Por TALES A.M. AB’SÁBER*
Apesar da complexidade conceitual, poética, política e existencial em que a disciplina psicanalítica implicou, Freud sempre se referiu a ela como se tratando fundamentalmente de uma ciência
“Esse lento desmoronar, que não alterava os traços fisionômicos do todo, é interrompido pela aurora que, num clarão, descobre de uma só vez a estrutura do novo mundo” (Hegel, A fenomenologia do espírito).
“também a ciência repousa sobre uma crença, não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’” (Nietzsche, A gaia ciência).
Algo especial que caracteriza o modo de formular o pensamento e o sentido no universo da psicanálise é o fato, bastante estranho à filosofia, de que a disciplina freudiana se fundamentou e sempre evoluiu através daquilo que seu criador chamou de um método. Ponto muito privilegiado no princípio e na organização da experiência da psicanálise, o método psicanalítico é ele próprio um desvio, marcado intimamente com as características de uma modalidade possível de psicologia científica, parte do campo mais amplo epistemológico, e também social, do método científico, este verdadeiro titã da modernidade.
De fato, apesar da complexidade conceitual, poética, política e existencial em que a disciplina psicanalítica implicou, Freud sempre se referiu a ela, desde o início até o final de seu percurso intelectual e humano, como se tratando fundamentalmente de uma ciência. E, sendo assim, sendo a psicanálise uma ciência, como o é na concepção freudiana, sua metafísica de fundo, suas razões de fundamento, implicam certos traços necessários de valores e de sentido, que antecedem e que permitem a emergência de todo campo de observação e de experiência.
São, precisamente, os fundamentos de um modo particular de conceber e de produzir mundos humanos: a concepção de um plano de realidade aberto, infinito, e incógnito ao mundo imaginário humano. Também a razão universal que, trabalhada, potencialmente pode se articular em um ponto à razão deste real. A concepção de um modo de acessar uma articulação deste real, um empirismo fundamental que funda e que desenvolve a hipótese teórica. Mais a definição de seu objeto e dos seus contornos teóricos. A dimensão experimental que articula e move o dado empírico e a negatividade própria do avanço teórico, onde nada é provado para sempre.
Com interesses filosóficos na juventude, tendo estudado por semestres seguidos com o filósofo e epistemólogo Franz Brentano na Universidade de Viena ainda quando aluno de medicina, além de sua erudição literária e humanística pessoal, bem fundada na tradição clássica do esclarecimento alemão, Freud não poderia deixar de anotar o impacto maior que suas descobertas sobre o psiquismo e a produção do sentido humano – cujos princípios e objeto tinham origem em uma espécie de campo de provas científico, a clínica psicanalítica – de fato faziam no modo tradicional de investigação filosófica, e seus próprios resultados, que uniam de modo livre e autofundado especulação e conceituação conforme os ditames da razão.
Muito cedo, na construção de sua disciplina, com espanto e um bom traço de ironia, mas de forma precisa, Freud de fato sublinhou o problema: “Neste ponto talvez sejamos tomados pela suspeita de que a interpretação dos sonhos seja capaz de nos dar explicações sobre a estrutura de nosso aparelho psíquico que até agora esperamos em vão da filosofia.”[i]
E em seguida, na mesma passagem de A interpretação dos sonhos, para tornar esta posição – crítica, epistemológica ou ideológica? – ainda mais delicada, e instável, Freud completa: “não seguiremos esta pista”. A mínima frase de alto impacto crítico e ideológico, enunciada de modo entrevisto sob o signo de uma suspeita, deveria ser mantida assim, no limite sintético e positivo de sua pura afirmação. Pois, de fato, era o trabalho científico interno da psicanálise tudo o que então interessava ao primeiro psicanalista, e era este trabalho, que seguia um próprio método, e seu resultado, que significava a prova real, baseada em um modo de agenciar a ciência para o entendimento da vida subjetiva, um novo destino da ciência, que poria algo dos valores de sentido próprios à filosofia em verdadeira suspensão.
A estocada negativa em relação ao universo da filosofia, da qual, segundo Freud, “esperamos em vão” algo a respeito da “estrutura” do que ele então chamou de “nosso aparelho psíquico”, é bastante clara aqui. Ela significa a esperança em uma pesquisa em busca de um grau de segurança, um grau de realização e tangenciamento do real sobre a vida simbólica humana, que apenas uma construção de saber fundada em algum grau de compromisso com a ciência poderia chegar a produzir, bem como permitir evoluir, conforme a negatividade do método científico. Exatamente esta condição seria a da produtividade simbólica própria da psicanálise.
Existem muitos comentários sobre a guinada implicada e radical do jovem Sigmund Freud do mundo da filosofia de sua juventude, seu interesse pelo direito e pela política, para o universo emergente da ciência de sua época, já comprometido com a técnica e a arte prática da clínica, por sua vez já endereçada ao mercado próprio da medicina em um grande centro urbano como era Viena em meados do século XIX[ii].
De fato, como se sabe, o jovem intelectual, judeu vienense, racionalista, laico e emancipado, desistiu de estudar direito no último instante – sabidamente sob a influencia do pequeno ensaio “A natureza”, atribuído a Goethe – e ainda se desiludiu com os limites do campo político progressista da juventude social democrata vienense, do qual participara, assim que percebeu como a razão pública universal exercitada no período não implicava de modo profundo a crítica moderna ao antissemitismo.
Tal limite prático, subjetivo, da política de seu tempo e lugar revelava uma verdadeira falha da razão pública, vitória da distorção imaginária das coisas humanas sobre os valores racionais universais. Este limite do liberalismo vienense que o implicava, a presença forte da ideologia do antissemitismo em seu tempo, configurava um problema político de crise da razão que poderia, mais tarde, ser pensado com a sua própria psicanálise. Deste modo, para muitos, a guinada para a ciência de Freud significou uma busca segura de intervenção e produção de sentido, em um campo público que articulava realidades sociais e políticas de modo irracional, conforme a razão do desejo – para evocarmos uma noção sua posterior, que de fato teria imensa repercussão na cultura ocidental.
Como ele escreveu a respeito, a voz da razão, entenda-se, submetida ao império da ciência, é tênue e frágil, mas ao longo do tempo, por sua própria força de real, ela deve chegar a se fazer ouvir.
Deste ponto de vista, entre epistemológico e ideológico, é também um grande ponto político, de política simbólica, Freud situar estrategicamente o campo de pesquisas da psicanálise na região revolucionária do saber e das práticas sociais da superação histórica do valor da filosofia na modernidade pela emergência efetiva da ciência e da técnica na vida social, acentuada a partir dos séculos XVIII e XIX.
Como se sabe, Walter Benjamin tinha na percepção desta superação materialista interna e inexorável do campo da cultura um dos centros do seu entendimento da cultura moderna. Nesta nova ordem espaços simbólicos de subjetivação eram rapidamente liquidados pelo andamento acelerado da técnica, derivada da pratica cientifica, bem como do avanço dos meios de produção e da organização da vida, do trabalho e do mercado.
De modo articulado a este ponto ele formulou o seu onirismo social e crítico, também ele influenciado pela psicanálise como espécie de imagem dialética, onde um tempo sonha as suas formas e caminha, ao se deparar com as suas ruínas, necessariamente, para o seu despertar histórico – em uma esperança tardia de transformação ampla típica do universo hegeliano-marxista: “Balzac foi o primeiro a falar das ruínas da burguesia. Mas só o surrealismo liberou-as à contemplação. O desenvolvimento das forças produtivas deixou em pedaços os símbolos dos desejos do século anterior, antes mesmo que desmoronassem os monumentos que os representavam. No século XIX, tal desenvolvimento emancipou as formas configuradoras da arte, assim como no século XVI as ciências se livraram da filosofia. (…) A avaliação dos elementos oníricos à hora do despertar é um caso modelar de raciocínio dialético. Por isso é que o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época não apenas sonha a seguinte, mas sonhando se encaminha para o seu despertar. Carrega em si o seu próprio fim e – como Hegel já o reconheceu – desenvolve-o com astúcia. Nas comoções da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem”.[iii]
De fato este foi um entendimento que estava por tudo no campo da cultura crítica alemã moderna, a da verdadeira superação histórica do valor social da filosofia, e, com outros argumentos, também da arte, diante da aceleração cada vez maior do tempo da técnica, da produtividade e da gestão econômica da vida, bem como da gradual, mas inexorável, tomada da cultura pelas entidades de sentido que se expressavam cada vez mais pela forma mercadoria, e seu próprio pacto interno de ciência, técnica e produtividade.
Esta é uma percepção clássica do pensamento alemão forjado na modernidade, que irrompe originalmente com Marx. Ele guarda em si, e projeta socialmente, as contradições da emergência da praticidade técnica e econômica já plenamente presentes no campo do iluminismo francês do século XVIII, frente à tentativa de sua integração no espaço tradicional da filosofia, que pôs a verdade científica do mundo em estado de catálogo no projeto da Encyclopédie[iv]. Assim, a filosofia se pôs a contemplar sua superação histórica pela explosão ilimitada do universo da ciência e da técnica.
Este entendimento é uma constante do pensamento que tinha alguma atenção materialista ao processo da vida social do mundo moderno, agora destruída e reconstruída constantemente. De fato, Benjamin apontara não apenas para uma dimensão hermenêutica das coisas, mas para o fato de que, já no século XVI, e de modo verdadeiramente revolucionário a partir do XVIII, a ciência ocupava e liquidava os espaços sociais da filosofia, por se expressar fortemente como produtividade.
Como, em um exemplo vigoroso, cinquenta anos antes da emergência da psicanálise – e sua crítica rasante fundada na ideologia da onipotência da ciência “ao que esperamos em vão da filosofia” – já podíamos ler em um fragmento lúcido de Heine: “Os mais altos rebentos do espírito alemão: filosofia e canção – O tempo acabou, com ele a calma idílica, a Alemanha foi impelida ao movimento – o pensamento não é mais desinteressado, em seu mundo abstrato despenca a crua circunstância – A locomotiva das estradas de ferro estremece nosso sentimento, e assim nenhuma canção consegue alvorecer; a fumaça escorraça o pássaro canoro e o fedor dos lampiões a gás empesteia a perfumosa noite enluarada”.[v]
O fragmento espantoso flagra no ar da história o momento exato em que o avanço da técnica e da vida gerida para a velocidade e o interesse realmente dissolve as antigas formas de conceber e simbolizar a existência. E o alvo do poeta crítico é o mesmo de Walter Benjamin cem anos depois: o mundo interessado da técnica e da ciência, a vida desconstruída reconstruída sob a nova realidade titânica, industrial e de mercado, o avanço da produtividade, faz suspender o sentido tradicional do que eram filosofia e arte. O mundo moderno, centrado na produtividade e na cultura cada vez mais ocupada pela vida das coisas, com seu novo estatuto fetichista, prescinde na raiz de qualquer necessidade de produção aurática, conclui, por fim, o filósofo do século XX.
As ciências se livraram da filosofia. São as palavras duras de Benjamin. Os filósofos alemães políticos de extração hegeliana e marxista, também eles, não por acaso, bastante impactados pela psicanálise de Freud, não necessitavam tergiversar, recusar ou negar a crise do lugar da filosofia no mundo, no processo extremo da modernidade. Eles a enunciavam abertamente, de modo autoirônico e quase insolente, como espécie de trunfo crítico e dialético do pensamento diante do andamento da sua própria superação pelo processo da técnica e pela totalização da vida administrada das massas, no mundo do mercado e sua nova indústria organizadora da cultura. Um mundo efetivo em que, nos termos muito precisos de Heine, “o pensamento não é mais desinteressado, em seu mundo abstrato despenca a crua circunstância”.
Todo processo espiritual é histórico e está situado historicamente, e não é casual que no ápice do tempo da ideologia da ciência e do progresso, com seu mundo realizado em suas plenas potencias e catástrofes da sociedade de classes das novas metrópoles do capitalismo industrial do século XIX, Sigmund Freud vá realizar um novo pacto entre especulação, reflexão conceitual e ciência, para dar um novo desenho possível do sujeito humano.
Freud estava colocado mesmo sobre a grande dobra histórica de tal tendência muito mais ampla, a da interpenetração e do jogo mútuo de reconhecimentos e ocultamentos entre filosofia e ciência, a partir de então irrecusável. Nesta gradual superação própria dos tempos modernos, um campo praticamente leva todos os valores sociais, enquanto o outro vai se tornar cada vez mais esfera de autonomia e especialização, quase assemelhado à esfera autônoma da arte, campo relativamente bem isolado, e, para o desespero da tradição crítica marxista, efetivamente irrelevante do ponto de vista das práticas sociais e de seu domínio. No universo moderno da vida prática da existência humana é a ciência quem impera completamente.
Theodor Adorno, seguindo a mesma trilha de crise histórica, percebeu precisamente, por estar em contato com a versão social americana da disciplina, o fato de que a psicanálise se apropriava, pelo modo próprio de fazer alusão de fundamento a algum grau de ciência e técnica, da crise mais ampla e universal da vida da filosofia.
Para ele, também era perfeitamente possível ver no destino público menor, e na hipostasiação antidialética que os psicanalistas passaram a fazer de seu saber, o próprio momento extremo da crise da filosofia em seu tempo: “O recalcamento da filosofia pela ciência levou, como se sabe, a uma separação dos dois elementos, cuja unidade, segundo Hegel, constitui a vida da filosofia: a reflexão e a especulação. Às determinações reflexivas deixa-se com desencanto o reino da verdade e a especulação é aí tolerada de má vontade e apenas para efeito de formulação de hipóteses que se elocubram nas horas vagas e devem ser confirmadas o quanto antes. (…) Não satisfeita com isso, entretanto, a própria empresa da ciência incorpora a especulação. Entre as funções públicas da psicanálise esta não é a última”.[vi]
A psicanálise era também um modo da ciência enquadrar, em uma esfera delimitada de objeto e método o potencial perdido e anacrônico da fantasia teórica filosófica, do impulso a especulação e sua esperança de liberdade.
O psicanalista Wilfred Bion dizia que a psicanálise foi uma criação de Freud que necessitava ser pensada. Ela era a resposta necessária a um conjunto de problemas reais e concretos no nível simbólico da capacidade de pensar de sua época. Como dizia Hegel, ela não poderia chegar antes, nem depois.
De facto o impacto da revelação científica sobre a vida da economia industrial e liberal dos séculos XVIII e XIX, e sobre as estruturas simbólicas em rápida superação do tipo ancien régime, forçava todo um reposicionamento sobre o lugar e o sentido do mundo das ideias, que necessitavam negociar com a eficácia simbólica e social das novas práticas, ligadas ao novo império da técnica. Muitos pensadores se viram obrigados a ressituar a autonomia esplêndida e altamente ideal do lugar da filosofia no mundo, em relação ao condão mágico da emergência social livre das ciências, que redesenhava amplamente a sua própria realidade.
Se toda uma filosofia derivada do Iluminismo se pensou de fato como articulada ao momento político da Revolução Francesa, se muitos filósofos eram, e cada um ao seu modo, filósofos da revolução, internamente aos sistemas de pensamento era a ideia limite de ciência que exigia sua presença como nova garantia de verdade ao real filosófico. Os termos de Hegel para a sua definição de filosofia, “o conhecimento real do que em verdade é”, são idênticos para a metafísica da ciência, nos quais estão simplesmente duplicados.
O pacto entre ciência e técnica, entre pesquisa simbólica e produtividade, alavancou um processo histórico em que ideias materializadas transformaram o mundo efetivamente e mais rápido, em meros cem anos, do que jamais as potencias críticas racionais e metafísicas da filosofia puderam realizar, ao menos em um período de tempo histórico encarnado pelo corpo vivo do filósofo. Embora Scheling e Gentz tenham visto na revolução francesa algo como “o primeiro triunfo prático da filosofia”, “como o fato central do tempo”, de fato o andamento revolucionário das ideias estava condicionado à ascensão do novo dinheiro, determinado pela situação da nova classe industriosa já dependente da constante expansão da ciência sob a forma da técnica.
Marx iria demonstrar que a dinâmica de acumulação de capital, a força destruidora criadora do mundo, era simplesmente internamente dependente de ciência. Talvez apenas Descartes e Bacon, articulados radicalmente ao próprio movimento geral da modernidade nas suas raízes, como filósofos em alguma medida espelhos do tempo, tenham tido algo de suas ideias sobre o humano efetivadas pela nova era de eficácia simbólica concreta da ciência, e da nova classe dos produtores racionais do novo mundo. Estes filósofos também eram concretos pensadores da ciência. Os demais modernos já eram filósofos da história, e portanto, de modo irrecusável precisavam situar e situarem-se diante das eficácias sociais concretas, da hegemonia gradual tendente à totalização da gestão da vida da ciência no mundo.
É assim que, Hegel, por exemplo, precisa inscrever a ideia da ciência – evocada de modo incrivelmente insuficientemente questionada, porque naquela passagem histórica parecia não haver nada a questionar às ciências – em seu pensamento que tenta fundir o racional e o existente – o que pode representar uma derivação conceitual da razão que desce ao existente do real e em um segundo momento o eleva ao efetivo da técnica, própria da ciência?
Já operando uma filosofia viva da história, a ciência é talvez contrabandeada de modo eficaz, sem solução de continuidade, como contraprova e um duplo racional, absolutamente necessária, para o interior do seu imenso sistema de metafísica do sujeito em devir e transformação: “A figura verdadeira na qual a verdade existe somente pode ser o seu sistema científico. Trabalhar no sentido de que a filosofia se aproxime da forma da ciência – e da meta na qual ela possa deixar seu nome de amor do saber e ser saber efetivo – eis o propósito que me atribuí. A necessidade interior de que o saber seja ciência reside na sua natureza e o esclarecimento satisfatório sobre este ponto está unicamente na exposição da filosofia mesma”.[vii] “Da minha parte coloco no automovimento do conceito a própria razão de existir da ciência”.[viii]
E ainda mais: “Penso, além disso, que tudo que há de excelente na filosofia de nosso tempo descansa seu próprio valor na cientificidade, e mesmo que outros pensem de outra maneira, na realidade ela só pode valer em função da cientificidade. Posso assim esperar que a presente tentativa de reivindicar a ciência para o conceito e de apresenta-la nesse elemento que é seu elemento próprio saiba abrir caminho por força da verdade interna da coisa”.[ix]
Não há dúvida que a ciência aqui era a medida neutra e positiva, externa, mas que necessitava ser interiorizada, para a sustentação e legitimação, entre dentro e fora de si própria, da própria vida da filosofia. Este duplo garantido deveria implicar o impacto concreto e histórico da tomada do mundo pela ciência, pelo menos desde a duplicação das revelações matemáticas newtonianas sobre o mundo da técnica e da produtividade, que revolucionavam o século em todos os termos. Naquele momento ciência era a materialidade da história.
Hegel, de bom grado, concebendo sua filosofia como uma filosofia da efetividade e do real, e do movimento do espírito rumo ao seu desenvolvimento absoluto, que é incorporação do seu próprio devir, não via hiato na incorporação quase imediata da ideia de ciência ao trabalho intimo da autosustentação e do autodesdobramento do conceito próprio da filosofia. Naquele tempo a filosofia parecia ainda invocar a medida comum da origem mútua, como formas autossustentadas da razão, de filosofia e de ciência. O braço reflexivo experimental da razão podia se unir novamente ao seu campo especulativo e simbólico, metafísico, pois, de fato, em algum lugar desejado, e como na origem, eles eram um único impulso à expansão real do espírito.
Assim a razão de ser da ciência é o movimento do conceito, a ciência ela mesma era figurada como expansão integral da filosofia, enquanto, deve-se reivindicar a ciência para o conceito, o que significa que a filosofia deve experimentar-se como uma verdadeira ciência. Até mesmo a concepção mais radical negativa de um espírito não fixado em suas formas é escalonada como processo necessário, capaz de articular-se como ciência, e no coração da mediação transformadora a ideia de ciência prossegue presente como ponto de fuga ordenador:
A presente exposição tem por objeto tão-somente o saber como fenômeno. Sendo assim, ela não se mostra ainda como a Ciência livre, movendo-se na sua forma original mas pode ser considerada, desde esse ponto de vista, como o caminho da consciência natural que impele o saber verdadeiro. Ou ainda como o caminho da alma que percorre a sucessão das suas figuras como estações que lhe são prefixadas pela sua natureza, a fim de que possa manifestar-se como Espírito e, por meio da experiência total de si mesma, alcançar o conhecimento do que ela é em si mesma.[x]
E, para completar a identidade do movimento da própria filosofia e o seu resultado, resultado como ciência: “A sucessão das suas figuras que a consciência percorre nesse caminho é a história pormenorizada da formação da consciência mesma para a Ciência.”
A história interna da formação do sujeito do saber é a ciência da formação da ciência. Hegel também redesenha os fundamentos da epistemologia de Kant, que havia situado, a partir das categorias e faculdades da razão, o campo do cognoscível e ordenado as categorias gerais próprias de uma ciência, fundando a epistemologia, e colocando definitivamente a filosofia frente à frente com a realidade da ciência. E ao situar o objeto e os limites das ciências e seu plano da investigação do passível de ser conhecido, a filosofia se preparava para ser, em alguma medida, cada vez mais sugada para o interior da ideia de ciência.
E, como já foi dito, esta duplicidade em que a ciência é a metáfora, ainda amistosa, da legitimidade real da filosofia era uma grande constante do tempo. O eu da filosofia punha para si mesmo o não eu da ciência como movimento de si mesma. Também Fichte, homem muito presente na cultura política do seu tempo, escreveria, em 1794, “Sobre o conceito da doutrina da ciência ou da assim chamada filosofia”. Novamente, na especulação limite sobre os fundamentos e a natureza do eu puro a medida racional do conceito se igualava ao andamento científico do saber, modo moderno de dizer a verdade da razão. Buscava-se a elevação da filosofia ao estatuto de ciência evidente:
Colocar cientificamente um conceito – e é claro que aqui não pode tratar-se de nenhuma outra, mas da mais alta de todas as colocações – é como eu chamo, quando se indica seu lugar no sistema das ciências humanas em geral, isto é, quando se mostra qual é o conceito que determina sua posição e qual outro tem a sua determinada por ele. Mas acontece que o conceito da doutrina-da-ciência pode tão pouco ter um lugar no sistema de todas as ciências quanto o conceito do saber em geral: pelo contrário, ele próprio é o lugar de todos os conceitos científicos e indica a estes suas posições em si mesmo e por si mesmo.[xi]
Para Fichte, pensar o sujeito fundante do sentido em si mesmo e seu movimento expansivo sobre o mundo, também o sujeito da autonomia e da emancipação histórica, a tarefa da sua filosofia, é pensar cientificamente o fundamento do que põe o próprio sistema geral das ciências. O idealismo alemão – que deixou uma série de rastros, não identificados, para a própria psicanálise – não era apenas a filosofia da revolução, como Marcuse o pensou, ele era, ainda mais fortemente e a cada passo do pensamento a filosofia – duplicada pela ideia de ciência – da própria ciência. Em todos os pontos do projeto, da tarefa e das mediações conceituais a mediação pela ideia de ciência, duplo real moderno da razão, está presente no universo daquele discurso.
A seguinte passagem, se levada a sério, deixaria Freud em apuros a respeito do seu modo de questionar a cisão de filosofia e ciência, própria da sua psicologia do inconsciente, em nítida desvantagem para o campo em déficit de ciência que seria o da filosofia. Talvez a síntese epistemológica realizada pelos pensadores que invertem a razão entre filosofia ciência, como Freud, revelasse os seus fundamentos instáveis.
Evidentemente o racionalismo idealista mediado em todos os pontos pela ideia da ciência, e orientado mesmo para ela, não via as coisas assim: “A filosofia é uma ciência – nisto todas as descrições da filosofia estão de acordo, assim como estão divididas na determinação do objeto dessa ciência. E se esse desacordo proviesse de que o próprio conceito de ciência, que conferem por unanimidade à filosofia não tivesse sido totalmente desenvolvido? E se a determinação deste único atributo, admitido por todos, fosse plenamente suficiente para determinar o conceito da própria filosofia?”.[xii]
Talvez a psicanálise, que segundo Freud era uma ciência, não tenha tido o seu conceito determinado de modo completo, ao menos naquele modo fichteano da noção, do atributo central próprio do sistema de proposições verdadeiras que configuram uma ciência.
É certo que existiram condições amplas de fundamento epistemológico que antecederam e prepararam a emergência da experiência psicanalítica. A psicanálise é um recorte de razão e de fenômenos dentro de um campo, que por sua vez é ele próprio um recorte amplo dentro de outro campo, ainda mais amplo. O mundo do qual surgiu a disciplina de Freud foi o do impacto original das conquistas aceleradas da física, da química e da biologia que emergiam no século XIX, com a força da realização de uma nova civilização sobre a ideia e o conceito do corpo humano, próprio da medicina moderna que se fundava.
O braço epistemológico das naturwissenchaften pós-kantianas estava revolucionando o século de modo concreto, mais ou menos como ocorria com a própria vida social circundante. Freud é um herdeiro direto, em um primeiro tempo de suas pesquisas reais, mas também do ponto de vista epistemológico dos princípios de sua psicanálise, do famoso pacto de unificação científico estabelecido por Hermann Von Helmholtz, e Ernst Brücke – o mesmo professor que recebeu Freud em seu laboratório de fisiologia quando o jovem médico se formou, e, em um lance maior da fortuna, mais tarde o indicou para estudar com Charcot, em Paris – que definiu o campo da ciência médica biológica de seu tempo estabelecendo que tudo o que se representa e existe no corpo humano deve ser explicado e pensado através de forças físicas químicas comuns, simplesmente presentes na natureza; e também, Freud era herdeiro do espírito agnóstico do terceiro construtor do campo materialista e racionalista médico do tempo, Emil Du Bois-Reymond, e seu ignoramos e ignoraremos os mistérios da transformação da substância da matéria em força, da origem da vida e da origem da consciência.[xiii]
Um agnosticismo fundamental que definia os limites e a interioridade do campo da ciência biológica, que no caso de Freud se completou como uma absoluta profissão de fé ateísta. Estas referências de princípio faziam parte do quadro de possibilidades do surgimento da psicanálise, e correspondiam à expansão social e à diferenciação constante da esfera da ciência no mundo, no caso, no processo de configuração da medicina.
Naquele momento histórico a ciência e seu circuito de objetos, práticas e lógicas já era forte o suficiente para prescindir de qualquer animismo transcendental, aprofundando a ruptura com o universo religioso, e assim definia seus circuitos fechados reais de matéria e de razão apreensível, em plena evolução do quadro de limites kantiano, como o reino da sua realidade, no qual tudo poderia ser conhecido, inclusive, a partir da psicanálise, os fundamentos da produção de sentido psíquico humana.
Seria exatamente este o recorte que Freud faria no campo dos fenômenos apreensíveis pela ordem universal da ciência realizada de seu tempo.
Mas, para além deste quadro geral, um principal organizador de método de fundo, o fundamento da própria clínica psicanalítica e sua forma particular de se aproximar e fundar seu objeto no humano, a natureza do setting e do método de atenção ao sujeito psíquico, estão mesmo no ponto zero de todo desenvolvimento fenomenal e teórico do que chegaria a ser a psicanálise. Mais do que as categorias de valores amplos da medicina materialista, não animista, de seu tempo, a criação da coisa mesma do lugar em que a psicanálise se revelaria a si própria, e desde aí se formaria, a criação do setting-método, da posição e do lugar do analista, é o ato histórico e de pensamento fundante de toda psicanálise real.
E este ponto não pode ser atribuído imediatamente a Freud. Ele se deu anteriormente ao interesse científico do jovem Freud pelo campo da histeria, figura do humano mais tarde agrupada por ele na categoria mais ampla das “neropsicoses de defesa”, desde o interesse que emergiu a partir de sua viagem a Paris, em 1885, para estudos com Charcot. O médico vienense de grande destaque, fundamentalmente um clínico – clínico da família real austríaca, médico de Johannes Brahms, médico dos próprios colegas médicos da universidade – Josef Breuer, foi quem de fato esteve lá pela primeira vez, como muito mais tarde Giles Deleuze se referiria ao psicanalista e pediatra Donald Winnicott.
Não havia nenhuma dúvida a respeito do comprometimento real de Josef Breuer com o campo da mais sólida experiência médica científica do tempo, da pesquisa biológica helmholtziana sobre o corpo humano, quando em 1880 ele se dedicou por dezenas de sessões e por cerca de dois anos ao cuidado e ao reconhecimento da experiência humana da histeria, figura patológica e também uma formação própria do campo cultural do século. Aos 38 anos, quando realizou o tratamento de Bertha Pappenheim, que se tornou universalmente conhecida como Anna O. nos Estudos sobre a histeria – escritos em conjunto com Freud e publicados apenas em 1895.
Josef Breuer já havia realizado uma série importantes de pesquisas de fisiologia médica clássica. Ele havia estabelecido a natureza reflexa e o papel do nervo vago no processo da respiração, no que ficou conhecido como o mecanismo fisiológico de Hering-Breuer, e, também, havia descoberto a função do aparelho vestibular do sistema auditivo no processo de orientação e de equilíbrio do corpo. Tratava-se de um verdadeiro médico pesquisador da mais escorreita ciência de seu tempo, e, sobretudo, de um clínico socialmente reconhecido em um meio urbano culto e informado.
Pois seria este homem que observaria pela primeira vez os fenômenos de sentido, e a operação alternativa de funções e propriedades psíquicas que articulavam a totalidade da vida subjetiva, corpo e sintoma, na experiência opaca da histeria clássica do século XIX. Seria esta inclinação para o paciente, fundada sobre o modo de operar e ver da ciência médica de seu tempo, porém, visando ainda mais o paciente, inclinando-se para ele, que descortinaria aquilo que seria a primeira experiência humana e conceitual da psicanálise.
Nas palavras de Freud: “Breuer era médico, discípulo do clínico Oppolzer. Em sua juventude trabalhara na fisiologia da respiração sob a orientação de Ewald Hering, e posteriormente, nas escassas horas de lazer que lhe permitia uma vasta clínica médica, ocupou-se auspiciosamente com experimentos sobre a função do aparelho vestibular nos animais. Nada em sua educação poderia levar alguém a esperar que ele alcançasse a primeira compreensão interna decisiva do enigma, velho como os tempos, da neurose histérica e efetuasse uma contribuição de imperecível valor para o nosso conhecimento da mente humana”.[xiv]
Trabalhando clinicamente durante cerca de dois anos, acompanhando a vida cotidiana de sua paciente, Breuer pode observar em algum momento do processo clínico a transformação e a dissipação dos vários sintomas somáticos de Bertha, na medida em que ela evocava experiências passadas, que também pareciam estar ligadas a própria origem dos sintomas. Pela primeira vez linguagem e presença humana implicavam a alteração das relações de sentido entre as propriedades do psiquismo, memória, afeto e sintoma, e a própria realidade significante do corpo doente. Esta dinâmica da nova clínica deixava clara a pulsação de estados de consciência, em lugar da pura ideia da consciência em abstrato.
A partir desta constituição de sentido heterogênea apresentada na relação com o médico o humano não era mais o que era. O corpo humano se articulava ao campo dos sentidos e da experiência, e as propriedades psíquicas se articulavam, a partir da comunicação com o médico, o protoanalista, em níveis de distância e relações de sentido até então desconhecidas. A experiência da clínica psicanalítica que se inaugurava aí propunha um sistema de sentidos aberto, muito contraintuitivo e avesso em todos os pontos ao senso comum geral da consciência de superfície de si mesmo. Era necessária uma nova ordem de intuições e de presença fenomenal real, aquilo que Freud chamaria muito tempo depois de “grande dose de interesse pessoal, de libido médica”, para reorganizar o modelo do humano, que se refundava com parâmetros não descritos para o médico cientista diante dele próprio.
A relação clínica e seu agenciamento de sentido, no caso originário da psicanálise criado pelo médico e pela própria paciente em um trabalho comum – e esta é outra marca da origem da psicanálise sobre o todo da disciplina – estabelecia um ponto de vista sobre a experiência total da subjetividade humana, incluindo o corpo como ancoragem simbólica viva e em deslocamento de toda a coisa humana, revelando um quadro novo de problemas jamais pensado, tornado razão ou conhecimento. Nunca experiência passada, rememoração, afeto e sintoma presente estiveram em uma articulação real daquele modo, o modo da histérica diante do médico que a recebia, a ponto de dar início a um novo entendimento da condição ampla de produção de sentido no humano.
A partir da clínica, Breuer inaugurava o campo de investigação e as figuras de pensamento que vinte anos depois notabilizariam Freud, na medida do seu imenso gênio teórico, como o fundador da psicanálise. E Freud, em um momento avançado do desenvolvimento da própria psicanálise parece ter mesmo a intuição da prevalência da coisa clínica breueriana: “Nós psicanalistas, há muito tempo familiarizados com a ideia de dedicar centenas de sessões a um único paciente, não podemos formar uma concepção de quão novo um procedimento desses deve ter parecido a quarenta e cinco anos atrás. Deve ter exigido uma grande dose de interesse pessoal e, caso possamos permitir a expressão, de libido médica, e exigido, contudo, também um considerado grau de liberdade de pensamento e certeza de julgamento”.[xv]
Freud parece se aproximar aqui, com seus próprios conceitos, da percepção da singularidade humana, da epistemologia encarnada em uma biografia, da intuição fundamental particular e concreta, uma capacidade dada, que permitiu a Breuer se sustentar por centenas de horas clínicas em uma presença significante diante da experiência histérica.
Foi esta presença, tendente ao neutro, mas eticamente orientada, que permitiu a revelação bem como a transformação, nunca descritas, de sua paciente. Há uma verdadeira noese intuitiva, enquadrada pela ética e postura científica, mas de fato uma clínica amorosa, uma ética amorosa que atravessa e perfura a própria ética científica, que recorta primordialmente a possibilidade do analista viver algo junto de seu paciente, naquilo que mais tarde Freud nomearia como “o inconsciente”.
Um dos momentos técnicos, e portanto de algum fundamento teórico, mais importantes no desenvolvimento do entendimento da psicanálise de Freud, do ponto de vista da clínica, foi aquele em que ele introduziu o tempo no trabalho de transformação psíquica da psicanálise. Este momento foi relativamente tardio em relação aos fundamentos de origem da psicanálise freudiana, e seu inconsciente negativo, formado em conflito.
“É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida, para que a elabore, para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. (…) Na prática, essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova de paciência para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador para o paciente, e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão. Teoricamente pode-se compará-la com a ‘ab-reação’ dos montantes de afeto retidos pela repressão, sem a qual o tratamento hipnótico permanecia ineficaz”.[xvi]
Deste modo, o tempo do trabalho, segundo Freud, com sua determinação própria, também parece ter um andamento em que algo se objetiva, ele não pode ser evitado, e nem pode ser apressado. O analista tanto quanto o paciente devem se instalar neste tempo próprio das trocas das resistências inconscientes por um novo campo de sentido do si mesmo, e ele exige paciência por parte do médico e um suportar o penoso de uma tarefa, um trabalho, um trabalho do tempo, um trabalho que é tempo, por parte do paciente.
Foi assim que esta dimensão fundamental, que definitivamente completou o sentido da clínica psicanalítica, só foi plenamente nomeada por Freud em 1914. Mais de trinta anos após Breuer ter se deixado ficar, na presença tempo que fez efeito na experiência original da histeria.
E, na abertura do trabalho em que o tempo de elaboração das tensões instintuais, entre desejo regressivo e força de repressão, passa a ocupar o lugar privilegiado frente a ideia instantânea do poder da interpretação do inconsciente, prática cuja lógica é a de uma concretude simples de causa e efeito direto, como ocorre concretamente no mundo das coisas naturais, Freud se recorda, não por acaso, dos primeiríssimos tempos da psicanálise, e do método catártico de Josef Breuer, de 1880: “Não me parece desnecessário lembrar continuamente, àqueles que estudam a psicanálise, as profundas alterações que a técnica psicanalítica sofreu desde o início. Na primeira fase, a da catarse de Breuer, o foco era colocado sobre o momento da formação do sintoma, e havia o esforço persistente em fazer se reproduzirem os processos psíquicos daquela situação, para levá-los a uma descarga mediante a atividade consciente. Recordar e ab-reagir, com o auxílio do estado hipnótico, eram então as metas a serem alcançadas. Em seguida, depois da renúncia à hipnose, impôs-se a tarefa de descobrir, a partir dos pensamentos espontâneos do analisando, o que ele não conseguia recordar. A resistência seria contornada mediante o trabalho de interpretação e a comunicação dos seus resultados ao doente; mantinha-se o foco sobre as situações em que se tinham formado os sintomas e aquelas que se verificavam por trás do momento em que surgira a doença, a ab-reação caía para segundo plano, parecendo substituída pelo dispêndio de trabalho que o analisando tinha que fazer, na superação da crítica a seus pensamentos espontâneos a que era obrigado (em obediência à regra psicanalítica fundamental). Por fim se formou a técnica coerente de agora, na qual o médico renuncia a destacar um fator ou problema determinado e se contenta em estudar a superfície psíquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e torná-la consciente para o doente”.[xvii]
O processo do desenvolvimento da clínica, e do entendimento da vida dinâmica da formação das resistências e da transferência na presença do analista, evoluiu de uma espécie de tomada de posse e intervenção direta na matéria do passado, até a aceitação do processamento psíquico constante e aberto do paciente com o analista – e em um horizonte ainda mais avançado da história da experiência psicanalítica, pós Ferenczi, do próprio analista com o paciente. Há uma espécie cada vez maior de ganho de tolerância e da dimensão de uma temporalidade no processo psíquico da dupla analítica.
O que não cabe mais é a ansiedade de posse da formação do sintoma e da figuração imediata das posições em jogo na vida psíquica, como ocorria ainda em 1896, quando Freud dizia em sonho para sua paciente Irma “eu já lhe dei a solução, se você não melhora a culpa é sua”… Esta ansiedade de cura, este superego de intervenção por parte do analista é de fato, como o processo da evolução temporal do pensamento da clínica deixa claro, uma fantasia de posse e de controle do espaço psíquico do paciente.
A fantasia da posse de um campo que se objetiva, da vida subjetiva do outro, sob a forma da figuração teórica do inconsciente, a metapsicologia e suas múltiplas mediações, tendia a dar ao analista uma ideia de um embate presente, algo espacializado, das figuras e das instâncias psíquicas, enquanto o verdadeiro processo, por fim, derivado mesmo do que seriam as infinitas linhas de fuga dos sentidos reveladas na análise do sonho, implicava uma jornada temporal pela ordem significante de cada um, e não nenhum tipo de estrita solução causal para um presente destituído de experiência emocional.
Da psicanálise do controle e da tendência à espacialização dos objetos psicanalíticos, alcançava-se a psicanálise do tempo, da dinâmica e do processo. No lugar da indicação das forças estanques, a elaboração do próprio paciente, em conjunto com o analista, destas forças, dinâmicas e imagens de si.
Neste sentido, quando Freud reconhece a temporalidade radical da clínica de Breuer, “as centenas de horas dedicadas à paciente e o tão novo que foi este procedimento”, ele reconhece um ponto forte no qual a sua ciência não é feita apenas da capacidade de observar dinâmicas e traduzi-las em uma lógica objetivante da coisa do inconsciente.
A ciência, deste lugar real aberto, que é tempo, não é feita apenas da mediação teórica e de sua metafísica científica de fundo, segundo os termos de sua época. Ela é feita também do tempo aberto de uma espera, de uma oferta, de uma contemplação orientada eticamente pela ideia de ciência, mas que não se reduz a ela, de um valor de humanidade que aguarda e que se oferece ao deslocamento significante da doença, de uma presença que por estar presente já a transforma em alguma medida. Ele é feita do que um dia um crítico anotou a respeito de Shakespeare, da faculdade de experienciar. A psicanálise é feita também de todos os impulsos inconscientes, éticos estéticos, que estão contidos nesta inclinação, este clinamen, do analista para o tempo do encontro com o outro.
Durante muito tempo a epistemologia da psicanálise se fundou na capacidade de abstrair e objetivar, em terceira pessoa como dizia Georges Politzer[xviii], os objetos psicanalíticos, traduzíveis em uma metafórica que tinha correspondência com o nome dos fenômenos naturais traduzidos historicamente pela física teórica. Freud buscava divisar o invisível, o que não se representa sensorialmente, e com sua potência poética científica incomum configurar o nome do aparelho, nada mais nada menos do que dar a forma e a mediação linguageira, limite, para a coisa em si do inconsciente. De algum modo ele acreditava que, definindo e dominando a coisa mesma do psíquico no humano, se teria franqueado um acesso verdadeiro, e talvez o único eficaz, ao humano.
E é desde aa imagem científica da coisa mesma, construída a partir da dinâmica sensível da formação e da interpretação dos sonhos, que ele vai remeter sua crítica à impossibilidade da filosofia ir até lá: “Com isso revelamos uma concepção bem precisa da ‘essência’ da consciência; o tornar-se consciente é para nós um ato psíquico particular, distinto e independente do processo de composição ou de representação, e a consciência nos parece um órgão sensorial que percebe um conteúdo que existe em outro lugar. É possível demonstrar que a psicopatologia simplesmente não pode prescindir destas hipóteses básicas”.[xix]
“[As] ponderações acerca da estrutura do aparelho psíquico que faremos posteriormente, quando tivermos observado que por meio da interpretação dos sonhos podemos lançar um olhar ao seu interior como por uma janela”.[xx]
Estas duas passagens de A interpretação dos sonhos revelam os primeiros momentos da dobradura conceitual fundamental do livro: da dinâmica psicológica viva e do sentido do sonho analisado para o sonhador, o sentido trabalhado e íntegro da análise, para o modelo objetivo do inconsciente, entrevisto como através de uma janela, janela que é a própria dinâmica e prática da interpretação dos sonhos. Era isto que Freud entendia por ciência. Dos fenômenos psíquicos incomuns do sentido dos sonhos, construídos pelo estado de clínica e sua intuição real do que está em outro lugar no sujeito, originalmente estabelecido por Josef Breuer, Freud busca alcançar a natureza teórica e a estrutura mesma do aparelho, o sistema de linguagem objetivante do capítulo metapsicológico de número VII do livro, que por muito tempo ofuscou a muitos como sendo a coisa mesma da psicanálise.
Entrever como por uma janela a realidade física da produtividade do inconsciente, retirar dos fenômenos psíquicos, no caso as muitas facetas embaralhadas de consciência, alucinose, memória, infância e desejo no sonho, as leis da coisa mesma que os movem, a coisa de nome “aparelho psíquico”, é exatamente o desdobramento lógico metafísico próprio da ciência, deduzir as forças da natureza, a força universal da gravidade, por exemplo, do fenômeno que a expressa, a maçã que cai, por exemplo.
Forças, energia, dinâmica, instância, objeto, resistência, transferência, condensação, deslocamento, conversão, eram alguns dos termos de simbolização básica do que se entendeu ser a formação da psicanálise em um plano aproximado da metafísica das ciências naturais, em busca da sua realidade psíquica. Por trás destes termos, desta linguagem que tinha a fisionomia da ciência do tempo, era perfeitamente possível reconhecer, com algum trabalho genético, o mundo anterior a Freud, de Wundt, Fechner, Herbart, Helmholtz, Brücke, Du Bois-Reymond. E por trás deles, a explosão original de sentido moderno de Newton e Darwin.
Desejo, censura, defesa, negatividade moral, simbolização, identificação, narcisismo, Édipo, sexualidade infantil, elaboração, trabalho do luto, entre outros, eram, noutra direção, termos de “metaforização” que se aproximavam e tangenciavam dinâmicas culturais, símbolos um grau afastados dos termos mais puros e fundamentais que tentavam traduzir a experiência psíquica com a concretude dos nomes da das coisas naturais, e sua “física e química comum”.
Durante muito tempo a epistemologia da psicanálise se deu sobre a natureza histórica e os compromissos ideológicos desta nomeação, deste trabalho de notação da coisa psíquica, como dizia Bion, como se a disciplina se confundisse inteiramente com o seu desejo de objetificação, sempre caminhando firmemente sobre a corda bamba da hipostasia, que expressava também a fantasia de controle, se possível imediato, sem tempo, da presença do analista sobre a vida psíquica do paciente.
Este modo de encaminhar a vida simbólica da psicanálise e seu fundamento epistemológico revelou-se parcial. Ele cinde algo de vital a respeito do tempo ofertado e da inclinação do analista para o paciente, a “libido médica” que Freud se refere sobre Breuer, além de estar comprometido com a ideologia da eficácia e do domínio da natureza pela norma científica que a identifica de fato. Trata-se de um realismo objetivante. Ele porta a tradição profunda ocidental do esclarecimento como poder, ele visa conjurar as forças naturais ao ceder conscienciosamente ao seu reconhecimento. Todo problema se dá, para a natureza da ciência da psicanálise, quando as forças objetivas da natureza descrita são de fato um verdadeiro e encarnado outro, subjetivamente íntegro, mesmo que vivendo sob a experiência da neurose.
Toda uma tradição posterior de entendimento da psicanálise, pelos próprios psicanalistas, que vai de Ferenczi a Winnicott, de Searles a Masud Khan, de Marion Milner a Pierre Fedida, de Pontalis a Radmila Zygouris, do próprio Bion, tenta em algum momento e de algum modo restaurar esta dimensão do recebimento e reconhecimento da natureza primária do vínculo analítico, da verdadeira noese clínica da psicanálise.
Assim quando Freud percebe tardiamente, não o impulso de conhecimento, mas a dimensão contemplativa e o pacto amoroso de cuidado de Breuer, dimensões éticas estéticas que fundam o lugar da psicanálise, e o tornam possível, e de algum modo tornam possível a própria paciente, uma entidade que a crise daquela cultura e sua epistemologia científica médica hegemônica verdadeiramente barrava o reconhecimento, ele já está forte o suficiente para evocar um outro princípio de fundação da psicanálise, talvez para além da ciência e de seu modo próprio de nomear e posicionar as coisas, para o seu domínio.
“Foi em 1889 que a sorte pôs em suas mãos uma paciente fora do comum, uma jovem de inteligência maior que a normal, que caíra enferma de histeria grave enquanto cuidava de seu pai doente. Foi apenas cerca de quatorze anos mais tarde, em nossa publicação conjunta, Estudos sobre a histeria (1895) (…) que o mundo soube da natureza de seu tratamento deste célebre ‘primeiro caso’, do imenso cuidado e paciência com que ele aplicou a técnica, uma vez tendo-a descoberto, até a paciente se liberar de todos os sintomas incompreensíveis de sua moléstia, e que compreensão interna obteve ele, no decorrer do trabalho, dos mecanismos mentais da neurose”.[xxi]
Sabemos que Freud reagiu de forma forte ao fato de Breuer não tê-lo seguido na fundamentação central dos processos de contradição inconscientes na dimensão sexual do humano. Esta foi, de fato, a entidade teórica central e de fundo que organizou o sistema de notação, e tornou possível, no mínimo, a revelação da ordem fenomênica da sexualidade infantil, tão evidente na criança, mas até Freud vedada rigorosamente ao acesso cultural. O axioma do sexual permitiu o desenvolvimento da metapsicologia, dotando-a de um princípio de fundo que tinha um valor humano concreto, e permitiu a descrição de um sem número de problemas culturais de imenso interesse.
Freud ressentia-se diante do mestre clínico de sua juventude, Breuer, por ele não ter aceitado a fundamentação sexual dos processos que ele de fato descobriu através de uma ética clínica. Em termos teóricos epistemológicos, Freud criticava o fato de Breuer não dar dimensão real, na intensidade viva do sexual humano, e dimensão teórica produtiva, na natureza própria da realidade psíquica, do lugar do sexual em todo o sistema do inconsciente.
No entanto, em todas as passagens trazidas acima, da rememoração de Freud a respeito de Breuer de 1925, o valor do que importa na experiência psicanalítica parece estar indicado, mesmo que tenuemente, naquilo que está mais precisamente ao redor do estatuto teórico da coisa em si dos mecanismos psíquicos descobertos através da relação clínica.
Nestas passagens Freud fala explicitamente de qualidades do encontro como “imenso cuidado e paciência”, da “exigência de uma grande dose de interesse pessoal”, de algo que ele traduziu nos termos de sua própria teorização como uma grande quantidade de “libido médica”, além da ação psíquica misteriosa da “descoberta”. Ele fala de quão novo foi “o procedimento” de “dedicar centenas de sessões” a um único paciente e de um “considerado grau de liberdade de pensamento”. Ele fala nos interstícios de seu discurso maior sobre o inconsciente de qualidades ético-estéticas da clínica e da disposição, inclinação, do médico à experiência, no tempo, com sua paciente enigmática, humana.
Em outra passagem ele parece evocar o segredo pessoal, o elemento biográfico do conceito, tão próprio e tão íntimo da psicanálise, quando comenta que, sobre Breuer “nada em sua educação poderia levar alguém a esperar que ele alcançasse a primeira compreensão interna decisiva do enigma, velho como os tempos, da neurose histérica e efetuasse uma contribuição de imperecível valor para o nosso conhecimento da mente humana”. Em seguida ele responde a este ponto, indicando a amplitude de vista cultural, talvez até mesmo filosófica, do homem que, aparentemente de modo misterioso, teve a primeira compreensão interna, ontológica e conceitual, para o conhecimento psicanalítico do psiquismo ao modo clínico psicanalítico: “Ele, contudo, era um homem de dotes opulentos e universais e seus interesses se estendiam em muitas direções, muito além de suas atividades profissionais”.
Nestas passagens ele parece ter a intuição, talvez até mesmo enciumada, do momento humano misterioso de Breuer, que lhe permitiu contato com as dimensões ético-estéticas, poéticas, que lhe levaram a fundar o lugar da psicanálise, em si mesmo e em sua paciente.
O elemento humano que permitiu ao primeiro homem que viveu a experiência psicanalítica é um mistério, o da inscrição da biografia no conceito psicanalítico. Mas o modo que esta experiência se deu é bem conhecido. Ele implicou, de fato, cuidado, interesse pessoal, libido médica, dedicação e paciência com o tempo elaborativo do outro. Além de, aquilo que Freud pessoalmente prezava de modo particular, “um considerado grau de liberdade de pensamento e certeza de julgamento” que permitiu “a compreensão interna decisiva do enigma”, a capacidade de abstração do objeto da realidade psíquica, contra todo preconceito, comum ou científico, que recobria tal compreensão.
E, como se sabe, este foi o caminho principal seguido pelo próprio homem Freud.
Talvez, para compreendermos em nosso ponto o elemento de ciência mais próprio da clínica breueriana, e que por tantos anos nos parece ter escapado a Freud, seja possível evocar uma outra produção da filosofia, do mesmo universo da cultura alemã, que pensa o sentido da ciência de modo bastantes distinto do universo do esclarecimento universal próprio do idealismo alemão. Aquela “filosofia da revolução” do início do XIX era igualmente, em todas as dimensões, como fundo e como figura, uma “filosofia da ciência”, ou, reciprocamente, era a emergência histórica original, tão cara ao futuro social da coisa, da ideia no mundo de uma “ciência da filosofia”.
Precisamente contemporâneo da primeira psicanálise, descomprometido com o destino da aufklaerung universal, avesso a toda metafísica da verdade, pensando desde as próprias problemáticas dionisíacas em busca de uma transmutação geral dos valores, incompleta, certamente elitista, para o que viria a ser uma nova configuração da experiência da modernidade, Nietzsche produziu uma série de fragmentos, diatribes, marteladas, também sobre o valor, e os valores ocultos relativos, da ideia e da prática da ciência em seu tempo.
Suas ironias conceituais dissolventes, genealógicas, podiam cercar e mediar negativamente qualquer objeto ou prática social existente, principalmente as hegemônicas, de modo que ele poderia mirar exatamente o cerne da integridade de uma razão que servia ao cálculo é a construção teórica, base de qualquer possibilidade de ciência, como na célebre indagação: “é tempo afinal de substituir a pergunta kantiana ‘Como são possíveis juízos sintéticos a priori?’ por uma outra pergunta: ‘Por que a crença em tais juízos é necessária? – ou seja de conceber que para fins da conservação da essência de nossa espécie tais juízos têm de ser acreditados como verdadeiros; com o que, naturalmente, poderiam ainda ser juízos falsos! Ou, para dizê-lo mais claramente, e de um modo mais grosseiro e radical: juízos sintéticos a priori não deveriam, de modo algum, ‘ser possíveis’: não temos nenhum direito a eles, em nossa boca são puros juízos falsos. Só que , certamente, a crença em sua verdade é necessária, como uma crença de fachada e uma aparência que faz parte da ótica-de-perspectivas da vida”.[xxii]
A profissão de fé irracionalista, que abandona na origem os modernos fundamentos racionais do julgamento lógico, transcendentais, transformando-os em necessidades de crença, só pode completar o processo do próprio sentido como uma torção da razão, rumo a uma razão que perfura toda e cada posição possível de verdade, e produz como imagem uma vida concebida como ótica-de-perspectivas, necessariamente plural, conflituosa, política na raiz, instável e incompleta em si mesma. Como sabemos, tudo isso será projetado na ideia de uma razão biológica, conflitiva, em disputa constante, produtora da sustentação de verdades locais e estratégicas como busca da única verdade que move, a vontade de potência, que também pode ser lida como vontade de poder.
Tal universo de reversão da potência ideal, fundada em si mesma, da ordem da razão em um conjunto de forças orgânicas díspares, carregadas de interesse desde sempre, que vão se articular arqueologicamente como fundamento oculto das estratégias de verdade, que visam mais poder, vai, no modo nietzschiano de ver as coisas, tomar posse de toda possibilidade de produzir conhecimento – em um sujeito que é produto de uma dialética sempre viva do ilógico e do ganho extra-racional, interessado – de toda produção de algum saber: “A sequência de pensamentos e conclusões lógicas, em nosso cérebro de agora, corresponde a um processo e luta de impulsos, que por si sós são todos muito ilógicos e injustos: de hábito só ficamos sabendo do resultado do combate: tão rápido e tão escondido se desenrola agora esse antiquíssimo mecanismo em nós”.[xxiii]
“A força do conhecimento não está em seu grau de verdade, mas em sua idade, sua incorporação, seu caráter de condição da vida”. [xxiv]
Abre-se assim um campo de radical tábula rasa dos fundamentos autossustentados, das condições de possibilidade, da própria razão. O antigo modo de conceber a razão será deslocado, em uma articulação de origem, genética, para uma nova ordem de razão corpórea – pulsional, para o desejo e o desejo de potência, e estética, para a aparência dionisíaca, visando realizar o próprio ser como obra de arte –. Estes novos modos, ontológicos da razão, vão ocupar, em Nietzsche, o lugar de qualquer razão prática moral.
E vão negociar, em outra chave, e com imensa ironia, a ética científica do tempo, e seu impacto de fantasia emocional sobre o humano – o que também interessou muito a Hegel – com o universo, dela alienada, da figuração simbólica não verdadeira da arte: “Nossa última gratidão para com a arte – Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado esta espécie de culto do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade, que agora nos é dada pela ciência – a compreensão da ilusão e do erro como uma condição da existência que conhece e que sente – não teria podido ser tolerada. A lealdade teria o nojo e o suicídio por consequência. Mas agora nossa lealdade tem uma potência oposta, que nos ajuda a desviar tais consequências: a arte como a boa vontade com a aparência”.[xxv]
Segundo Nietzsche, no registro dos impulsos e do desejo de sentido vital a ciência deve também à arte algo da sua própria capacidade de ser sustentada no vivo. A capacidade de ser leal à dissolução negativa da ciência, a sua constante dissolução da realidade e da vida, é alimentada pela possibilidade de uma boa vontade, própria do que foi ofertado às artes, um certo tipo de satisfação com as potencias da aparência, daquilo que existe efetivamente como não-verdadeiro, e que tanto interessava ao filósofo. Como um golpe mágico do espírito, o campo da arte, do não verdadeiro, aparece em algum lugar como um duplo do campo da ciência, da produção negativa limite do verdadeiro.
De fato, esta dialética da potência nietzschiana troca facilmente os efeitos constitutivos e universais da efetividade da razão por qualquer coisa que seja, o que quer que for da ordem da aparência, que sustente a sua própria boa vontade, medida pela régua biopolítica do aumento de potência.
Por fim, esta verdadeira razão bem às avessas de toda razão, corpórea, vital e inconsciente, deveria atingir em cheio a própria valoração, a fantasia de fundo, a metafísica própria, da ciência, que estava por tudo no tempo: “(…) de onde então poderia a ciência tirar sua crença incondicionada, e sua convicção, que repousa sobre ela, de que verdade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra convicção? Justamente essa convicção não poderia ter surgido, se verdade e inverdade se mostrassem ambas constantemente como úteis: como é o caso. Portanto – a crença na ciência, que agora está aí incontestavelmente, não pode ter tirado sua origem de um tal cálculo utilitário, mas, antes, a despeito de lhe ter sido constantemente demonstrada a inutilidade e periculosidade da ‘vontade de verdade’, da ‘verdade a todo preço’. (…) Consequentemente, ‘vontade de verdade’ não quer dizer ‘eu não quero me deixar enganar’, mas sim – não há nenhuma escolha – ‘eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’: – e com isso estamos no terreno da moral. Pois basta perguntar-se fundamentalmente: ‘Por que não queres enganar?’, especialmente se houvesse a aparência – e há essa aparência – de que a vida depende de aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se, por outro lado, a grande forma da vida sempre se tivesse mostrado, da fato, do lado do mais inescrupuloso polytropoi. Um tal propósito poderia, talvez, interpretado brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia também ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida… ‘Vontade de verdade’ – isto poderia ser uma velada vontade de morte. Dessa forma a questão: por que ciência? Reconduz ao problema moral: para que em geral moral, se vida, natureza, história são ‘imorais’? Sem dúvida nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e último, como o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse ‘outro mundo’, como? não precisa, justamente com isso, de… negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo?.. No entanto, já se terá compreendido aonde quero chegar, ou seja, que é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência – que também nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… Mas, e se precisamente isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada mais se demonstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa mentira?”.[xxvi]
A ciência era deste modo a substituta metafísica de Deus e a resolução histórica final, moderna, da ideia de divindade da verdade. Ao contrário do que afirma a respeito da sua disposição negativa para o real, da sua humildade frente ao que é, a ciência seria, para Nietzsche, a sustentação última do poder moral do campo da verdade. E, nesta direção, ela desconhece simplesmente tudo aquilo que existe, que serve à vida e que não pode ser operado pelo recorte violento, e pela moralidade última, da verdade em sua própria ordenação. De fato, vista por esta perspectiva ela era a realização final maior da tradição metafísica moral ocidental.
Também, se entrevê na passagem, a imposição fixada e de poder, desejo de potência?, na ordem da ciência, “que agora está aí incontestavelmente”, sobre as dimensões humanas não passíveis de verdade, dentre as quais Nietzsche alinha a vida, a história e, para o escândalo do campo simbólico e social que foi o de Freud, a natureza… Nietzsche parece a apenas um passo de reconhecer o universo totalitário da imposição da ordem da medição, da estatística, do valor abstrato de troca, da gestão científica da cultura e da organização da vida, que através do desdobramento metafísico da ideia da ciência na ideia de progresso, estabeleceram as balizas do mundo totalmente esclarecido, “uma catástrofe resplandecente”, “uma acumulação constante de ruínas”.
E se olharmos para a situação da psicanálise por este prisma – exatamente como Theodor Adorno realizou em alguns importantes fragmentos de Minima moralia[xxvii] – do ponto de vista do seu compromisso, acrítico, com a máquina do mundo da ciência, uma psicanálise que se compreende como técnica pura, cuja textura se confunde no mundo com a realização ideológica do poder social da ciência, avessa às potencias dialéticas que reconheceu no humano, chegamos a uma esfera constrangedora de reificação da disciplina freudiana, que de fato emergiu historicamente.
Esta dialética interna de submissão da psicanálise à sua pura dimensão técnica, a sua metafísica, também alinhou a disciplina socialmente, como uma máscara interessada, com algo do mundo do poder, como é próprio do ser social da ciência, o que, no entanto, ela também permitia criticar em profundidade.
E por fim, neste giro de descentramentos e de perfurações da ética de fundamento da ciência, chegamos ao ponto em que Nietzsche, ele próprio podendo ser operado dialeticamente, também oferece em sua transvaloração dos valores uma possível nova ordem de razão epistemológica, de uma possível trans-epistemologia: “A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções?.. Assim é, provavelmente: só resta perguntar se, para esta disciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção, e aliás tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma todas as outras convicções? Vê-se que também a ciência repousa sobre uma crença, não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’. A questão, se é preciso verdade, não só já tem de estar de antemão respondida afirmativamente, mas afirmada em tal grau que nela alcança a expressão esta proposição, esta crença, esta convicção: ‘Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo o resto só tem um valor de segunda ordem’. Essa incondicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar enganar? É a vontade de não enganar? Pois também desta última maneira poderia ser interpretada a vontade de verdade: pressuposto que sob a generalização ‘eu não quero enganar’ esteja incluído também o caso particular ‘eu não quero me enganar’. Mas por que não enganar? Mas por que não se deixar enganar?”.[xxviii]
A psicanálise, que lida com verdades e com aparências, com distâncias incomensuráveis de si a si e com intensidades psíquicas imensas, com intersubjetividade e com uma verdadeira criação de sentido referida ao sujeito, com transfiguração de valores e assunção ética do próprio desejo a partir do reconhecimento da dialética das contradições pessoais, que sempre porta o seu momento social, é mesmo uma modalidade de produção de saber que tem muito o que refletir sobre esta crítica de fundo às condições de estabilização de alguma ordem científica do discurso.
