de 1964, haverá resistência, custe o que custar. Até o fim.
*Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo).