Pousando no trabalhador

Imagem: Aleksandar Pasaric (Torre N De Seul)
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O termo Ppalgaengi, literalmente “vermelhinho”, permanece como insulto para designar toda pessoa crítica da ordem socioeconômica em vigor na Coreia do Sul

Pousando no amor é uma série sul-coreana exibida na Netflix. Resolvi assisti-la após a informação dela ter obtido imensa popularidade em grande parte da Ásia durante os longos períodos de confinamento devido à Covid-19. Fora de seu país de origem, tornou-se a segunda produção coreana mais popular entre os espectadores estrangeiros em 2021, depois de Round 6. Quem sou eu para esnobar a opinião popular?!

Em particular, chamou-me a atenção a notícia de uma cena romântica, filmada no pequeno píer de madeira sobre uma água turquesa com os Alpes suíços ao fundo, ser o principal motivo pelo qual milhares turistas asiáticas viajam até Iseltwald, uma localidade com apenas quatrocentos habitantes às margens do Lago Brienz, perto de Berna. Isso se tornou um problema porque, embora seja difícil calcular o número de fãs da série em relação ao total de turistas, estima-se haver mil visitantes para cada habitante local!

A série conta história de uma herdeira sul-coreana milionária ao cair de parapente, na Coreia do Norte, encontrar um oficial cavalheiro a serviço do regime totalitário. A autora do excelente roteiro relatou sua inspiração ter sido um acontecimento real: uma atriz estava velejando pela Coreia do Sul quando seu barco, devido às condições climáticas, quase atravessou a fronteira com a Coreia do Norte.

A série repagina a tragédia Romeu e Julieta de William Shakespeare, escrita por volta de 1597. Em lugar da estória se passar em Verona (Itália), o romance proibido se dá entre dois jovens apaixonados, cujas famílias/países são rivais, uma no Norte, outra no Sul.

É uma comédia romântica, mas com um destino trágico pela força do ódio familiar e político. Aborda temas universais, como o poder do amor e o equívoco da violência de ambos os lados da fronteira. Soma geopolítica, geoeconomia, choques culturais mútuos, ambições de ascensão, seja na nomenclatura comunista, seja na dinastia capitalista, envolvendo também muito suspense e violência. Sem preconceitos, recomendo-a.

Pousando no amor é um dos doramas mais bem avaliados pela crítica e pelo público. Essa intitulação em lugar da palavra drama, para designar séries coreanas, acontece devido a uma regra gramatical presente no japonês e no coreano: uma consoante precisa estar acompanhada de uma vogal. Usa-se também K-drama.

Ao longo da história, a cultura coreana foi influenciada pela guerra. Desde a separação das Coreias, a guerra cultural permanece viva. A industrialização, a urbanização e o planejamento estatal da Coreia do Sul levou o país a possuir a força de trabalho com maior escolaridade entre os países da OCDE: 70% dos adultos de 25 até 34 anos têm Ensino Superior.

No passado, a maior parte da população da Coreia vivia em pequenas áreas rurais, tal como permanecem os habitantes da Coreia do Norte conforme a série mostra. Reina nesta a escassez do comunismo diante da abundância do consumismo da Coreia do Sul.

No entanto, será esta, de fato, o prometido paraíso capitalista pelo neoliberalismo? Renaud Lambert, jornalista do Le Monde Diplomatique, publicou esclarecedora reportagem a respeito de “A Outra Face do Milagre Coreano” (edição 192, 30/06/23).

Quando um contestador põe em dúvida as virtudes da democracia liberal ocidental, cá a direita grita: – “Vai prá Cuba!”. Lá exclama: – “Então, vai morar na Coreia do Norte!”.

A Península da Coreia oferece ao pensamento dominante um contraste eficaz para demonstrar a superioridade entre duas opções: ao Norte, a ditadura, a fome e o atraso; ao Sul, a democracia, a abundância e o progresso. De um lado, o regime totalitário dito comunista; de outro, um “modelo” a imitar. Afinal, este país tão pobre, após a Guerra da Coreia (1950-1953), se desenvolveu e se tornou a 12ª potência econômica mundial, mantendo o título de “país mais inovador” desde 2014.

Existem, no entanto, duas Coreias do Sul, uma midiática e outra exploradora ao máximo de sua força de trabalho. Os trabalhadores esgotados dormem até no metrô. Outra evidência da necessidade de descanso foi detectada por uma pesquisa de 2021: um morador de Seul em cada três não tivera relações sexuais havia mais de um ano.

Os coreanos trabalham em média 1.910 horas por ano, uma das cifras mais elevadas entre os países da OCDE, cuja média está estabelecida em 1.716, contra 1.490 para a França e 1.349 para a Alemanha. Esses mantiveram conquistas socialdemocratas ao contrário da série de mortes por esforço excessivo na Coreia do Sul.

Com uma população de 52 milhões pessoas (dobro da Coreia do Norte), seu presidente conservador, eleito por pouco em 2022, planeja estender a semana de trabalho para 69 horas, contra 52 horas semanais no atual momento. “Os empregados deveriam trabalhar 120 horas por semana para satisfazer a demanda”, defendeu durante a campanha presidencial. Correspondem a 20 horas por dia em uma semana de seis dias úteis!

A maioria das empresas paga apenas um determinado extra por horas suplementares independentemente do tempo de trabalho de fato realizado. Mas 60% dos assalariados coreanos não utilizam todos os seus dias de folga por medo de perder o emprego. Entre as reivindicações do movimento de trabalhadores coreano está: “Deixem-nos dormir!”.

Até os herdeiros dos conglomerados se valem de seu status social para exigir seus funcionários se ajoelharem para apresentar-lhes desculpas. E os demite à toa.

Nenhuma manifestação trabalhista pode ocupar as faixas de pedestre de modo a não interromper o fluxo. Um dispositivo policial mede os decibéis produzidos pela sonorização dos oradores, tolerados apenas até o volume de 95 decibéis, como fosse um secador de cabelos. Os contraventores se expõem a penas de prisão de até seis meses.

Na Coreia, mais da metade dos trabalhadores é composta dos chamados “irregulares”. A categoria abrange os precários, os “microempreendedores”, os sem-documentos ou ainda as pessoas submetidas a dispositivos de subcontratação em cascata, todos privados dos direitos e da proteção social, concedidos só pelos grandes grupos.

Houve uma repressão violenta aos grevistas em protesto contra um corte de salário de 30% durante a pandemia. Para o presidente, “os grevistas são tão perigosos quanto as ogivas nucleares norte-coreanas”.

Contra o direito de greve, há a proibição de “entraves aos negócios”, passíveis de prisão. Não pode fazer greve contra outro empregador senão seu próprio. O mecanismo de terceirização protege os grandes grupos contra qualquer interrupção do trabalho. Desse modo, ser um dirigente sindical implica quase sempre em ir para a cadeia.

Na Coreia do Sul, a idade oficial da aposentadoria é 60 anos. Contudo, é preciso esperar até os 65 anos para receber a pensão paga pelo Estado. Sem descontos, equivale a cerca de 30% do último salário recebido. Quem a recebe empobrece. A quase totalidade dos trabalhadores coreanos tem, depois da idade legal de aposentadoria, de buscar empregos precários e mal pagos, conhecidos como “trabalho de velho”.

O Estado autorizou as empresas a reduzir as remunerações dos trabalhadores acima de 56 anos, sob o pretexto de favorecer o emprego dos jovens. Os últimos anos de trabalho, contados para o cálculo da aposentadoria, são caracterizados por uma queda dos salários em cerca de um terço. Por isso, a Coreia do Sul exibe uma elevada taxa de suicídio (61,3 em 100 mil) entre os aposentados com mais de 80 anos.

O país despende o equivalente a US$ 1 bilhão por ano para o funcionamento da base militar norte-americana com mais de 28 mil soldados. Seu privilegiado gueto abriga 43 mil habitantes, contando as famílias dos soldados e seus empregados coreanos.  A existência da base estratégica (e confortável) justifica os Estados Unidos não permitir o fim do conflito com a Coreia do Norte, temendo a paz os obrigar a “fazer as malas”.

No fim de 1945, a esquerda coreana lutava por um Estado soberano e democrático. A capitulação do Japão, ocupante do país desde 1910, a deixou em uma posição de força. O processo de industrialização, empreendido na Coreia inicialmente pelos japoneses, conduziu ao surgimento de uma classe operária sem dissociar questões sociais e anti-imperialistas. Os esforços dos ocupantes para associar qualquer agitação operária a um complô comunista, contraditoriamente, fizeram crescer o prestígio dos comunistas e contribuíram para dar origem a um movimento de trabalhadores bastante politizado.

Depois dos Estados Unidos e a URSS dividirem a península entre eles, em 1948, os EUA se permitiram uma reação brutal ao sul do paralelo 38. O Governo Militar do Exército dos Estados Unidos, instalado na Coreia do Sul, passou a controlar o país, dissolveu as organizações populares, reprimiu as greves e apelou ao anticomunismo como o princípio central de legitimação ideológica do Estado sul-coreano.

O termo Ppalgaengi, literalmente “vermelhinho”, permanece como insulto para designar toda pessoa crítica da ordem socioeconômica em vigor na Coreia do Sul. Após a virada neoliberal, imposta ao país a partir da crise asiática de 1997, basta defender qualquer modalidade de Estado de bem-estar social, sem depender inteiramente do livre-mercado, para merecer a etiqueta e até ser conduzido à prisão!

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).


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