Pedágio – A “cura gay” de Tiquinho Holiday

Imagem: Divulgação/ Pedágio
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Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*

Performances musicais de um jovem negro, pobre e gay no filme dirigido por Carolina Markowick

 Tiquinho compartilha vídeos nos quais dubla divas da canção internacional. Dentre estas, Billie Holiday. Uma voz singular, “de centímetros”, possibilitada pela existência do microfone (CASTRO, 2017). Com “feitiçaria”, a cantora “dava vida às letras, fazia o público sentir a dor”. Na sua vitalidade musical, “punha sexo – sexo doloroso, ansioso – em cada sílaba de suas canções” (KAPLAN, 2013, p.57). Performances musicais de um jovem negro, pobre e gay. Interseccionalidades de “identidades subalternas”, geradoras de desgosto para a sua mãe. Esta, no seu desassossego, vai em busca de uma “cura” para o seu filho. Na procura por um tratamento, cai na lábia de um pastor religioso. Os lobos sob pele de cordeiro e suas sedutoras pregações. Visões projetadas no filme Pedágio (2023), dirigido por Carolina Markowick. Ambientado na paulista cidade de Cubatão, a obra cinematográfica abre para uma reflexão crítica sobre os equívocos e violências praticadas pelos curadores de uma proposta religiosa, salvífica, voltada para os homossexuais, pederastas, sodomitas “pecadores” e “doentes”, sob a direção de Exu.

 No desvendamento das máscaras sociais, Pedágio mostra o lado oculto da vida cotidiana de quem vai ao culto religioso, é casada e experimenta práticas sexuais com outros parceiros, paralelas à conjugalidade oficial, “normal”, enquadrada nos padrões morais e religiosos vigentes. Por debaixo dos panos, no escondido, de forma velada, a prática de sexo fora da ordem do olho do poder. Atitudes hipócritas e farisaicas, sob véus moralistas. Entre o sagrado e o profano, um conhecido dito popular é confirmado pelos trânsitos comportamentais: “uma vela para Deus e outra para o Diabo”.

 No desvelamento da hipocrisia comportamental religiosa, Pedágio revela a irresponsabilidade dos que, em nome de Deus, na sua ignorância e dogmatismo, sem bases científicas, propagam promessas curativas falaciosas. Nos templos evangélicos, entre as variadas demandas religiosas, um dia curativo é dedicado à “oração para a restauração da saúde física e emocional”. Uma fonte de lucro no mercado religioso concorrencial e de transações. Entre as suas diversas manifestações, mais uma faceta venenosa da religião recebe um olhar artístico crítico. Na história, a associação entre homossexualidade e pecado trouxe dramáticos e trágicos desdobramentos.

 Em solo brasileiro, o “Deus punitivo” da “Santa Inquisição” descobriu “o paraíso” dos “pecadores lúdicos”. Da colônia à atualidade, os “devassos” sob a mira das “patrulhas da moral e da família” (TREVISAN, 2018). Controlar e curar são os verbos ligados às reações e preocupações médico-legais com a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (GREEN, 2022). Nos investimentos curativos para a sua cria, a genitora de Tiquinho passou um tempo vendo o sol nascer quadrado. Uma terapia cara para o seu padrão socioeconômico. Na sua angústia para conseguir dinheiro e investir no objetivo de tratar da “doença” filial, ela cai na ilegalidade, entrando como cúmplice nos assaltos praticados pelo seu amante.

No discurso curador, o “antro” anal das bactérias e do mal, é demonizado. Na hierarquia das partes corporais, sob o controle social, a região do ânus ocupa uma posição inferior. Menos nobre que o pulmão? Tratada como uma “fossa”, perde o foco do seu potencial de prazer e gozo sexual. A expressão “tomar no cu” tem seus pejorativos e desrespeitosos empregos. É indelicada para com os apreciadores das penetrações anais. Em outra direção, nas evocações biográficas da companhia das letras de Reinaldo Arenas, leio sobre as suas aventuras eróticas e pegações clandestinas. Nos seus jogos eróticos, o “sexo passivo” é apresentado como uma das suas paixões. Na sua “voracidade sexual”, o “maldito” Arenas narra as suas encantadoras e prazerosas ginásticas sexuais. Erotismo literário no qual as transas entre homens que fazem sexo com homens exaltam o prazer de ser possuído por um amante “ativo”. Na contraluz literária, “dar o rabo” ganha sentidos outros, associados aos nobres gozos e êxtases existenciais (ARENAS, 1995).

