A taxação dos super-ricos

Imagem: Georg Scholz
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Por EDUARDO BORGES*

“Ser rico não é pecado”. A elite brasileira segue destilando desprezo e insensibilidade nas página da imprensa corporativa, sua privilegiada porta-voz

A elite brasileira, aquela mesma que desfrutou da escravidão por 300 anos, segue destilando desprezo e insensibilidade social nas páginas da imprensa corporativa, sua privilegiada porta-voz. Recentemente o jornal Folha de S. Paulo publicou artigo de um certo João Camargo (Presidente do Conselho da CNN/Brasil) intitulado “Ser rico não é pecado”.

O texto é um completo escárnio com os 21 milhões de brasileiros que passam fome no Brasil números retirados do relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2023”.[i] Isso representa quase 10% da população brasileira. Além disso, pouco importa para João Camargo que entre 2016 (ano do golpe contra Dilma) e 2022 (fim do governo do inelegível) a porcentagem de brasileiros passando fome foi de 1,9% para 32,8 % com um total de 70 milhões de brasileiros sem ter o que comer.

Em 2023, até o momento, os R$ 600 mensais do Bolsa Família, acrescido de R$ 150 por criança de 0 a 6 anos e de R$ 50 em caso de gestação, tem amenizado a situação da extrema pobreza. Mais do que isso, a volta de programas importantes como os do PAC (Minha Casa, Minha Vida, entre outros) certamente vai impactar positivamente na geração de emprego e renda. Para quem não se lembra, no governo do inelegível, o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) foi fechado, sendo retomado agora pelo presidente Lula. Contudo, para o bilionário João Camargo, o que o governo brasileiro tem que se preocupar são com os 1.650 super-ricos cujos fundos exclusivos ultrapassam o patrimônio de R$ 250 bilhões.

O argumento central de João Camargo é mediado pela mesma mentalidade representada simbolicamente no título do artigo: “Ser rico não é pecado” e demonstra claramente não só uma abjeta insensibilidade social, mas uma completa falta de inteligência. Em determinado trecho do artigo, Camargo, buscando explicitamente emparedar o governo, tenta nos convencer, em tom de ameaça, de que taxar os ricaços tende ao fracasso, escreveu ele: “num mundo globalizado, o rico tem uma mobilidade financeira enorme, conseguindo alocar seu dinheiro em lugares mais atrativos de forma quase instantânea”.

Em outras palavras, o “patriota” João Camargo simplesmente nos disse que rico não tem nacionalidade, portanto, para ele, pouco importa que brasileiros passem fome, o que realmente importa é em que lugar do planeta ele vai triplicar seu patrimônio. Aqui João Camargo mimetizou Mario Amato (ex-presidente da Fiesp), seu compatriota de plutocracia, que em 1989 afirmou: “Se Lula ganhar as eleições, aqui o número de empresários que fugiriam não seria menor do que 800 mil. Além disso, deixaríamos de ter investimentos dos países desenvolvidos”. Resultado, em 2002 Lula ganhou a eleição e a plutocracia nunca ficou tão rica.

Camargo segue sua saga argumentativa citando exemplos de países (Alemanha, Holanda, Áustria, Irlanda) que buscaram taxar os super-ricos e aparentemente se arrependeram. Ele só esqueceu de dizer que todos esses países têm índices de desigualdade social infinitamente menores que os do Brasil. Os argumentos de Camargo são rasos e medíocres, típico de uma plutocracia completamente desconectada com a realidade social brasileira e mais preocupada com os salões de Paris ou os cassinos de Punta del Este. Para ele, a taxação dos super-ricos é difícil de fiscalizar e “está sempre sujeita a uma dose de arbitrariedade”. Diriam os especialistas em lacração que o bilionário da CNN está querendo se vitimizar com mimimi de “arbitrariedade”. Um bilionário se dizer vítima de arbitrariedade no Brasil é a quintessência do insulto à nossa inteligência.