O que tenho tentado demonstrar, e a trans-epistemologia nietzschiana nos permite definir melhor, é que só se pode compreender a emergência do processo clínico breueriano, e sua diferença frente ao destino teórico que Freud logo imprimiu na coisa do inconsciente, se considerarmos uma ética desejante de fundo particular que, articulada mesmo à ética científica, a atravessa, posicionando-a em outro lugar do humano. Algo um pouco parecido com o que Nietzsche fez com o próprio campo da ciência.
Sim, porque, como dizia Nietzsche, “a ciência repousa sobre uma crença, não há nenhuma ciência sem pressupostos”. E é exatamente isto que a diferença entre Breuer e Freud torna claro: as duas fundações da psicanálise devidas a cada um destes dois homens estão de fato fundadas em pressupostos de fundação de ciência diferentes. E, no entanto, interessantemente, ambos os vértices de fundo, pressupostos de crenças diferentes, pertencem à mesma ciência, à psicanálise.
De fato, Breuer estava mais radicalmente aberto àquele “não se permitir convicções sobre o outro” – no limite suspensão da vontade de poder? -, uma abertura radical ao outro humano, uma oferta de si mesmo ao estrangeiro, ao doente e ao fraco, ao moralmente defeituoso para o sistema teórico de convicções médicas da época. Esta inclinação primordial, não se permitir convicção, era ela própria a convicção de que o gesto de presença e suspensão de juízo da clínica, uma certa modalidade de amor, poderia ir até lá.
O valor de fundo, o pressuposto e a crença daquela nova ciência clínica, era a oferta amorosa de si, sobre o modo científico de se permitir acessar o mistério do outro. Como tal, ela também realizava, como um próprio modo científico, aquela outra fundamentação de sentido nietzschiana das coisas, de que “com o fazer bem e o bem querer, sobre aqueles que de algum modo já dependem de nós (isto é, estão habituados a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar sua potência, porque assim aumentamos a nossa”[xxix]. A ciência de Breuer era fundada radicalmente no pressuposto de fazer o bem, aumentar as potências.
Freud demorou também algum tempo para admitir que o trabalho do paciente em análise era movido exatamente pelo próprio amor que ele expressava por seus objetos. Todavia, como Ferenczi trouxe para o conceito psicanalítico, admitir que o trabalho do analista também era movido em algum lugar fundante de sua própria ciência por uma certa modalidade de amor, talvez Freud nunca o tenha conseguido.
No entanto, tudo parece indicar, a partir da vivência clínica em comum no tempo do médico e da paciente, da verdadeira noese clínica da primeira psicanálise e suas primeiras articulações de sentido sobre a realidade humana, que Breuer realizou mesmo o modelo fichteano do desenvolvimento do erudito, do sábio ou do intelectual, na cultura, que, por fim, e por princípio, deixou como legado a Freud: uma dimensão verdadeiramente filosófica das coisas do sentido se articulou a uma dimensão filosófico-histórica diante de um outro, para se tornar propriamente, por fim, uma dimensão simplesmente histórica das coisas humanas[xxx]. A criação da psicanálise no mundo da modernidade avançada.
*Tales Ab´Sáber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros de O sonhar restaurado, formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34).
Publicado originalmente em Filosofemas II, org. Jamil Ibrahim Skandar e Rita Paiva, São Paulo: Editora Unifesp, 2016.
Notas
[i] S. Freud. A interpretação dos sonhos, tradução de Renato Zwick, Porto Alegre: LPM, 2012, pág. 166. (https://amzn.to/3s78j3Q)
[ii] Ver, por exemplo, de Karl Schorske, “Política e Parrícídio em A Interpretação dos Sonhos de Freud”, em Viena Fin-de-Siècle, São Paulo: Unicamp e Companhia das Letras, 1989 (https://amzn.to/3OU3V0U); o trabalho de William MacGratt Política e Histeria, Porto Alegre (https://amzn.to/45vkHcp): Artes Médicas, 1988 e Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan, São Paulo: Brasiliense, 1985 (https://amzn.to/3DZaucc).
[iii] W. Benjamin, “Paris, capital do século XIX”, em Walter Benjamin, São Paulo: Ática, 1985, pág. 40. Esta famosa passagem de Benjamin parece ser de fato um redesenho, pós-psicanalítico, e que deixa o traço intransferível de um autor, daquela linda, e benjaminiana, passagem de Hegel: “Mas, assim como na criança, depois de um longo e tranquilo tempo de nutrição, a primeira respiração – um salto qualitativo – quebra esta continuidade de um progresso apenas quantitativo e nasce então a criança, assim o espírito que se cultiva cresce lenta e silenciosamente até a nova figura e desintegra pedaço por pedaço seu mundo precedente. Apenas sintomas isolados revelam seu abalo. A frivolidade e o tédio que tomam conta do que ainda subsiste, o pressentimento indeterminado de algo desconhecido, são os sinais precursores de que qualquer coisa diferente se aproxima. Esse lento desmoronar-se, que não alterava os traços fisionômicos do todo, é interrompido pela aurora que, num clarão, descobre de uma só vez a estrutura do novo mundo.” A fenomenologia do espírito, tradução Henrique C. de Lima Vaz, São Paulo: Abril Cultural, 1974, pág. 16.
[iv] Para relembrarmos o novo compromisso entre filosofia, ciência e vida intelectual, podemos atentar mais uma vez para o valor positivo, sem meios tons, do famoso título: Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une société de gens de lettres.
[v] Heinrich Heine, Heine, hein?, tradução de André Vallias, São Paulo: Perspectiva, 2011, pág. 282 (https://amzn.to/3sfc6fj).
[vi] T. Adorno, Mínima Morália, fragmento 42, “Liberdade de Pensamento”, São Paulo: Ática, 1992, pág. 58 (https://amzn.to/3OyTYVx).
[vii] G.W.F. Hegel, A fenomenologia do espírito, tradução Henrique C. de Lima Vaz, São Paulo: Abril Cultural, 1974, pág. 13.
[viii] Idem, pág. 44.
[ix] Idem, pág 44-45.
[x] Idem, pág. 50.
[xi] J. G. Fichte, O princípio da doutrina da ciência, tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1973, pág. 24.
[xii] Idem, pág. 15.
[xiii] Ver Introdução à epistemologia freudiana. Paul-Laurent Assoun, Rio de Janeiro: Imago, 1983.
[xiv] “Josef Breuer” (1925), Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Vol. XIX, ,Rio de Janeiro: Imago, 1980, pág. 349.
[xv] Idem, págs. 349-350.
[xvi] S. Freud., “Recordar, repetir e elaborar” (1914), Sigmund Freud, Obras Completas, Vol. X, tradução de Paulo Cézar de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, págs. 207 e 209.
[xvii] Idem, pág. 191.
[xviii] Ver Critique of the Foundations of Psychology: The Psychology of Psychoanalysis, Georges Politzer, Pittsburgh: Duquesne University Press, 1994.
[xix] S. Freud, A interpretação dos sonhos, op. cit., pág 165.
[xx] Idem, pág. 240.
[xxi] S. Freud, “Josef Breuer”, op. cit., pág. 349.
[xxii] F. Nietzsche, Para além de bem e mal, em Obras incompletas, tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, seleção de textos de Gérard Lebrun, São Paulo: Abril Cultural, 1978, pág. 270 (https://amzn.to/3OUxSOs).
[xxiii] Nietzsche, A gaia ciência, em op. cit. pág. 202.
[xxiv] Idem, pág. 200.
[xxv] Idem, pág. 197.
[xxvi] Idem, pág. 213. Aqui é interessante lembrarmos o título deste fragmento: “Em que medida nós também somos devotos ainda”.
[xxvii] Como no já citado fragmento 42, “Liberdade de pensamento”: “O que quer que ocorra a alguém, é bom o suficiente para permitir que especialistas decidam se quem produziu tal pensamento é um caráter compulsivo, um tipo oral ou um histérico. Em virtude do afrouxamento da responsabilidade, decorrente de seu desligamento da reflexão, do controle do entendimento, a própria especulação é deixada como objeto à ciência, cuja subjetividade se extinguiu junto com aquela. Na medida em que o pensamento se deixa lembrar de suas origens inconscientes pelo esquema administrativo da análise, ele esquece de ser pensamento.” T. Adorno, Minima morália, op. cit., pág. 58.
[xxviii] Idem, pág. 212.
[xxix] Idem, pág. 193.
[xxx] J. G. Fichte, O destino do erudito, tradução de Ricardo Barbosa, São Paulo: Hedra, 2014 (https://amzn.to/3qx9WHF).
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