 Tratamentos cinematográficos sobre a “cura gay” estão disponíveis para os interessados em debatê-la. Em tela, os seus torturantes métodos. Imagens dramáticas, ancoradas em casos biográficos concretos, revelam os infernais momentos experimentados por quem buscou a ajuda dos curadores religiosos. “Orações para Bobby”, dirigido por Russell Mulcahy e “Boy Erased: uma verdade anulada”, sob a direção de Joel Edgerton, são exemplares. “Até onde a intolerância pode nos levar?” No caso de Bobby, ao luto pelo seu suicídio (AARONS, 2023). Em termos de uma “rebelião somatopolítica”, trata-se de um projeto emancipatório, revolucionário, pautado na “emancipação do corpo vivo vulnerável” e subalternizado (PRECIADO, 2023, p.513).

 “Raça, classe e sexo nas telas”. Pedágio é “cinema vivido” na sua magia de “ferramenta pedagógica”. Como “narrativa visual”, o filme transmite uma “mensagem política”. A ênfase no seu “papel pedagógico” promove uma reflexão sobre o potencial fílmico de encorajamento e promoção de “uma narrativa contra-hegemônica em desafio às estruturas convencionais de dominação” (HOOKS, 2023, p.19). Nesta, os corpos são controlados, vigiados, punidos e domesticados. As rejeições religiosas do mundo e suas direções são incorporadas por indivíduos ambíguos, cujos desejos conflituam entre si nas suas buscas salvíficas. Entre os deleites carnais e os estados de graça divinos, provam de sabores variados. Ais gozosos e dolorosos.

Kauan Alvarenga, o intérprete de Tiquinho, ganha destaque em uma conjuntura histórica na qual “os negros falam por si só”, em “pretitudes” que ocupam os festivais cinematográficos. Em “escrevivências” fílmicas, enfrentam a história e olham de frente nas construções cinematográficas por eles feitas. Ao afirmarem que “o futuro é aqui”, nomes como o de Kauan Alvarenga são premiados na composição de “um estilo próprio para uma interpretação descolonizada” (RODRIGUES, 2011, p.149). Atores negros produzindo presenças e construindo “imaginários, alteridades e futuridades” imagéticas. Vozes presentes nas telas para “lembrar que a dor não é o único jeito de existir”. “Na boca do mundo”, em travessias ancestrais e geracionais, os Antonios Pitangas são protagonistas e constroem as nossas histórias, rumo a uma “terra nova”. Na dança do tempo, Kauan Alvarenga é estrela presente da cena na qual a futuridade é a escrevivência da sua pretitude. Com potencial para entrar na lista dos “negros gigantes”, Kauan Alvarenga assume o seu pretagonismo.

 Da tela, sou estimulado, pelo Tiquinho, a escutar Billie Holiday. Escuto o álbum “Lover Man” (1958). Para meu deleite e surpresa, descobri que duas das suas canções foram gravadas por Gal Costa, com versões de Augusto De Campos para o disco “Caras e Bocas” (1977). São elas: “Crazy He Calls Me” (Louca Me Chamam), composição de Bob Russell e Carl Sigman e “Solitude” (Duke Ellington, Eddie DeLange, Irving Mills). D(i)scobertas fonográficas para pensar os toques audiovisuais de PEDÁGIO.

*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência


Pedágio
Direção e roteiro: Carolina Markowicz
Elenco: Maeve Jinkings, Thomas Aquino, Kauan Alvarenga

Bibliografia


AARONS, Leroy. Orações para Bobby: Até onde a intolerância pode nos levar? São Paulo: Hoo Editora, 2023.

ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.

CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar: Novíssimos mergulhos na Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

HOOKS, Bell. Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas. São Paulo: Elefante, 2023.

KAPLAN, James. Frank: a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

PRECIADO, Paul B. Dysphoria mundi: O som do mundo desmoronando. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.


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