Segundo o eminente representante de nossa Casa Grande a taxação dos super-ricos é uma retórica deletéria. O que não é nocivo para ele é morrer de fome, isso faz parte da vida. Talvez, quem morra de fome, seja para ele, alguém que não teve disciplina e força mental suficiente para empreender e enriquecer. Mas João Camargo deixaria a cereja do bolo da boçalidade elitista para a fase final do artigo ao recorrer à retórica da meritocracia liberal burguesa, escreveu ele: “o brasileiro que construiu seu patrimônio deve ser admirado como o protagonista de uma jornada de sucesso. (…) É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera emprego e paga enorme cargas de tributo”.

Mais um pouco e estava eu quase sacando meu poderoso Pix para ajudar este “pobre” e “explorado” empreendedor. Será que João Camargo trocaria comigo (um “privilegiado” assalariado) toda essa dose de “sacrifícios” por ele relatada? Se ele quiser, certamente terá uma fila de brasileiros super interessados em passar pelo “dissabor” de assumir riscos, inovar, criar riquezas, gerar empregos e pagar enormes cargas tributárias. Os argumentos desses bilionários são tão rasos, previsíveis e clichês, que às vezes eu tenho a impressão que eles realmente acham que nós somos otários. Eles não fazem questão sequer de aparentar alguma inteligência argumentativa. São medíocres com todo orgulho.

A fala de João Camargo é o do escravocrata cínico e usurário (sem falar nos fraudulentos – Lojas Americanas) a quem o trabalhador deve agradecer todos os dias por lhe explorar ao máximo a força de trabalho, pagar-lhe salários irrisórios, extrair o máximo de mais-valia e ainda demonstrar gratidão por não ser um dos que por falta de “mérito” teve que “optar” pela amargura do desemprego e da miséria.

Por fim, João Camargo caminhou para fechar seu artigo demonstrando uma pequena crise de consciência e resolveu opinar sobre a desigualdade social brasileira. Para ele a desigualdade deve ser combatida com a recomposição das contas públicas (ou seja, a velha ladainha do Estado gastador), mas que isso fosse feito sem “rasgos de tirania” (um eufemismo para nos deixem lucrar em paz). Qualquer preocupação com baixar taxa de lucro e distribuir riqueza, nem pensar. Por que precisa existir bilionários? Essa pergunta precisa ser enfrentada em um país de maioria miserável como o Brasil. É muito deboche um dono do capital falar em tirania. Não faz muito tempo alguns deles estavam babando por uma intervenção militar.

Fecho esse pequeno artigo/desabafo retomando a frase que intitula o artigo analisado: “ser rico não é pecado”. Certamente que João Camargo deve se considerar um patriota, cidadão de bem e temente a Deus. Recorro, portanto, a alguns trechos das Sagradas Escrituras (que Camargo deve seguir com devoção e fé) para refletir sobre o não pecado de ser rico. Sigamos:

– Eclesiastes 5:10: “Quem ama o dinheiro não se fartará de dinheiro; nem o que ama a riqueza se fartará do ganho; também isso é vaidade”.

– Provérbios 15:16: “É melhor ter pouco com o temor do Senhor do que grande riqueza com inquietação”.

– Timóteo 6:9-11: “Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos. Você, porém, homem de Deus, fuja de tudo isso e busque a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança e a mansidão”.

– Mateus 6:24: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.

Fechamos com o mais explícito de todos, a ponto de ser confirmado por dois evangelistas (Lucas 18:25 e Mateus 19:24): E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus”.

O interessante é que os trechos bíblicos acima citados são seletivamente “esquecidos” por uma parcela enorme daqueles brasileiros que acreditam cegamente no slogan: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Quanto a João Camargo (nada tenho contra ele pessoalmente, pois não o conheço) seu artigo é completamente equivocado e me faz lembrar do físico suíço Fritz Zwicky, para quem os astrônomos seriam idiotas esféricos ou seja, não importa qual ângulo os olhamos, serão sempre idiotas. Assim é o artigo de João Camargo.

*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia. Autor, entre outros livros, de Golpe: o golpe como método político da elite brasileira (Kotter).

Nota


[i]https://brasil.un.org/pt-br/239349-lan%C3%A7amento-do-relat%C3%B3rio-o-estado-da-seguran%C3%A7a-alimentar-e-nutri%C3%A7%C3%A3o-no-mundo-2023#:~:text=A%20FAO%20e%20seus%20parceiros,e%20garantia%20da%20seguran%C3%A7a%20alimentar.


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